domingo, 31 de março de 2019

Sem medo de mudar


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

MS changes
*Artigo de Dom Walmor Oliveira de Azevedo,
Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte, MG



Esse medo sustenta idolatrias hegemônicas com tons de perversidade, induz a percepções equivocadas da realidade. Faz perceber o outro, o diferente, como inimigo, estimulando uma dinâmica beligerante, marcada por ataques sem piedade. Agressões que se manifestam, frequentemente, na propagação de mentiras, interpretadas como verdades, nos diversos contextos onde prevalece a incapacidade para o qualificado discernimento. Ambiente propício a quem se vale da calúnia para esconder as próprias limitações, desqualificando outras pessoas. Em vez de mudar e crescer, muitos se valem da mentira e dos ataques para diminuir quem é diferente.

Constata-se, pois, que o medo da mudança é o fantasma da imaginação de quem, mesmo inconscientemente, sabe da própria incompetência para alcançar conquistas e reconhecimento. Um sentimento que aprisiona indivíduos - consequentemente, instituições e segmentos sociais - nos parâmetros da mediocridade. A solução e o grande desafio é superar esse medo. E somente a abertura para se reconfigurar é que permitirá às pessoas evoluírem, alcançarem novas intuições e desenvolverem promissores projetos.

Abrir-se para novas possibilidades não significa ‘mudar por mudar’. O que deve ser buscado é a lucidez que permite não desprezar novas respostas para os muitos problemas ainda sem adequada solução. Isso exige vencer o comodismo e a ignorância, superar os medos que ferem a capacidade para o adequado discernimento. Esse temor diante da possibilidade de mudança aprisiona, inviabiliza a adequada vivência da cidadania e da espiritualidade. Impede o descortinar de um tempo novo, o que resulta na falta de compromisso com a vida comunitária.

Assim, perdem-se tempo e oportunidades, pois continuam os investimentos em processos obsoletos, produtores de prejuízos e atrasos. E mesmo diante das evoluções nos diferentes campos do saber, na área da educação, saúde e comunicação, não faltam exemplos de situações de penúria, que já deveriam ter sido superadas. Um exemplo é o aumento assustador de epidemias com o retorno de doenças já consideradas erradicadas, resultado do descaso, da exploração irresponsável do meio ambiente, do caos que se instala na sociedade a partir dos esquemas de enriquecimento ilícitos. Esses males fazem crescer a insegurança no coração das pessoas, mesmo entre aquelas que vivem a falsa tranquilidade por terem acumulado muitos bens.

Tudo isso, aliado à crescente violência, à falta de respeito ao semelhante e ao meio ambiente, no fim, contribui para o desvanecimento da alegria de viver. E o progresso científico experimentado na atualidade não é suficiente para colocar o mundo nos trilhos da paz e emoldurar as sociedades nos parâmetros do desenvolvimento integral. Consequentemente, a economia da exclusão, a idolatria do dinheiro e a desigualdade social prevalecem, impedindo que o mundo se torne mais justo, solidário e fraterno.

Há, pois, a urgência de se superar o medo das mudanças. E o tempo da Quaresma é oportunidade para, corajosamente, se enfrentar qualquer receio de viver uma transformação pessoal. Quando se fala sobre a necessidade de reformas estruturais e conjunturais na sociedade há de se admitir que o ponto de partida é reconfigurar o mais recôndito da alma e da consciência de cada indivíduo. E uma fecunda experiência espiritual oferece a cada pessoa a oportunidade para se renovar.

Da maestria do coração de Jesus nasce o convite central para operar mudanças na interioridade humana, que reúne muitas aptidões, dons do Criador, mas se torna fragilizada pelo pecado. O remédio para não ter medo de mudar é acolher, sem justificativas e delongas, o convite para uma autêntica conversão. Decisão que exige humildade para reconhecer e superar os próprios limites e as escolhas equivocadas. Um passo necessário para experimentar a alegria de ser bom e de fazer sempre o bem, justamente por não ter medo de mudar.’


Fonte :

sexta-feira, 29 de março de 2019

‘A idolatria, a antítese do Deus vivo’ - Terceira pregação da Quaresma de 2019

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Capela Redemptoris Mater
*Artigo de Pe. Raniero Cantalamessa, OFMCAP,
pregador oficial da Casa Pontifícia (Vaticano)
Tradução : Thácio Siqueira

Todas as manhãs, quando acordamos, temos uma experiência única, que quase nunca notamos. Durante a noite, as coisas à nossa volta existiam, eram como as tínhamos deixado na noite anterior : a cama, a janela, o quarto. Talvez o sol já esteja brilhando lá fora, mas não o vemos porque nossos olhos estão fechados e nossas cortinas estão abaixadas. Só agora, quando acordo, é que as coisas começam ou voltam a existir para mim, porque me dou conta delas, as percebo. Antes era como se elas não existissem, como se eu não existisse.
A mesma coisa acontece com Deus. Ele está sempre ali; ‘nele nos movemos, respiramos e somos’, disse Paulo aos atenienses (At 17,28); mas geralmente isso acontece como no sono, sem que nos demos conta. O espírito também precisa de um despertar, um aumento da consciência. É por isso que a Escritura nos exorta tantas vezes a despertar do sono : ‘Acordai vós que dormis, despertai dos mortos, e Cristo vos iluminará’ (Ef 5, 14), ‘Agora é tempo de vos despertar do sono!’ (Rm 13,11). É o que nos propomos para continuar, na Quaresma, a busca do Deus vivo que começou no Advento.

Idolatria antiga e nova
O Deus ‘vivo’ da Bíblia é assim definido para distingui-lo dos ídolos que são coisas mortas. É a batalha que une todos os livros do Antigo e do Novo Testamento.  Basta abrir quase ao acaso uma página dos profetas ou dos salmos para encontrar os sinais desta luta épica em defesa do único Deus de Israel. A idolatria é a antítese exata do Deus vivo. Dos ídolos, diz um salmo :

Os ídolos dos povos são prata e ouro,
trabalho das mãos do homem.

Eles têm boca e não falam,
têm olhos e não conseguem ver,
têm ouvidos e não ouvem,
têm narinas e não cheiram.

Têm mãos e não apalpam,
têm pés e não andam;
Da garganta não fazem barulho. (Sl 114, 3-7).

