segunda-feira, 11 de novembro de 2019

O que é a espiritualidade


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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*Artigo de Evaldo D´Assumpção,
médico e escritor


‘Há pouco tempo escrevi um artigo sobre a importância da espiritualidade na prática médica. Tanto no surgimento, como na cura das enfermidades. Contudo, muitas pessoas não distinguem a espiritualidade, de uma filiação religiosa, acreditando serem a mesma coisa. Por isso, creio que devo explicar, ainda que resumidamente, qual o significado de cada uma. Elas são coisas distintas, apesar de estarem estreitamente relacionadas, pois a religiosidade é um dos aspectos significativos e, de certa forma, uma consequência daquela.

Espiritualidade é um termo surgido na Renascença, no século XV, tendo como um dos seus fundamentos, algumas ideias de Platão, filósofo do século IV a.C. Falando sobre o dualismo corpo-alma do humano, ele afirmava haver uma prevalência da alma sobre o corpo, que seria como uma prisão para aquela. Esse pensamento teve forte influência na humanidade, evoluindo no cristianismo primitivo para a ideia do humano trinitário, formado à imagem e semelhança da Trindade Divina. 

O conceito de divindade trinitária é encontrado em diversas correntes religiosas, mostrando-se um mistério muito além da nossa capacidade racional para compreendê-lo. Conta-se que Santo Agostinho, caminhando numa praia deserta, viu uma criança com uma pequena concha, buscando água no mar, e despejando-a num pequeno buraco na areia. Questionada por Agostinho sobre o que fazia, a criança respondeu que queria colocar toda a água do mar naquele buraco. O santo deu uma gargalhada e lhe disse : ‘Você acha mesmo, que toda a água do mar cabe nesse buraco?’ A criança olhou bem para ele e disse : ‘Da mesma forma como o mistério da Santíssima Trindade, que você questiona tanto, não cabe em sua cabeça’. E desapareceu.

Nós somos uma imagem da Santíssima Trindade. Temos três partes distintas, numa só unidade : corpo, mente e espírito, inseparáveis. Quando morremos, quem morre é o nosso corpo físico, e não a nossa individualidade. Adultos, já não temos o corpo que tínhamos quando criança. Suas células foram morrendo e sendo substituídas por outras, contudo nossa essência permanece a mesma, num contínuo amadurecimento. Quando nossas células perdem a capacidade dessa substituição, diz-se que morremos. Mas, na verdade, o que ocorre é a transformação do nosso corpo, mente e espírito, em um ser puramente espiritual, o qual conserva toda a nossa individualidade. E espirituais, já não teremos nenhum contato com a vida física como a conhecemos, toda ela estruturada para o espaço tempo. Passaremos para outra realidade, a que chamamos de eternidade, totalmente inalcançável pelo nosso intelecto.   

São Tomás de Aquino (1225-1274) ensinava : ‘Não existe corpo sem espírito, nem espírito sem corpo’. Nessa vida, temos um espírito ‘corporificado’. Ao morrermos, passaremos a ter um corpo ‘espiritualizado’. E todas as moléculas que compõem o nosso corpo material, permanecerão nessa realidade tempo-espacial, pois a ela, e somente a ela, pertencem.

Podemos então dizer que a espiritualidade é a necessidade intrínseca que temos de continuarmos ligados ao plano divino.  Nossa dimensão espiritual anseia por essa ligação, pois para ela foi criada. Mesmo as pessoas que não creem nisso, ainda assim têm uma espécie de vida espiritual que motiva seus pensamentos e ações. Renegando-a, ela se fecha ao crescimento interior, que é muito maior do que aquele proporcionado somente pela inteligência lógica. Segue então a sua vida como caminhante em terra árida, onde sua sede interior nunca é saciada.

Quem se abre à espiritualidade intrínseca, liberta-se da desesperança, que é um dos maiores males da humanidade. A desesperança nos adoece fisicamente, bloqueando os sistemas de defesa que temos em nosso organismo. Quando se abre à espiritualidade intrínseca, encontra-se um Deus que acolhe, que consola, mas que também exige humildade, coragem e decisão para ser assumido. Que exige constante aprofundamento, pois é semelhante ao gostar de música. Apreciá-la, não é o mesmo que a conhecer. Quem conhece, usufrui muito mais do que quem dela apenas gosta. E como consequência dessa espiritualidade, vem a necessidade da pertença a uma religião onde se possa desenvolver, e melhor expressar a sua espiritualidade.

Onde se possa encontrar outras pessoas semelhantes para compartilhar vivências, e ao mesmo tempo reforçar a mais pura expressão de espiritualidade. Mas há que ter muito cuidado, pois quando se cai numa falsa religiosidade, sem espiritualidade genuína, costuma-se criar um Deus ‘quebra-galhos’, um Deus terrível, policialesco, castigador, único responsável por tudo o que acontece. Situação bem confortável, pois passa-se a exigir tudo dele, atribuindo sempre e somente a ele, a razão de todos os problemas; dos que acontecem a si próprio, em redor de si, tanto como aos amigos e familiares. Eximindo-nos de nossas responsabilidades, renegamos o nosso livre arbítrio, deixando tudo para que Deus resolva e faça em nosso lugar. E nos zangamos se não o fizer.

Bem diferente da espiritualidade intrínseca, onde se mergulha no infinito transcendental, tomando-se total consciência de que existe um Ser superior que criou e cuida de todo o Universo, sem que Ele seja propriedade exclusiva de alguém. Descobrimos o único e verdadeiro Deus, que todas as religiões, em todos os tempos e lugares descobriram, dando-Lhe os nomes mais diversos. Mas sempre buscando religar (religião) o humano com o mesmo Deus, único e eterno.

A espiritualidade intrínseca é libertadora. Ela nos afasta da desesperança, enquanto a religiosidade sem espiritualidade só causa sofrimento, medo, terror, gerando mais desesperança.’


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