*Artigo
de Evaldo D´Assumpção,
médico e escritor
‘Dia
dois de novembro, tradicionalmente aquele em que os viventes vão visitar os
mortos, nos cemitérios. Tempo de cuidar das sepulturas, limpá-las. Muitas, há
muito esquecidas. Levar flores, sentar à beira do túmulo, deixar o olhar se
perder no passado. Lágrimas podem rolar pela face, evocando imagens de antanho.
Recordações, saudades, muitas vezes arrependimentos.... Outros, questionam
sobre a sua própria morte. Visitam seus mortos, olham a vida que levam, e pensam
em sua própria morte, num dia quiçá distante, quando ali serão eles os
relembrados.
Outros
mais, preferem passar longe dos cemitérios, nesse dia e em todos os demais. Dá
azar, afirmam. A alguns, causam medo, pavor mesmo. Lembro-me de minha infância.
Morava no sul de Minas, a algumas quadras do cemitério. Durante o dia,
brincávamos em sua proximidade, passeávamos de bicicleta ao seu redor. Mas, à
noite, nem pensar. Só distância queríamos dele. Contudo, bastava o sol acordar,
para todos os fantasmas desaparecerem. A vida retomava o seu lugar, e os mortos
descansavam em paz.
Anos
se passaram, e em 1978 tomei conhecimento de um seminário sobre Psicologia
Transpessoal da Morte. Nome instigante para quem convivia, por muitos anos,
numa relação estritamente técnica com a morte. Médico, plantonista de pronto
socorro, aprendi a lutar contra essa esquálida senhora, muitas vezes sabendo
ser inglória essa luta. Quando estava realmente decidida a levar a cabo o seu
trabalho, era sempre ela, a vencedora. Aquele seminário despertou minha
atenção, e decidi participar dele. Não podia imaginar o quanto mudaria a minha
vida. Nele, descobri novas faces da morte, desvelando seu verdadeiro sentido.
Aprendi a ter nela, não mais uma inimiga a ser vencida, mas a mestra dedicada e
sempre presente, que me ensinava a viver, a valorizar a vida, e dela usufruir
da melhor maneira possível. Descobri também uma nova ciência, até então
totalmente desconhecida no Brasil – a Tanatologia – que fora desenvolvida pelas
médicas Cicely Saunders, na Inglaterra, e Elisabeth Kübler-Ross nos EUA. Ambas
trabalhando, nos anos 60, com enfermos em fase terminal da doença, e sem
possibilidades de cura. Ambas se empenhando em proporcionar a esses pacientes,
a melhor qualidade de vida possível, no tempo de vida que lhes restasse. E aos
seus familiares, o conforto e a aceitação para uma realidade universal.
Aprofundei-me no seu estudo, passei a promover cursos e seminários, escrevi
dezenas de artigos e alguns livros, entre eles um manual para qualquer interessado
nesse tema desafiador : ‘Sobre o viver e o morrer’ (Ed. Vozes). E
conclui que o nome certo dessa nova ciência, deve ser Biotanatologia. Bio, que
em grego significa vida, Thanatos o deus da mitologia grega que representa a
morte, e Logos, também do grego, com o sentido de conhecimento. Resumia assim,
o que aprendi : a morte nos proporciona o conhecimento de como viver. É a vida
ensinada pela morte. Com sua verdadeira imagem diante dos olhos, desaparece o
temor, cresce o amor. Pode parecer absurdo, talvez um paradoxo, mas é real, é
transformador.
Seu
principal ensinamento é a impermanência de tudo e de todos. Nada temos para
sempre, aqui nada somos em definitivo. A pretensão à imortalidade, nessa
realidade temporo-espacial, é uma quimera que gera ansiedade e medo. Quando se
constata sua falácia, vira pavor, pânico. Por isso, muitos nem sequer querem
pensar nem conversar sobre ela. A segurança do carro blindado, a
fortaleza de uma casa indevassável, a fortuna amealhada (nunca suficiente...),
que se supõe proporcionar sono seguro, são somente fumaça que o sopro da morte
leva sem qualquer cerimônia. Quantos passam pela vida cercando-se de recursos
materiais, sofisticados, com alta tecnologia, e sempre negando a morte. Quantos
deixam de lado a simplicidade do viver, o bucolismo da despreocupação
responsável, tudo porque buscam a garantia de vida perene, que só existe em
nossa imaginação. Quantos saem de casa enraivecidos, depois de uma discussão
banal, sem pensar que poderão não retornar para uma reconciliação. Ou, se o
fizerem, poderão já não ter com quem resgatar o relacionamento perdido. Quantos
gastam as horas do dia, os dias do ano, trabalhando insanamente, só por um
lugar na revista Forbes, na listagem dos mais ricos. E quando o
alcançam, costumam já ter também um obituário feito por encomenda. Quantos se
preocupam com o que vão amealhar, sem pensar que um dia tudo deixarão, e suas
mãos estarão vazias ao partir. Títulos, honrarias, cargos, tudo se tornará em
nada, talvez diplomas mofando na parede. Ignoram que desta vida, só se leva a
vida que levamos. Quantas oportunidades se perde para dar ou pedir um perdão,
reconhecendo que errar não é um fracasso, mas apenas uma condição própria dos
humanos. Quantas outras se perdem de dizer que amamos, e para ouvir que somos
amados. A lista é longa, mas tendo-se a humildade de pensar, será fácil de ser
feita.
Diante
da morte, questiona-se o que existe depois, se é que existe. Ninguém voltou
para contar, e se contaram, somente fizeram, da outra vida, uma reprodução da
atual, pois nossa razão é incapaz de vislumbrá-la. Não será essa
impossibilidade, uma boa razão para se crer que ela existe? Dia de Finados nos
dá uma ótima oportunidade para refletir, com otimismo, sobre isso. Não deve ser
um dia sombrio e triste, mas um dia para nos libertarmos do inútil medo da
morte.’
Fonte
:
* Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1398048/2019/10/dia-de-finados-dia-para-os-viventes/
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