Do contraste com os ídolos, o Deus vivo aparece como um Deus que ‘faz o que quer’, que fala, que vê, que ouve, um Deus ‘que respira’! O sopro de Deus também tem um nome na Escritura : é chamado de Ruah Jahwe, o Espírito de Deus. É o sopro que Deus soprou sobre Adão quando ainda era um simulacro de argila (Gn 2, 7); é o sopro que o Ressuscitado soprou sobre os discípulos na noite de Páscoa : ‘Soprou sobre eles e disse : Recebei o Espírito Santo’’ (Jo 20, 22).
A batalha contra a idolatria infelizmente não terminou com o fim do paganismo histórico; ela está sempre em ato. Os ídolos mudaram de nome, mas estão mais presentes do que nunca. Mesmo dentro de cada um de nós, veremos, há um que é o mais assustador de todos. Por conseguinte, vale a pena insistir, por uma vez, neste problema, como um problema atual, e não apenas do passado.
Aquele que fez da idolatria a análise mais lúcida e profunda é o apóstolo Paulo. Deixemo-nos guiar por ele para a descoberta do ‘bezerro de ouro’ que se esconde em cada um de nós. No início da carta aos Romanos nós lemos estas palavras :
Na realidade, a ira de Deus é revelada do céu contra toda a impiedade e toda injustiça dos homens que sufocam a verdade na injustiça, pois o que pode ser conhecido de Deus é manifesto a eles; o próprio Deus o manifestou a eles. Com efeito, desde a criação do mundo em diante, as suas perfeições invisíveis podem ser contempladas com o intelecto nas suas obras, como seu eterno poder e divindade; são, portanto, indesculpáveis, porque, embora conheçam a Deus, não lhe deram glória nem graças como Deus, mas vaguearam em seus raciocínios e as suas mentes obtusas foram obscurecidas’ (Rm 1, 18-21).
Nas mentes dos que estudaram teologia, estas palavras estão quase exclusivamente ligadas à tese da cognoscibilidade natural da existência de Deus a partir das criaturas. Portanto, uma vez resolvido este problema, ou depois de ter deixado de ser tão atual como no passado, acontece que estas palavras raramente são lembradas e valorizadas. Mas a do conhecimento natural de Deus é, no contexto, um problema completamente marginal. As palavras do Apóstolo têm muito mais a nos dizer; elas contêm um desses ‘trovões de Deus’ capazes de derrubar também os cedros do Líbano.
O Apóstolo está empenhado em demonstrar a situação da humanidade antes de Cristo e fora dele; em outras palavras, onde começa o processo de redenção. Ele não parte de zero, da natureza, mas de subzero, do pecado. Todos pecaram, ninguém excluído. O Apóstolo divide o mundo em duas categorias : Gregos e judeus, isto é, pagãos e crentes, e começa sua acusação precisamente a partir do pecado dos pagãos. Identifica o pecado fundamental do mundo pagão na impiedade e na injustiça. Diz que este é um ataque à verdade; não a esta ou aquela verdade, mas à verdade original de todas as coisas.
O pecado fundamental, o objeto primário da ira divina, é identificado na asebeia, isto é, na impiedade. Em que consiste exatamente esta impiedade, o Apóstolo explica imediatamente, dizendo que consiste na recusa de ‘glorificar’ e de ‘agradecer’ a Deus. Em outras palavras, ao recusar reconhecer Deus como Deus, ao não lhe dar a consideração que lhe é devida. Consiste, poderíamos dizer, em ‘ignorar’ a Deus, onde, no entanto, ignorar não significa tanto ‘não saber que existe’ mas ‘fazer como se ele não existisse’.
No Antigo Testamento ouvimos Moisés que grita ao povo : ‘Reconhece que Deus é Deus!’ (cf. Dt 7,9) e um salmista retoma este grito, dizendo : ‘Reconhecei que o Senhor é Deus : Ele fez-nos e nós somos seus!’ (Sl 100,3). Reduzido ao seu núcleo germinativo, o pecado é negar este ‘reconhecimento’; é a tentativa, por parte da criatura, de anular a diferença qualitativa infinita que existe entre a criatura e o Criador, recusando-se a depender dele. Esta recusa tomou forma, concretamente, na idolatria, em que a criatura é adorada em vez do Criador (cf. Rm 1, 25). Os pagãos, continua o Apóstolo, ‘vaguearam nos seus raciocínios e escureceram as suas mentes obtusas. Como se declararam sábios, tornaram-se loucos e mudaram a glória do Deus incorruptível com a imagem e a figura do homem corruptível, dos pássaros, quadrúpedes e répteis’ (Rm 1,22-23).
O Apóstolo não quer dizer que todos os pagãos, sem distinção, devam ter vivido subjetivamente neste tipo de pecado (mais tarde ele falará de pagãos que se tornam aceitos a Deus seguindo a lei de Deus escrita em seus corações, cf. Rm 2,14 ss); ele só quer dizer qual é a situação objetiva do homem diante de Deus depois do pecado. O homem, criado ‘reto’ (no sentido físico de ereto e no sentido moral de justo), com o pecado tornou-se ‘curvo’, isto é, dobrado sobre si mesmo, e ‘perverso’, orientado para si mesmo, mais do que para Deus.
Na idolatria, o homem não ‘aceita’ Deus, mas se faz um deus. As partes são invertidas : o homem torna-se o oleiro e Deus o vaso que molda ao seu gosto (cf. Rm 9, 20 ss.). Em tudo isto há uma referência, pelo menos implicitamente, ao relato da criação (cf. Gn 1, 26-27).  Ali se diz que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança; aqui se diz que o homem trocou por Deus a imagem e a figura do homem corruptível. Em outras palavras, Deus fez o homem à sua imagem, agora o homem faz Deus à sua imagem. Porque o homem é violento, eis que fará da violência um deus, Marte; porque é cobiçoso, fará da luxúria uma deusa, Vênus, e assim por diante. Faz de Deus a projeção de si mesmo.

