sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Dia de finados, dia para os viventes

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Nada temos para sempre, aqui nada somos em definitivo
*Artigo de Evaldo D´Assumpção,
médico e escritor


‘Dia dois de novembro, tradicionalmente aquele em que os viventes vão visitar os mortos, nos cemitérios. Tempo de cuidar das sepulturas, limpá-las. Muitas, há muito esquecidas. Levar flores, sentar à beira do túmulo, deixar o olhar se perder no passado. Lágrimas podem rolar pela face, evocando imagens de antanho. Recordações, saudades, muitas vezes arrependimentos.... Outros, questionam sobre a sua própria morte. Visitam seus mortos, olham a vida que levam, e pensam em sua própria morte, num dia quiçá distante, quando ali serão eles os relembrados.

Outros mais, preferem passar longe dos cemitérios, nesse dia e em todos os demais. Dá azar, afirmam. A alguns, causam medo, pavor mesmo. Lembro-me de minha infância. Morava no sul de Minas, a algumas quadras do cemitério. Durante o dia, brincávamos em sua proximidade, passeávamos de bicicleta ao seu redor. Mas, à noite, nem pensar. Só distância queríamos dele. Contudo, bastava o sol acordar, para todos os fantasmas desaparecerem. A vida retomava o seu lugar, e os mortos descansavam em paz.

Anos se passaram, e em 1978 tomei conhecimento de um seminário sobre Psicologia Transpessoal da Morte. Nome instigante para quem convivia, por muitos anos, numa relação estritamente técnica com a morte. Médico, plantonista de pronto socorro, aprendi a lutar contra essa esquálida senhora, muitas vezes sabendo ser inglória essa luta. Quando estava realmente decidida a levar a cabo o seu trabalho, era sempre ela, a vencedora. Aquele seminário despertou minha atenção, e decidi participar dele. Não podia imaginar o quanto mudaria a minha vida. Nele, descobri novas faces da morte, desvelando seu verdadeiro sentido. Aprendi a ter nela, não mais uma inimiga a ser vencida, mas a mestra dedicada e sempre presente, que me ensinava a viver, a valorizar a vida, e dela usufruir da melhor maneira possível. Descobri também uma nova ciência, até então totalmente desconhecida no Brasil – a Tanatologia – que fora desenvolvida pelas médicas Cicely Saunders, na Inglaterra, e Elisabeth Kübler-Ross nos EUA. Ambas trabalhando, nos anos 60, com enfermos em fase terminal da doença, e sem possibilidades de cura. Ambas se empenhando em proporcionar a esses pacientes, a melhor qualidade de vida possível, no tempo de vida que lhes restasse. E aos seus familiares, o conforto e a aceitação para uma realidade universal. Aprofundei-me no seu estudo, passei a promover cursos e seminários, escrevi dezenas de artigos e alguns livros, entre eles um manual para qualquer interessado nesse tema desafiador : ‘Sobre o viver e o morrer’ (Ed. Vozes). E conclui que o nome certo dessa nova ciência, deve ser Biotanatologia. Bio, que em grego significa vida, Thanatos o deus da mitologia grega que representa a morte, e Logos, também do grego, com o sentido de conhecimento. Resumia assim, o que aprendi : a morte nos proporciona o conhecimento de como viver. É a vida ensinada pela morte. Com sua verdadeira imagem diante dos olhos, desaparece o temor, cresce o amor. Pode parecer absurdo, talvez um paradoxo, mas é real, é transformador.

Seu principal ensinamento é a impermanência de tudo e de todos. Nada temos para sempre, aqui nada somos em definitivo. A pretensão à imortalidade, nessa realidade temporo-espacial, é uma quimera que gera ansiedade e medo. Quando se constata sua falácia, vira pavor, pânico. Por isso, muitos nem sequer querem pensar nem conversar sobre ela.  A segurança do carro blindado, a fortaleza de uma casa indevassável, a fortuna amealhada (nunca suficiente...), que se supõe proporcionar sono seguro, são somente fumaça que o sopro da morte leva sem qualquer cerimônia. Quantos passam pela vida cercando-se de recursos materiais, sofisticados, com alta tecnologia, e sempre negando a morte. Quantos deixam de lado a simplicidade do viver, o bucolismo da despreocupação responsável, tudo porque buscam a garantia de vida perene, que só existe em nossa imaginação. Quantos saem de casa enraivecidos, depois de uma discussão banal, sem pensar que poderão não retornar para uma reconciliação. Ou, se o fizerem, poderão já não ter com quem resgatar o relacionamento perdido. Quantos gastam as horas do dia, os dias do ano, trabalhando insanamente, só por um lugar na revista Forbes, na listagem dos mais ricos. E quando o alcançam, costumam já ter também um obituário feito por encomenda. Quantos se preocupam com o que vão amealhar, sem pensar que um dia tudo deixarão, e suas mãos estarão vazias ao partir. Títulos, honrarias, cargos, tudo se tornará em nada, talvez diplomas mofando na parede. Ignoram que desta vida, só se leva a vida que levamos. Quantas oportunidades se perde para dar ou pedir um perdão, reconhecendo que errar não é um fracasso, mas apenas uma condição própria dos humanos. Quantas outras se perdem de dizer que amamos, e para ouvir que somos amados. A lista é longa, mas tendo-se a humildade de pensar, será fácil de ser feita.

Diante da morte, questiona-se o que existe depois, se é que existe. Ninguém voltou para contar, e se contaram, somente fizeram, da outra vida, uma reprodução da atual, pois nossa razão é incapaz de vislumbrá-la. Não será essa impossibilidade, uma boa razão para se crer que ela existe? Dia de Finados nos dá uma ótima oportunidade para refletir, com otimismo, sobre isso. Não deve ser um dia sombrio e triste, mas um dia para nos libertarmos do inútil medo da morte.’


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