*Artigo de Massimo Faggioli,
colunista,
Tradução : Moisés Sbardelotto
Esse
documento foi um ataque velado contra o papa, mesmo que não o nomeasse. As
dúvidas que alguns cardeais continuam levantando sobre a ortodoxia do papa são,
entre outras coisas, um sinal de que a trajetória básica desse pontificado
permanece a mesma, apesar da crise dos abusos sexuais.
Um
ano após a sua surpreendente visita ao Chile e ao Peru em janeiro de 2018,
Francisco lidou com a crise dos abusos ao convocar uma reunião sem precedentes
de todos os presidentes das Conferências Episcopais no Vaticano. No entanto, o
papa não abriu mão de suas outras prioridades, uma das quais é melhorar as
relações da Igreja com o Islã e o mundo árabe.
A
viagem em fevereiro de Francisco aos Emirados Árabes Unidos foi um sinal de que
ele continua comprometido com esse projeto. Não foi a primeira dessas viagens
(em 2017, ele foi ao Cairo para uma conferência de paz em al-Azhar); nem será a
última (neste mês, ele viajará para o Marrocos).
A
visita aos Emirados Árabes Unidos foi controversa dentro do Vaticano : altas
autoridades da Cúria se perguntaram se não teria sido melhor para Francisco ir
ao Catar e Omã – ou ao Bahrein, cujo soberano convidou o papa quatro anos
atrás. Francisco escolheu os Emirados Árabes Unidos porque queria continuar seu
diálogo com o Grão-Imã de al-Azhar, o egípcio Ahmed el-Tayeb, que organizou o
encontro inter-religioso em Abu Dhabi.
O
encontro foi promovido pelo Conselho
Muçulmanos de Anciãos com sede em Abu Dhabi e foi promovido como parte
fundamental do ‘Ano da Tolerância’
dos Emirados Árabes Unidos (em 2016, o primeiro-ministro dos Emirados Árabes
Unidos, xeique Mohammed bin Rashid Al Maktoum, anunciou criação de um ‘ministro da felicidade’ e de um ‘ministro da tolerância’).
Francisco
também pode ter desejado dar maior visibilidade à significativa população
católica dos Emirados Árabes Unidos – perto de um milhão –, quase todos
trabalhadores migrantes da Ásia. A situação deles é melhor do que a das
minorias religiosas em alguns outros países de maioria árabe e muçulmana, mas,
mesmo assim, é precária. A tolerância religiosa de que eles desfrutam ainda é
bastante limitada para os padrões ocidentais.
Ao
planejar suas visitas papais, Francisco sempre deu atenção especial a países
onde os católicos e cristãos são uma pequena minoria. Na Península Arábica, os
católicos romanos vivem como uma minoria no berço do Islã. Eles também são uma
minoria dentro de uma minoria : os católicos de rito romano são apenas uma das
muitas comunidades cristãs antigas. A viagem de Francisco aos Emirados Árabes
Unidos serviu para ressaltar a diversidade das tradições cristãs no Oriente
Médio, algumas das quais remontam aos primeiros séculos da Igreja.
A
viagem de Francisco aos Emirados foi significativa por três razões. A primeira
tem a ver com a política. Ao visitar os Emirados Árabes Unidos, o Papa
Francisco deu nova visibilidade não só aos cristãos de lá, mas também às
iniciativas políticas do governo, que, apesar de suas reformas, dificilmente é
um emblema da democracia liberal.
O
emir de Abu Dhabi nomeia o primeiro-ministro, que consulta um conselho federal
de 40 membros. A legislação se baseia na sharia, que prescreve a pena de morte
para vários crimes. Residentes nascidos no exterior representam mais de 80% da
população, mas seus direitos humanos básicos muitas vezes não são respeitados.
Havia
um alto risco de que a visita do papa fosse manipulada pelo governo dos
Emirados Árabes Unidos para contrastar sua versão relativamente tolerante do
Islã com a de alguns de seus vizinhos. Mas esse contraste pode ser enganoso,
especialmente no Ocidente. Os Emirados Árabes Unidos gastam uma enorme quantia
de seu orçamento em sistemas de armas e, junto com a Arábia Saudita, financiam
a guerra brutal contra os Houthis no Iêmen.