‘Tu és esse homem!’
Seria fácil mostrar que esta é também a situação em que, de certa forma, nos encontramos, no Ocidente, do ponto de vista religioso e a partir da qual o ateísmo moderno começou com a famosa máxima de Feuerbach : ‘Não foi Deus quem criou o homem à sua imagem, mas foi o homem que criou Deus à sua imagem’. Em certo sentido, temos de admitir que esta afirmação é verdadeira! Sim, deus é verdadeiramente um produto da mente humana. O problema, porém, é saber de que deus se trata. Certamente não é o Deus vivo da Bíblia, mas apenas um substituto.
Imaginemos que hoje um homem desequilibrado comece a dar marteladas na estátua do David de Michelangelo em frente ao Palazzo della Signoria em Florença, e depois comece a gritar com um ar de triunfo : ‘Eu destruí o David de Michelangelo! O David não existe mais! O David não existe mais!’. Não sabe, pobre iludido, que este era apenas um modelo, uma cópia para turistas apressados, porque o verdadeiro David de Michelangelo, após um ataque do tipo que aconteceu no passado, tinha sido retirado de circulação e colocado em um lugar seguro na Galleria dell'Accademia. Foi o que aconteceu a Nietzsche quando, pela boca de um de seus personagens, ele proclamou : ‘Nós matamos Deus![1]. Ele não percebeu que não tinha matado o verdadeiro Deus, mas uma cópia de ‘gesso’ dele.
Basta uma simples observação para se convencer de que o ateísmo moderno não tem a ver com o Deus da fé cristã, mas com uma ideia deformada dele. Se a ideia do Deus Uno e Trino tivesse sido mantida viva na teologia (em vez de falar de um vago ‘Ser Supremo’) não teria sido tão fácil para Feuerbach fazer triunfar a sua tese de que Deus é uma projeção que o homem faz de si mesmo e de sua própria essência. Que necessidade teria o homem de se dividir em três : Pai, Filho e Espírito Santo? É o deísmo vago que é demolido pelo ateísmo moderno, não a fé no Deus uno e trino.
Mas vamos passar a outra coisa. Não estamos aqui para refutar o ateísmo moderno ou para um curso de teologia pastoral; estamos aqui para fazer um caminho de conversão pessoal. Que parte temos nós - refiro-me agora a ‘nós’ no sentido de nós que estamos aqui, de nós crentes -, na tremenda acusação da Bíblia contra a idolatria? De acordo com o que foi dito até agora, pareceria, de fato, que temos, acima de tudo, um papel de acusadores. Mas ouçamos bem o que segue na Carta de Paulo aos Romanos. Depois de ter arrancado a máscara do rosto do mundo, nela o Apóstolo arranca também a máscara do nosso rosto e vemos como.
Assim, és inescusável, ó homem, quem quer que sejas, que te arvoras em juiz. Naquilo que julgas a outrem, a ti mesmo te condenas; pois tu, que julgas, fazes as mesmas coisas que eles. Ora, sabemos que o juízo de Deus contra aqueles que fazem tais coisas corresponde à verdade. Tu, ó homem, que julgas os que praticam tais coisas, mas as cometes também, pensas que escaparás ao juízo de Deus?’  (Rm 2,1-3).
A Bíblia conta esta história. O rei Davi havia cometido um adultério; para encobri-lo, tinha feito morrer o marido da mulher na guerra, de modo que, naquele momento, tomá-la por esposa podia até parecer um ato de generosidade, por parte do rei, para com um soldado que havia morrido lutando por ele. Uma verdadeira cadeia de pecados. Então, aproximou-se dele o profeta Natã, enviado por Deus, e contou-lhe uma parábola (mas o rei não sabia que era uma parábola). Havia, na cidade, um homem muito rico que tinha rebanhos de ovelhas e havia também um homem pobre que tinha apenas uma ovelha muito querida para ele, da qual tirava o seu sustento e que dormia com ele. Um hóspede chegou ao rico e ele, economizando as suas ovelhas, pegou para si as ovelhas do pobre e mandou matá-las para preparar a mesa do hóspede. Ao ouvir esta história, a ira de Davi se desencadeou contra o homem e ele disse : ‘Quem fez isso merece morrer! Então Natan, abandonando de repente a parábola e apontando seu dedo para ele, disse a Davi : ‘Você é esse homem!’’ (cf. 2 Sam 12,1 ss).
Isso é o que o Apóstolo Paulo faz conosco. Depois de nos ter arrastado atrás dele numa justa indignação e horror perante a impiedade do mundo, passando do primeiro capítulo ao segundo capítulo da sua Carta, como se de repente se tivesse voltado para nós, repete-nos : ‘Tu és aquele homem!’ O reaparecimento, neste ponto, do termo ‘indesculpável’ (anapologetos), usado acima para os pagãos, não deixa dúvidas sobre as intenções de Paulo. Enquanto julgavas os outros - ele vem dizer -, te condenavas a ti mesmo. O horror que concebeste para com a idolatria é hora de voltá-lo contra ti próprio.
O ‘juiz’, no decorrer do capítulo dois, revela-se como o judeu que aqui, porém, é tomado, mais do que qualquer outra coisa, como um tipo. O ‘judeu’ é o não-grego, o não-pagão (cf. Rm 2, 9-10); é o homem piedoso e crente que, fortalecido pelos seus princípios e na posse de uma moral revelada, julga o resto do mundo e, julgando, sente-se seguro. Neste sentido, ‘Judeu’ é cada um de nós. Orígenes dizia até mesmo que, na Igreja, são os bispos, sacerdotes e diáconos, que são visados por estas palavras do Apóstolo, ou seja, os guias, os mestres[2].
O próprio Paulo experimentou esse choque quando, como fariseu, se tornou cristão, e por isso pode agora falar com tal certeza e mostrar aos crentes o caminho para sair do farisaísmo. Ele desmascara a estranha e frequente ilusão das pessoas piedosas e religiosas de se considerarem protegidas da ira de Deus, somente porque têm uma ideia clara do bem e do mal, conhecem a lei e, ocasionalmente, sabem como aplicá-la aos outros, enquanto, no que se refere a si mesmos, pensam que o privilégio de estar do lado de Deus ou, em todo caso, a ‘bondade’ e a ‘paciência’ de Deus, que conhecem bem, fazem uma exceção para eles.
Vamos imaginar esta cena. Um pai está corrigindo um de seus filhos por alguma transgressão; um outro filho, que cometeu a mesma falta, acreditando que iria ganhar a simpatia do pai e escapar da reprovação, começa a repreender também, em voz alta, o seu irmão, enquanto o pai esperava algo completamente diferente, ou seja, que ouvindo-o repreender o irmão e vendo a sua bondade e paciência para com ele, ele corresse para se jogar a seus pés, confessando que ele também era culpado da mesma falta e prometendo-lhe se corrigir.
Ou desprezas as riquezas da sua bondade, tolerância e longanimidade, desconhecendo que a bondade de Deus te convida ao arrependimento? Mas, pela tua obstinação e coração impenitente, vais acumulando ira contra ti, para o dia da cólera e da revelação do justo juízo de Deus’ (Rm 2,4-5).
Acontece como quando um jurista tem toda a intenção de analisar uma famosa sentença de condenação emitida no passado e que, de repente, observando melhor, ele percebe que a sentença também se aplica a ele e ainda está em pleno vigor : subitamente muda o humor e o coração deixa de ter a certeza de si mesmo. Aqui a palavra de Deus está engajada em um verdadeiro tour de force; ela deve inverter a situação de quem a está tratando. Não há escapatória aqui : devemos ‘desmoronar’ e dizer como Davi : ‘Eu pequei!’ (2 Sam 12,13), ou ocorre um endurecimento adicional do coração e a impenitência é fortalecida. Da escuta desta palavra de Paulo sai-se convertido ou endurecido.
Mas qual é a acusação específica que o Apóstolo faz contra os ‘piedosos’? Que - diz ele - façam ‘as mesmas coisas’ que julgam nos outros. Em que sentido ‘as mesmas coisas’? No sentido de materialmente as mesmas coisas? Isto também (cf. Rm 2,21-24); mas sobretudo as mesmas coisas, em termos de substância, que é a impiedade e a idolatria. O Apóstolo sublinha-o melhor no decurso do resto da sua Carta, quando denuncia a pretensão de se salvar pelas próprias obras e de se tornar assim os credores e de Deus o devedor.  Se tu, chega a dizer, observares a lei e fizeres todo tipo de obras boas, mas para afirmar a tua justiça, te colocas no lugar de Deus. Paulo só repete com outras palavras o que Jesus, no Evangelho, tentou dizer com a parábola do fariseu e do publicano no templo e de inúmeras outras maneiras.
Aplicamos tudo isso para nós cristãos, dado que, como dissemos, o adversário de Paulo não é tanto os hebreus como povo, mas o homem religioso no geral e no caso específico os assim chamados ‘judeus-cristãos’. Há uma idolatria oculta que mina o homem religioso. Se a idolatria é ‘adorar a obra das próprias mãos’ (cf. Is 2, 8; Os 14, 4), se idolatria é ‘colocar a criatura no lugar do Criador’, eu sou idólatra quando coloco a criatura - a minha criatura, a obra das minhas mãos - no lugar do Criador. A minha criatura pode ser a casa ou a igreja que construo, a família que crio, o filho que dei à luz (quantas mães, até mesmo cristãs, sem perceber, fazem do seu filho, especialmente se filho único, o seu deus!); pode ser o instituto religioso que eu fundei, o cargo que eu ocupo, o trabalho que eu faço, a escola que eu dirijo, para mim que vos falo, o livro que escrevi precisamente sobre a Carta aos Romanos.
No fundo de toda idolatria está a autolatria, o culto a si próprio, o amor próprio, o colocar-se no centro e no primeiro lugar no universo, sacrificando a ele todo o resto. Basta que aprendamos a nos escutar enquanto falamos para descobrir como se chama o nosso ídolo, porque, como diz Jesus, ‘a boca fala do que o coração está cheio’ (Mt 12, 34). Nos daremos conta de quantas das nossas frases começam com a palavra ‘eu’.
O resultado é sempre a impiedade, o não glorificar a Deus, mas sempre e só a si mesmo, o fazer servir também o bem, também o serviço que prestamos a Deus - até Deus! - ao seu próprio sucesso e afirmação pessoal. Muitas árvores altas têm o talo, uma raiz central que desce perpendicularmente debaixo do caule e torna a planta firme e inabalável. Até que não se coloque o machado naquela raiz, pode-se cortar todas as raízes laterais, mas a árvore não cai. Aquele lugar é muito estreito, não há lugar para dois : ou há o meu eu, ou há Cristo.
Talvez, voltando a mim próprio, estou pronto, neste momento, para reconhecer a verdade, ou seja, que até agora tenho vivido ‘para mim mesmo’, que eu também estou envolvido no mistério da impiedade. O Espírito Santo ‘convenceu-me do pecado’. Começa para mim o milagre sempre novo da conversão. Se o pecado, como nos explicou Agostinho, consistiu num voltar-se a si mesmo, a conversão mais radical consiste em ‘endireitar-nos’ e voltar-nos a Deus. Não podemos fazê-lo no decurso de um sermão ou de uma Quaresma; mas podemos, pelo menos, tomar a decisão séria de o fazer, e isso já é, de alguma forma, para Deus, como se o tivéssemos feito.
Se eu me coloco do lado de Deus, contra o meu ‘eu’, serei seu aliado; serão dois, então, combatendo contra o mesmo inimigo e a vitória está assegurada. O nosso eu, como um peixe arrancado de sua água, ainda pode mover-se e debater-se por um pouco, mas está destinado a morrer. Mas não é uma morte, mas um nascimento. ‘Quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas quem perder a sua vida por minha causa, encontrá-la-á’ (Mt 16, 25). Na medida em que o homem velho morre, ‘o novo homem nasce em nós, criado segundo Deus em justiça e verdadeira santidade’ (Ef 4 :24). O homem ou a mulher que todos nós secretamente queremos ser.  Que Deus nos ajude a realizar sempre de novo o verdadeiro empreendimento da vida que é a nossa conversão.

