Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo
de Evaldo D´Assumpção,
médico e escritor
‘Há
pouco tempo escrevi um artigo sobre a importância da espiritualidade na prática
médica. Tanto no surgimento, como na cura das enfermidades. Contudo, muitas
pessoas não distinguem a espiritualidade, de uma filiação religiosa,
acreditando serem a mesma coisa. Por isso, creio que devo explicar, ainda que
resumidamente, qual o significado de cada uma. Elas são coisas distintas,
apesar de estarem estreitamente relacionadas, pois a religiosidade é um dos
aspectos significativos e, de certa forma, uma consequência daquela.
Espiritualidade
é um termo surgido na Renascença, no século XV, tendo como um dos seus
fundamentos, algumas ideias de Platão, filósofo do século IV a.C. Falando sobre
o dualismo corpo-alma do humano, ele afirmava haver uma prevalência da alma sobre
o corpo, que seria como uma prisão para aquela. Esse pensamento teve forte
influência na humanidade, evoluindo no cristianismo primitivo para a ideia do
humano trinitário, formado à imagem e semelhança da Trindade Divina.
O
conceito de divindade trinitária é encontrado em diversas correntes religiosas,
mostrando-se um mistério muito além da nossa capacidade racional para
compreendê-lo. Conta-se que Santo Agostinho, caminhando numa praia deserta, viu
uma criança com uma pequena concha, buscando água no mar, e despejando-a num
pequeno buraco na areia. Questionada por Agostinho sobre o que fazia, a criança
respondeu que queria colocar toda a água do mar naquele buraco. O santo deu uma
gargalhada e lhe disse : ‘Você acha mesmo, que toda a água do mar cabe nesse
buraco?’ A criança olhou bem para ele e disse : ‘Da mesma forma como o
mistério da Santíssima Trindade, que você questiona tanto, não cabe em sua
cabeça’. E desapareceu.
Nós
somos uma imagem da Santíssima Trindade. Temos três partes distintas, numa só
unidade : corpo, mente e espírito, inseparáveis. Quando morremos, quem morre é
o nosso corpo físico, e não a nossa individualidade. Adultos, já não temos o
corpo que tínhamos quando criança. Suas células foram morrendo e sendo
substituídas por outras, contudo nossa essência permanece a mesma, num contínuo
amadurecimento. Quando nossas células perdem a capacidade dessa substituição,
diz-se que morremos. Mas, na verdade, o que ocorre é a transformação do nosso
corpo, mente e espírito, em um ser puramente espiritual, o qual conserva toda a
nossa individualidade. E espirituais, já não teremos nenhum contato com a vida
física como a conhecemos, toda ela estruturada para o espaço tempo. Passaremos
para outra realidade, a que chamamos de eternidade, totalmente inalcançável
pelo nosso intelecto.
São
Tomás de Aquino (1225-1274) ensinava : ‘Não existe corpo sem espírito, nem
espírito sem corpo’. Nessa vida, temos um espírito ‘corporificado’.
Ao morrermos, passaremos a ter um corpo ‘espiritualizado’. E todas as
moléculas que compõem o nosso corpo material, permanecerão nessa realidade
tempo-espacial, pois a ela, e somente a ela, pertencem.
Podemos
então dizer que a espiritualidade é a necessidade intrínseca que temos de
continuarmos ligados ao plano divino. Nossa dimensão espiritual anseia
por essa ligação, pois para ela foi criada. Mesmo as pessoas que não creem
nisso, ainda assim têm uma espécie de vida espiritual que motiva seus
pensamentos e ações. Renegando-a, ela se fecha ao crescimento interior, que é
muito maior do que aquele proporcionado somente pela inteligência lógica. Segue
então a sua vida como caminhante em terra árida, onde sua sede interior nunca é
saciada.
Quem
se abre à espiritualidade intrínseca, liberta-se da desesperança, que é um dos
maiores males da humanidade. A desesperança nos adoece fisicamente, bloqueando
os sistemas de defesa que temos em nosso organismo. Quando se abre à
espiritualidade intrínseca, encontra-se um Deus que acolhe, que consola, mas
que também exige humildade, coragem e decisão para ser assumido. Que exige
constante aprofundamento, pois é semelhante ao gostar de música. Apreciá-la,
não é o mesmo que a conhecer. Quem conhece, usufrui muito mais do que quem dela
apenas gosta. E como consequência dessa espiritualidade, vem a necessidade da
pertença a uma religião onde se possa desenvolver, e melhor expressar a sua
espiritualidade.
Onde
se possa encontrar outras pessoas semelhantes para compartilhar vivências, e ao
mesmo tempo reforçar a mais pura expressão de espiritualidade. Mas há que ter
muito cuidado, pois quando se cai numa falsa religiosidade, sem espiritualidade
genuína, costuma-se criar um Deus ‘quebra-galhos’, um Deus terrível,
policialesco, castigador, único responsável por tudo o que acontece. Situação
bem confortável, pois passa-se a exigir tudo dele, atribuindo sempre e somente
a ele, a razão de todos os problemas; dos que acontecem a si próprio, em redor
de si, tanto como aos amigos e familiares. Eximindo-nos de nossas
responsabilidades, renegamos o nosso livre arbítrio, deixando tudo para que
Deus resolva e faça em nosso lugar. E nos zangamos se não o fizer.
Bem
diferente da espiritualidade intrínseca, onde se mergulha no infinito
transcendental, tomando-se total consciência de que existe um Ser superior que
criou e cuida de todo o Universo, sem que Ele seja propriedade exclusiva de
alguém. Descobrimos o único e verdadeiro Deus, que todas as religiões, em todos
os tempos e lugares descobriram, dando-Lhe os nomes mais diversos. Mas sempre
buscando religar (religião) o humano com o mesmo Deus, único e eterno.
A
espiritualidade intrínseca é libertadora. Ela nos afasta da desesperança,
enquanto a religiosidade sem espiritualidade só causa sofrimento, medo, terror,
gerando mais desesperança.’
Fonte
:
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