Mas
seria um erro entender a visita de Francisco como um endosso ao regime. Com
Francisco, o Vaticano tem ido ao encontro de países em todo o mundo árabe,
incluindo alguns com históricos ainda mais duvidosos em relação aos direitos
humanos.
Em
2018, poucas semanas antes de sua morte em um hospital dos Estados Unidos, o
homem de referência de Francisco para o diálogo com o mundo muçulmano e árabe,
o cardeal francês Jean-Louis Tauran, viajou para Riad na Arábia Saudita. Lá ele
se encontrou com o rei Salman – foi o primeiro encontro entre um governante
saudita e uma autoridade católica. Mas essa foi apenas a mais recente de uma
série de encontros entre altos funcionários sauditas e representantes da Igreja
Católica, e nenhum deles implicou um endosso vaticano ao regime saudita.
O
papa não é ingênuo e deixou bem clara a sua posição sobre a guerra no Iêmen. De
fato, pouco antes de deixar o Vaticano para voar para os Emirados, ele implorou
na oração do Ângelus na Praça de São Pedro pôr um fim àquela guerra, plenamente
ciente do envolvimento dos Emirados Árabes Unidos. Francisco sempre esteve
disposto a conversar com alguém disposto a conversar, incluindo líderes
políticos com mãos sujas. Faz parte de seu engajamento global, de Raúl Castro
em Cuba a Aung San Suu Kyi em Mianmar.
Mas
é claro que o principal significado da viagem era religioso. Ela marcou um novo
estágio nas relações da Igreja com o Islã. As viagens de Francisco ao Marrocos
e aos Emirados Árabes Unidos – aproximadamente as extremidades geográficas do
mundo muçulmano de fala árabe – ocorreram durante o aniversário de 800 anos do
encontro entre São Francisco e o Sultão. Essas visitas fazem parte de um
esforço contínuo para melhorar as relações inter-religiosas que começaram com o
Vaticano II.
Como
Francisco assinalou durante uma coletiva de imprensa em voo, o Documento sobre a Fraternidade Humana
que ele e Ahmed el-Tayeb assinaram está perfeitamente de acordo com o
ensinamento conciliar : ‘Do ponto de
vista católico, o documento não se afastou um milímetro de Vaticano II, que
também é citado algumas vezes. O documento foi feito no espírito do Vaticano II’.
Se
há uma diferença entre o Papa Francisco e seus antecessores sobre essa questão,
é sua ênfase na fraternidade : mas isso também pode ser rastreado até o
Vaticano II. Embora a palavra ‘diálogo’
represente algo como um instrumento de relações inter-religiosas, toda a
intuição do Vaticano II, desde o momento em que João XXIII o anunciou em 1959
até a declaração Nostra aetate, que
foi aprovada nas últimas semanas do Concílio em 1965, teve a ver com a
fraternidade da única família humana.
Em
um sentido técnico, o Papa Francisco nunca se envolveu em discussões teológicas
que promovessem o diálogo inter-religioso, no qual houve poucos avanços nos últimos
anos. Em vez disso, ele se concentrou em ressaltar os valores que os membros de
outras comunidades religiosas compartilham com os cristãos.
A
Al-Azhar é uma das instituições teológicas de maior prestígio no islamismo
sunita, mas seria um erro considerá-la como o Vaticano do Islã. O imã el-Tayeb
é tanto um conservador quanto um reformador, que sofre a desconfiança tanto dos
muçulmanos tradicionalistas quanto dos progressistas. Ele é um adversário da Irmandade Muçulmana. Ele falou muito
duramente sobre Israel. Ele rejeitou o terrorismo e foi prestar suas homenagens
às vítimas do massacre de 2015 no Bataclan, em Paris. A relação de Francisco
com el-Tayeb poderia se tornar uma fonte de divisão entre os muçulmanos e até
mesmo entre os sunitas. Mas, pelo menos por enquanto, el-Tayeb é considerado o
melhor interlocutor muçulmano de Francisco.