Fonte  :
*Artigo na íntegra

segunda-feira, 25 de março de 2019

Uma técnica de meditação útil usada por monges irlandeses da antiguidade


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 CELTIC CROSSES
*Artigo de Philip Kosloski,
escritor e designer gráfico



Eles eram amplamente conhecidos por suas vidas intensas de ascetismo e se tornaram especialistas em oração e união com Deus.

Uma maneira de alcançar seus objetivos de comunhão espiritual com Deus era imitar as práticas dos Padres do Deserto – monges e freiras que viviam no deserto egípcio e eram altamente considerados por sua santidade.

Em particular, os monges responderam ao chamado de São Paulo para ‘orar sem cessar’, recitando uma oração encontrada em um dos Salmos, destacada pelo monge do século IV São João Cassiano.

A oração vem do Salmo 70 e tradicionalmente era orada enquanto se inspirava e expirava, tornando-se parte da respiração de um monge. Isso permitia que um monge permanecesse em constante estado de contemplação.

O trecho é normalmente traduzido como ‘Ó Deus, não vos afasteis de mim. Meu Deus, apressai-vos em me socorrer’, e atualmente faz parte da Liturgia das Horas da Igreja, que sacerdotes, religiosos e leigos continuam a rezar.

São João Cassiano escreveu em suas Conferências que o monge deveria rezar esta oração ‘incessantemente, revolvendo-a em seu coração, tendo se livrado de todos os outros tipos de pensamento ; pois, se não pode mantê-los sob controle, que ao menos liberte-se assim de todas as preocupações e ansiedades corporais’.

Os monges irlandeses exercitariam essa prática indo para algum lugar longe da civilização, e então limpariam todos os pensamentos mundanos antes de se engajar nessa oração ‘incessante’. Podemos imitar seu exemplo encontrando aquele ‘quarto interior’ dentro de nossa casa ou apartamento, ou mesmo caminhando em um parque.

Então, podemos tentar esvaziar nossa mente de todos os outros pensamentos e nos concentrar na oração : ‘Ó Deus, não vos afasteis de mim. Meu Deus, apressai-vos em me socorrer’, repetindo-a constantemente, ‘revolvendo-a’ em nossos corações.

Desta forma, podemos abrir a porta para a presença de Deus e ouvir atentamente o que Ele nos diz. É um belo exercício, que tem uma rica tradição e tem sido usado por incontáveis ​​monges e freiras por séculos.’


Fonte :

sexta-feira, 22 de março de 2019

‘Retorne a si mesmo!’ - Segunda pregação da Quaresma de 2019

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

  MODLITWA
*Artigo de Pe. Raniero Cantalamessa, OFMCAP,
pregador oficial da Casa Pontifícia (Vaticano)
Tradução : Thácio Siqueira
Santo Agostinho lançou um apelo que, muitos séculos depois, manteve intacta a sua relevância : ‘In te ipsum redi. In interiore homine habitat veritas’ : ‘Retorne a si mesmo. A verdade habita no homem interior’. Em um discurso ao povo, com insistência ainda maior, ele exorta :
Entrai de novo em vosso coração! Onde quereis ir para longe de vós? Ao ir longe, vos perdereis. Por que vos dirigis a estradas desertas? Retornai do vosso deambular que vos levastes para fora da estrada; voltai para o Senhor. Ele está pronto. Em primeiro lugar, retornai ao vosso coração, vós que vos tornastes estranhos a vós mesmos, vagando lá fora : não vos conheceis a vós mesmos, e procurais aquele que vos criou! Voltai, retornai ao coração, desprendei-vos do vosso corpo… Retornai ao coração : ali examinai o que se pode perceber de Deus, porque ali se encontra a imagem de Deus; na interioridade do homem mora Cristo, na vossa interioridade vos renovais segundo a imagem de Deus’.
Continuando o comentário iniciado no Advento sobre o versículo do Salmo ‘A minha alma tem sede do Deus vivo’, refletimos sobre o ‘lugar’ onde cada um de nós entra em contato com o Deus vivo. No sentido universal e sacramental este ‘lugar’ é a Igreja, mas no sentido pessoal e existencial é o nosso coração, o que a Escritura chama ‘o homem interior’, ‘o homem escondido no coração’. Esta escolha é impulsionada também pelo tempo litúrgico em que nos encontramos.  Jesus nestes quarenta dias está no deserto, e é aí que devemos chegar até ele. Nem todos podem ir para um deserto exterior; mas todos podemos nos refugiar no deserto interior que é o nosso coração. ‘Cristo habita na interioridade do homem’, disse-nos Agostinho.
Se quisermos uma imagem plástica ou um símbolo que nos ajude a realizar esta conversão interior, o Evangelho oferece-nos com o episódio de Zaqueu. Zaqueu é o homem que quer conhecer Jesus e, para isso, sai de casa, entra na multidão, sobe a uma árvore… Procura-o fora. Mas, eis que, quando Jesus passou, viu-o e disse-lhe : ‘Zaqueu, desce imediatamente, porque hoje tenho de entrar em tua casa’ (Lc 19, 5). Jesus traz Zaqueu de volta à sua casa e ali, no segredo, sem testemunhas, acontece o milagre : Ele conhece verdadeiramente quem é Jesus e encontra a salvação.
Nós nos parecemos muito com Zaqueu. Procuramos Jesus e o procuramos fora, nas ruas, na multidão. E é o próprio Jesus quem nos convida a voltar à nossa casa em nossos corações, onde Ele deseja encontrar-se conosco.
Interioridade, um valor em crise
A interioridade é um valor em crise. A ‘vida interior’ que antes era quase sinônimo de vida espiritual, agora tende a ser vista com desconfiança. Há dicionários de espiritualidade que omitem completamente as vozes ‘interioridade’ e ‘recolhimento’ e outros que as trazem, mas não sem expressar algumas reservas. Por exemplo, nota-se que, afinal, não há nenhum termo bíblico que corresponda exatamente a estas palavras; que poderia ter havido, neste ponto, uma influência decisiva da filosofia platônica; que poderia favorecer o subjetivismo e assim por diante.
Um sintoma revelador deste declínio do gosto e da estima pela interioridade é o destino da Imitação de Cristo, que é uma espécie de manual para a introdução à vida interior. De livro mais amado entre os cristãos, depois da Bíblia, ele passou, em poucas décadas, a ser um livro esquecido.
Algumas das causas desta crise são antigas e inerentes à nossa própria natureza. A nossa ‘composição’, isto é, o nosso ser feito de carne e espírito, nos faz como um plano inclinado, mas inclinado para o exterior, o visível e o múltiplo. Assim como o universo, após a explosão inicial (o famoso Big Bang), também nós estamos em fase de expansão e de afastamento do centro. ‘O olho não para de olhar, nem o ouvido se cansa de ouvir’, diz as Escrituras (Ec 1, 8). Estamos perpetuamente ‘saindo’ por aquelas cinco portas ou janelas que são nossos sentidos.
Outras causas são mais específicas e atuais. Uma delas é a emergência do ‘social’ que é certamente um valor positivo do nosso tempo, mas que, se não for reequilibrado, pode acentuar a projeção ao exterior e a despersonalização do homem. Na cultura secularizada e leiga dos nossos tempos o papel que desempenhava a interioridade cristã foi assumido pela psicologia e pela psicanálise, que, no entanto, se detêm no inconsciente do homem e, em todo caso, na sua subjetividade, independentemente da sua íntima ligação com Deus.
No campo eclesial, a afirmação, com o Concílio, da ideia de uma ‘Igreja para o mundo’ fez com que o antigo ideal de fugir do mundo fosse por vezes substituído pelo ideal de fugir para o mundo. O abandono da interioridade e a projeção para o exterior é um aspecto – e entre os mais perigosos – do fenômeno do secularismo. Houve até mesmo uma tentativa de justificar teologicamente esta nova orientação que tomou o nome de teologia da morte de Deus, ou da cidade secular. Deus – se fala – deu-nos, ele próprio, um exemplo. Encarnando-se, esvaziou-se, saiu de si mesmo, da interioridade trinitária, ‘mundanizou-se’, isto é, dispersou-se no profano. Tornou-se um Deus ‘fora de si mesmo’.
A interioridade na Bíblia
Como sempre, no cristianismo, a crise de um valor tradicional deve ser respondida realizando uma recapitulação, isto é, retomando as coisas ao seu início para levá-las a uma nova realização. Em outras palavras, trata-se de partir novamente da palavra de Deus e, à sua luz, de redescobrir, na própria Tradição, o elemento vital e perene, libertando-o dos elementos caducos com os quais se revestiu ao longo dos séculos. Foi isto que o Concílio Vaticano II seguiu como método em todo o seu trabalho. Como na natureza, na primavera, a árvore é podada dos ramos da estação anterior para possibilitar uma nova floração do tronco, assim também nós devemos fazer na vida da Igreja.