Por
fim, a viagem de Francisco aos Emirados Árabes Unidos tem um significado
teológico dentro da própria Igreja Católica. O Documento sobre a Fraternidade Humana, assinado por Francisco e
el-Tayeb em Abu Dhabi, levantou novas preocupações entre aqueles que já
suspeitavam da ortodoxia deste papa. Em uma Igreja ainda majoritariamente
ratzingeriana, em que a clareza teológica é entendida como a exigência de uma
rejeição de qualquer aparência de conciliação, um documento conjunto assinado
pelo Grão-Imã de al-Azhar estava fadado a causar polêmica.
Mas,
comparado com a declaração conjunta de fevereiro de 2016 assinada por Francisco
e pelo patriarca de Moscou em Cuba, o Documento
sobre a Fraternidade Humana mostra de forma bastante clara as suas raízes
na tradição católica romana e é pelo menos tão desafiador para os muçulmanos
quanto para os católicos. Ecoando o segundo parágrafo da Nostra aetate, o documento afirma que ‘o pluralismo e as diversidades de religião, de cor, de sexo, de raça e
de língua fazem parte daquele sábio desígnio divino com que Deus criou os seres
humanos’.
A
rejeição do documento aos pretextos teológicos para a guerra expressa um
compromisso que terá de ser testado : ‘declaramos
– firmemente – que as religiões nunca incitam à guerra e não solicitam
sentimentos de ódio, hostilidade, extremismo nem convidam à violência ou ao
derramamento de sangue. Estas calamidades são fruto de desvio dos ensinamentos
religiosos, do uso político das religiões’. Seria absurdo afirmar que
Francisco se vendeu a seu interlocutor muçulmano.
O
documento também inclui compromissos de respeito à liberdade religiosa e à
cidadania para minorias – compromissos que não seriam fáceis de se honrar em
algumas partes do mundo muçulmano.
A
missa foi a parte mais impressionante e comovente da viagem do papa a Abu Dhabi.
Em sua homilia, Francisco falou diretamente às circunstâncias dos católicos
locais : ‘Viver como bem-aventurados e
seguir o caminho de Jesus não significa, porém, estar sempre alegres. Quem está
aflito, quem sofre injustiças, quem se esmera para ser um agente de paz sabe o
que significa sofrer. Para vocês, certamente não é fácil viver longe de casa e
sentir, além da falta do afeto dos entes queridos, talvez também a incerteza do
futuro. Mas o Senhor é fiel e não abandona os seus’.
Em
certo sentido, Francisco levou toda a Igreja global com ele para visitar Abu
Dhabi, chamando a atenção de todos para uma comunidade cristã local composta
quase inteiramente de imigrantes que são tolerados, mas nem sempre respeitados
pelos seus vizinhos não cristãos e explorados por um sistema econômico que
produz luxo para a população nativa.
Pode-se
dizer que Francisco celebrou a missa para os servos do país. Foi a primeira
missa pública celebrada nos Emirados Árabes Unidos, e havia 125.000 pessoas de
100 nacionalidades diferentes participando. Havia caldeus, cristãos coptas,
greco-católicos, melquitas, maronitas e católicos siríacos, entre outros. O
papa reuniu a Igreja Católica em sua universalidade, em um estádio, para
celebrar a Eucaristia e para reconhecer e encorajar um grupo de cristãos
vivendo em condições extremamente difíceis, um grupo politicamente
negligenciado, culturalmente ignorado e quase invisível para muitos de seus
correligionários no Ocidente.
Assim
como o Documento sobre a Fraternidade
Humana, a missa no estádio mostrou como o debate intracatólico sobre o
liberalismo parece diferente quando visto através dos olhos das minorias
católicas que vivem em países muçulmanos. Para elas, a liberdade é um tesouro
escasso, e não uma abstração obsoleta.’
Fonte
:
* Artigo na íntegra http://domtotal.com/noticia/1338415/2019/03/papa-na-arabia-por-que-a-viagem-aos-emirados-gerou-polemica/
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