Já os profetas de Israel haviam lutado para deslocar o interesse do povo das práticas exteriores de culto e do ritualismo para a interioridade da relação com Deus. ‘Este povo – lemos em Isaías – vem a mim apenas com palavras e honra-me com os lábios, enquanto o seu coração está longe de mim e o culto que me prestam é uma enxurrada de costumes humanos’ (Is 29, 13). A razão é que ‘o homem olha para as aparências, mas Deus examina o coração’ (1 Sam 16,7). ‘Rasgai o vosso coração, não as vossas vestes, lemos noutro profeta’ (Gl 2, 13).
É o tipo de reforma religiosa que Jesus assumiu e fez frutificar. Alguém que examine a obra de Jesus e as suas palavras, fora de preocupações dogmáticas, do ponto de vista da história das religiões, observa antes de tudo uma coisa : que ele quis renovar a religiosidade judaica, muitas vezes acabada nas águas rasas do ritualismo e do legalismo, recolocando no centro dela uma relação íntima e vivida com Deus. Ele não se cansa de se referir àquela esfera ‘secreta’, o ‘coração’, onde se faz o verdadeiro contato com Deus e com a sua vontade viva e da qual depende o valor de cada ação (cf. Mt 15, 10 ss.). O chamado à interioridade encontra a sua motivação bíblica mais profunda e objetiva na doutrina da inabitação de Deus, Pai, Filho e Espírito Santo, na alma do batizado.
Com o passar do tempo, na visão bíblica da interioridade cristã, algo ficou obscuro, contribuindo para a crise de que falei acima. Em certas correntes espirituais, como em alguns místicos do Reno, o caráter objetivo desta interioridade havia sido obscurecido. Eles insistem em um retorno ao ‘fundo da alma’ através do que eles chamam de ‘introversão’. Mas nem sempre fica claro se este ‘fundo da alma’ pertence à realidade de Deus ou à do eu, ou, pior ainda, se ambos estão, ao mesmo tempo, panteisticamente fundidos.
Nos últimos séculos, o aspecto do método tinha acabado por prevalecer sobre o conteúdo da interioridade cristã, por vezes reduzindo-a a uma espécie de técnica de concentração e de meditação, mais do que ao encontro com Cristo vivo no coração, embora não tenham faltado em nenhuma época realizações esplêndidas da interioridade cristã. A Beata Isabel da Trindade está na linha da mais pura interioridade objetiva, quando escreve : ‘Encontrei o céu na terra, porque o céu é Deus e Deus está no meu coração’.
Retorno à interioridade
Mas voltemos ao presente. Por que é urgente voltar a falar de interioridade e redescobrir o seu sabor? Vivemos numa civilização toda projetada para o exterior. O que se observa no âmbito físico ocorre no âmbito espiritual. O homem envia suas sondas para a periferia do sistema solar, fotografa o que está em planetas distantes, mas ignora o que se agita a poucos milhares de metros abaixo da crosta terrestre e, portanto, não consegue prever terremotos e erupções vulcânicas. Também sabemos, agora em tempo real, o que acontece no outro extremo do mundo, mas ignoramos o que se agita no fundo do nosso coração. Vivemos como numa centrifugadora em ação a toda a velocidade.
Fugir, isto é, sair, é uma espécie de palavra de ordem. Existe até uma literatura de escapismo, espetáculos de evasão. A evasão está, por assim dizer, institucionalizada. O silêncio assusta. Não se consegue viver, trabalhar, estudar sem voz ou música por perto. Há uma espécie de horror vacui, de medo do vazio, que nos leva a ficar atordoados.
Tive a oportunidade de pisar uma vez numa discoteca, convidado para conversar com os jovens ali reunidos. Bastou-me para ter uma ideia do que reina ali : a orgia do barulho, o ruído ensurdecedor como droga. Na saída da discoteca foram feitas pesquisas entre os jovens e à pergunta : ‘Por que vocês se reúnem neste lugar?’, responderam alguns : ‘Para não pensar!’. Mas é fácil imaginar a que manipulações estão expostos os jovens que desistiram de pensar.
Que sejam sobrecarregados de trabalhos; ocupem-se eles de suas tarefas e não deem ouvidos às palavras de Moisés!’ foi a ordem do Faraó do Egito (cf. Ex 5, 9). A ordem tácita, mas não menos peremptória, dos faraós modernos é : ‘Sobrecarreguem de barulho estes jovens, que fiquem atordoados, para que não pensem, não façam escolhas livres, mas sigam a moda que nos convém, comprem o que dizemos, pensem como queremos!’. Para um setor muito influente da nossa sociedade, o do entretenimento e da publicidade, os indivíduos contam apenas como ‘espectadores’, números que aumentam a ‘audiência’ dos programas.
Temos de nos opor a este esvaziamento com um ‘não’ resoluto. Os jovens são também os mais generosos e dispostos a rebelar-se contra a escravidão e, de fato, há fileiras de jovens que reagem a este assalto e, em vez de fugir, procuram lugares e tempos de silêncio e de contemplação para encontrarem de vez em quando a si próprios e, em si, a Deus. São muitos, mesmo que ninguém fale deles. Alguns fundaram casas de oração e de contínua adoração eucarística e, através da Rede, dão a muitos a possibilidade de se unirem a eles.
A interioridade é o caminho para uma vida autêntica. Hoje fala-se muito de autenticidade e se faz dela o critério de sucesso ou fracasso da vida. Talvez o filósofo mais famoso do século passado, Martin Heidegger, tenha colocado este conceito no centro do seu sistema. Para o cristão, a verdadeira autenticidade só pode ser alcançada vivendo o ‘coram Deo’, na presença de Deus.
Um vaqueiro – escreve Kierkegaard – que, se possível, é um ‘eu’ diante das vacas, é um ‘eu’ muito baixo; um soberano que é um ‘eu’ diante de seus servos, o mesmo. Nenhum deles é um ‘eu’; em ambos os casos falta a medida… Mas que realidade infinita o ‘eu’ não adquire, adquirindo consciência de existir diante de Deus, tornando-se um eu humano, cuja medida é Deus! […] Fala-se tanto de vidas desperdiçadas. Mas desperdiçada é apenas a vida daquele homem que nunca percebeu, porque nunca teve, no sentido mais profundo, a impressão de que existe um Deus e que ele, precisamente ele, o seu eu, está diante deste Deus’.   
O Evangelho nos conta a história de um desses ‘vaqueiros’. Havia fugido da casa paterna e dissipado os seus bens e a sua juventude, vivendo dissolutamente. Mas um dia ‘voltou a si mesmo’. Reexaminou a sua vida, preparou as palavras a dizer e partiu a caminho da casa de seu pai (cf. Lc 15, 17). A sua conversão ocorreu neste momento, antes de se mudar, enquanto estava sozinho no meio de uma manada de porcos. Aconteceu no momento em que ‘reentrou em si mesmo’. Depois disso, não fez nada além de executar o que tinha decidido. A conversão externa foi precedida da conversão interna e recebeu o seu valor da mesma. Quanta fecundidade nesse ‘retornar a si mesmo!’.
Não são apenas os jovens que estão sobrecarregados com a onda de exterioridade. O mesmo acontece com as pessoas mais comprometidas e ativas da Igreja. Até os religiosos! Dissipação é o nome da doença mortal que nos mina a todos. Acaba-se por ser como um vestido de cabeça para baixo, com a alma exposta aos quatro ventos. Em um discurso proferido aos superiores de uma ordem religiosa contemplativa, São Paulo VI disse :
Hoje estamos em um mundo que parece estar lutando com uma febre que se infiltra até no santuário e na solidão. O barulho e o ruído invadiram quase tudo. As pessoas já não conseguem se recolher. Nas garras de mil distrações, elas habitualmente dissipam as suas energias atrás das diferentes formas da cultura moderna. Jornais, revistas, livros invadem a intimidade das nossas casas e dos nossos corações. É mais difícil do que nunca encontrar a ocasião para aquele recolhimento em que a alma pode estar plenamente ocupada em Deus’.
Santa Teresa de Ávila escreveu uma obra intitulada O Castelo Interior, que é certamente um dos frutos mais maduros da doutrina cristã da interioridade. Mas há também, infelizmente, um ‘castelo exterior’ e hoje vemos que é possível fechar-se também neste castelo. Trancados fora de casa, incapazes de entrar. Prisioneiros da exterioridade! Santo Agostinho descreve assim a sua vida antes da conversão :
Estavas dentro de mim e eu fora e eu te procurava aqui em baixo, me jogando deformado, sobre essas formas de beleza que são as suas criaturas. Tu estavas comigo, mas eu não estava contigo. Mantinham-me afastado de ti aquelas criaturas que não existiram se não fosse porque as fizeste existir’.
Quantos de nós deveríamos repetir esta amarga confissão : ‘Estavas dentro de mim, mas eu estava fora!’ Há quem sonhe com a solidão, mas só sonham com ela. Amam-na, desde que permaneça no sonho e nunca se traduza em realidade. Na realidade, fogem dela, têm medo dela. O desaparecimento do silêncio é um sintoma grave. Foram removidos, quase que totalmente, aqueles típicos cartazes que em todos os corredores das casas religiosas intimavam em latim : Silentium!  Creio que em muitos ambientes religiosos exista o dilema : Ou silêncio ou morte! Ou encontramos um clima e tempos de silêncio e interioridade ou é o esvaziamento espiritual progressivo e total. Jesus chama o inferno de ‘as trevas exteriores’ (cf. Mt 8,12) e esta designação é muito significativa.
Não nos deixemos enganar pela objeção habitual : mas Deus se encontra fora, em nossos irmãos, nos pobres, na luta pela justiça; se encontra na Eucaristia que está fora de nós, na palavra de Deus… Tudo verdade. Mas onde é que tu realmente ‘encontras’ o teu irmão e os pobres, se não no teu coração? Se só os encontras fora, não é um ‘eu’, uma pessoa que encontras, mas uma coisa; é mais um choque do que um encontro. Onde encontras o Jesus da Eucaristia senão na fé, isto é, dentro de ti? Um verdadeiro encontro entre pessoas só pode acontecer entre duas consciências, duas liberdades, isto é, entre duas interioridades.
É também errado pensar que a insistência na interioridade pode prejudicar o empenho ativo pelo Reino e pela justiça; pensar, em outras palavras, que afirmar o primado da intenção pode prejudicar a ação. A interioridade não se opõe à ação, mas a uma certa forma de agir. Longe de diminuir a importância de agir por Deus, a interioridade a fundamenta e a preserva.
O eremita e o seu eremitério
Se quisermos imitar o que Deus fez encarnando-se, imitemo-lo verdadeiramente até ao extremo. É verdade que ele se esvaziou, saiu de si mesmo, da interioridade da Trindade, para vir ao mundo. Mas sabemos como isso aconteceu : ‘O que era permaneceu, o que não era assumiu’, diz um antigo adágio sobre a Encarnação. Sem abandonar o seio do Pai, o Verbo veio entre nós. Nós também vamos em direção ao mundo, mas sem nunca nos abandonarmos completamente. ‘O homem interior – diz a Imitação de Cristo – recolhe-se espontaneamente porque nunca se dispersa completamente nas coisas exteriores. Ele não é prejudicado pela atividade externa e pelas ocupações necessárias, mas sabe se adaptar às circunstâncias’.
Mas procuremos também ver como fazer, concretamente, para redescobrir e preservar o hábito da interioridade. Moisés era um homem muito ativo. Mas nós lemos que ele fez construir uma tenda portátil e em cada estágio do êxodo armava a tenda fora do acampamento e regularmente entrava nela para consultar o Senhor. Ali, o Senhor falava com Moisés ‘face a face, como um homem fala ao outro’ (Ex 33,11).
Isto nem sempre pode ser feito. Nem sempre é possível retirar-se a uma capela ou a um lugar solitário para reencontrar o contato com Deus. São Francisco de Assis sugere outra medida mais acessível. Ao enviar seus frades pelas ruas do mundo, dizia : ‘Temos um eremitério sempre conosco onde quer que vamos e quando quisermos podemos, como eremitas, voltar a esse eremitério. ‘O irmão corpo é o eremitério e a alma a eremita que  vive dentro dele para rezar a Deus e meditar’. É a mesma recomendação que Santa Catarina de Siena expressava com a imagem da ‘cela interior’ que todos levam consigo e na qual é sempre possível retirar-se com o pensamento, para reconectar um contato vivo com a Verdade que vive em nós.
É a esta cela invisível, não delimitada por muros – escreve Santo Ambrósio – que Jesus nos convida com as palavras : ‘Quando orares, entra no teu quarto e, quando a porta estiver fechada, ora a teu Pai em segredo’ (Mt 6, 6).
No início escutamos o apelo sincero de Santo Agostinho para voltar ao coração, terminamos escutando outro apelo igualmente sincero na mesma direção, o que Santo Anselmo de Aosta dirige ao leitor no início de seu Proslogion :
Vamos, homenzinho, abandona as tuas ocupações por um momento, esconde-te um pouco dos teus pensamentos tumultuados. Abandone agora as suas pesadas preocupações, adie os seus compromissos laboriosos. Dedique-se a Deus por um tempo e descanse nele. Entra na câmara do teu espírito, exclui tudo dela, exceto Deus e tudo o que te ajude a buscá-lo, e quando fechardes a porta (Mt 6, 6), buscai-o. Dize agora, ó meu coração, na tua totalidade, dize agora a Deus : ‘Busco o teu rosto; o teu rosto, ó Senhor, eu busco’ (Sl 27,8).
 Com estes desejos e intenções começamos o nosso dia de trabalho, ao serviço da Igreja.


quarta-feira, 20 de março de 2019

Sobre a pressa e a perseverança


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Diante de um mundo tão apressado, torna-se importante atentar para os processos que ocorrem no mundo natural.
*Artigo de Fabrício Veliq,
teólogo protestante


Nas relações interpessoais também é possível perceber o mesmo fenômeno. Não é difícil ouvir relatos de pessoas que dizem demandar do companheiro ou companheira mudanças rápidas e de um dia para o outro, sem levar em conta todo um processo que, muitas vezes, determinadas pessoas necessitam para readaptações e adequações a um novo modo de viver.

As empresas, formadas por pessoas, seguem na mesma toada e, assim, já querem que seus funcionários e funcionárias cheguem prontas para a função que farão. Treinamentos, quando existem, devem ser feitos de maneira ‘rápida e eficiente’, uma vez que ‘tempo é dinheiro’ e, portanto, manter um funcionário ou funcionária em treinamento por mais de um dia, em alguns lugares, chega a ser um desatino para a boa gestão.

Quando se move para a esfera religiosa, é possível perceber também esse tipo de comportamento. Muitas pessoas, quando pensam na relação com Deus e com o sagrado, fazem-no de acordo com os parâmetros da sociedade e urgente na qual se vive. Assim, não é difícil encontrar pessoas que desejam uma intimidade com Deus e com a comunidade, mas sem estarem dispostas a passar tempo com ela, nos círculos de convivência da Igreja ou nos grupos de estudos bíblicos e orações. Diante das inúmeras coisas que precisam ser feitas nesse mundo sempre correndo, a própria construção dos relacionamentos duradouros também são vistos sob essa perspectiva.

Dessa forma, deixa-se de lado um dos princípios básicos para conhecimento de qualquer coisa ou pessoa – a dedicação do tempo. Não se criam amigos e amigas sem dedicação, sem esforço e sem perseverança. De maneira análoga, caso se queira ser amigo ou amiga de Deus, é necessário estar disposto a passar tempo com ele e se interessar pelas questões as quais ele também se interessa. Como toda amizade, a amizade com Deus também demanda um caminhar continuo em direção a Ele.

Os próprios Evangelhos, em suas narrativas, mostram como Jesus exorta seus discípulos para o princípio de que aqueles e aquelas que perseverarem até o fim serão salvos/as, o que pressupõe que o Reino de Deus não é alcançado com pressa, mas com constância. Diversas parábolas de Jesus, ao falar a respeito do Reino de Deus, também trazem essa perspectiva. Esse Reino, entre outras metáforas, é comparado tanto à semente de mostarda quanto ao fermento que leveda toda massa. Nos dois casos, é possível perceber tanto a estreita ligação que Jesus faz com os fenômenos naturais do dia a dia das pessoas com quem ele falava quanto a perspectiva da espera necessária para alcançar esse Reino.

Tanto na agricultura quanto nos processos de cozinhar alimentos, a categoria da paciência se torna imprescindível. Não há nada (aqui, considerando de maneira natural), que se possa fazer para que uma planta cresça mais rápido, ou para que determinado alimento chegue ao ponto desejado, a não ser esperar pelo tempo necessário para alcançar o seu termo. Tentar apressá-los pode ser danoso para a comida e danoso para a nova planta que deseja florescer.

Diante de um mundo tão apressado, torna-se importante atentar para os processos que ocorrem no mundo natural e que revelam grande lição para a humanidade : é necessária a perseverança e paciência para se alcançar certas coisas, tais como intimidade e conhecimento.

A perseverança é algo a ser aprendida. Aqueles e aquelas que a aprendem, mesmo em momentos difíceis, conseguem se lembrar de que não chegam ao final de uma corrida longa as que saem em disparada, mas sim as que mantêm a constância de suas passadas.’


Fonte :