Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl.
OSB)
*Artigo
do Padre Alfredo J. Gonçalves,
Missionário Scalabriniano
‘Quando abordamos a condição dos migrantes, refugiados, prófugos,
itinerantes, etc., emerge naturalmente a expressão ‘sinal dos tempos’. De fato, é nestes termos que a Doutrina
Social da Igreja (DSI) se refere ao fenômeno dessa imensa ‘multidão dos sem pátria’, a qual, hoje mais
do que nunca, erra pelas estradas de todo mundo. Sem falar dos que morrem ou
simplesmente desaparecem nas águas do Mediterrâneo, nas areias do
deserto ou no anonimato das fronteiras. Mas a temática, evidentemente, não é
monopólio de nenhuma instituição, seja ela pública, privada ou religiosa.
Trata-se, antes, de um desafio gigantesco que envolve várias instâncias das
relações internacionais, do governo, da sociedade civil, das Igrejas,
das organizações não governamentais, entidades, movimentos sociais, e assim por
diante. Nos parágrafos que seguem, entretanto, o acento recairá sobre a ação
sócio-pastoral e política que se desenvolve no vasto campo da mobilidade
humana, de forma particular as atividades ligadas à Igreja Católica.
Sem especificar em maiores detalhes, seguiremos o método ver-julgar-agir.
I. Fotografia da mobilidade
humana
Nas últimas décadas do século XX e início do século
XXI, boa parte dos estudiosos começam a falar de mudança de paradigma. Não se
trata de uma época de mudanças, dizem alguns, mas de uma mudança de época. Ou,
ainda, de uma mudança de época que agita não apenas a superfície sociopolítica
das águas, mas sobretudo as correntes subterrâneas da economia e dos valores
culturais. A Gaudium et
Spes, Constituição pastoral sobre a Igreja no
mundo de hoje, documento aprovado pelo Concílio Ecumênico Vaticano II,
em 1965, já nos alertava : ‘O gênero
humano vive atualmente uma fase nova da história, na qual profundas e rápidas
transformações se estendem progressivamente a toda a terra’ (GS, nº 4).
Os deslocamentos humanos de massa constituem, em
geral, uma espécie de termômetro que mede o grau ou a temperatura de
semelhantes transformações. Tais movimentos, de fato, ao longo da história,
costumam preceder ou suceder modificações de caráter estrutural, tanto de um
ponto de vista socioeconômico quanto de um ponto de vista político-cultural. Formam
como que as ondas aparentes de terremotos ocultos, sinais visíveis de fenômenos
invisíveis. Mais de um século atrás, por ocasião das chamadas migrações históricas
provocadas pela Revolução Industrial, o então Papa Leão
XIII abria a Rerum Novarum (1891), documento
inaugural da Doutrina Social da Igreja (DSI) com
expressões do tipo ‘sede de inovações’
e ‘agitação febril’ (RN, nº 1). Ambas
retratam de forma vívida e significativa o vaivém dos migrantes em
todas as direções.
1. Números e trajetórias
Os números relacionados ao fenômeno migratório
constituem normalmente causa de não pouca divergência entre sociólogos,
demógrafos e estudiosos em geral. A razão é simples : boa parte dos imigrantes,
em muitos países, encontram-se em situação irregular, o que os leva a ‘esconder-se para proteger-se’. Daí a
dificuldade de obter estatísticas confiáveis. A Instrução Erga
migrantes caritas Christi, publicada em 2004 pelo Pontifício
Conselho para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes, afirma logo na
abertura : ‘As migrações hodiernas
constituem o maior movimento de pessoas de todos os tempos. Nestas últimas
décadas este fenômeno, que envolve atualmente cerca de 200 milhões de seres
humanos, se transformou em realidade estrutural da sociedade contemporânea, e
constitui um problema cada vez mais complexo do ponto de vista social,
politico, religioso, econômico e pastoral’ (EMCC, Apresentação).
Cabem duas observações. A primeira é que, dez anos
depois desse documento vir à luz, em 2014, estimativas da ONU indicam
que 232 milhões de pessoas vivem fora do país em que nasceram. Se a isso
acrescentarmos o volume de migrantes internos e/ou temporários
e dos que se movem diariamente devido ao trabalho, os números tendem a subir de
forma considerável. O Conselho Norueguês para Refugiados (CNR),
por outro lado, em seu último relatório oficial, publicado em 2012, avaliava em
nada menos do que 45,2 milhões o número de refugiados em todo o planeta. Em
poucas palavras, somando os migrantes por razões
socioeconômicas, os refugiados e prófugos, os exilados e expatriados, os
nômades e itinerantes, os marítimos e aeroviários… atingiremos uma cifra nada
desprezível frente à população mundial.
A segunda observação refere-se ao conceito de ‘realidade estrutural’ utilizado pelo
documento. Com efeito, qualquer análise atual sobre a economia globalizada e a
sociedade moderna ou pós-moderna não pode deixar de lado o fator migração,
sob o risco de se tornar anacrônica. Historiadores e outros estudiosos
renomados, tais como Eric Hobsbowm, Alain Touraine, Boaventura
Santos, Manuel Castells, Antonio Negri, Jürgen
Habermas – entre outros – dedicam longas páginas e não poucos
subtítulos a esse tema da mobilidade humana. Para alguns, os deslocamentos
humanos de massa se converteram, pouco a pouco, numa espécie de janela para
olhar a sociedade atual e o mundo. Em outros termos, uma chave de leitura
privilegiada de qualquer estudo sério e atualizado.
De onde se originam e para onde se destinam os
fluxos migratórios mais expressivos? O maior número tende a deixar os países
periféricos (ou subdesenvolvidos), migrando em direção aos países centrais (ou
desenvolvidos). Trata-se, portanto de um movimento do sul do planeta – Ásia, África e América
Latina – em busca de novas oportunidades no norte. Por outro lado, muitas
pessoas ou famílias deixam os países do leste europeu, antiga ‘cortina de ferro’ da ex-União
Soviética, tentando construir o futuro nos países do oeste. O quadro geral
dos deslocamentos humanos, porém, não é tão simplista, a ponto de caber nesse
esquema. Ao lado dessas tendências mais significativas, milhões e milhões de
pessoas se movem em todas as direções possíveis e imaginárias, de forma
temporária ou definitiva.
O mesmo se repete em nível nacional e regional. De
acordo com o sociólogo paraguaio Tomás Palau, ‘a movimentação dinâmica e plural de pessoas nos chamados ‘complexos
fronteiriços’, onde se cruzam as fronteiras de dois ou mais países, constitui
um dos sintomas mais expressivos da economia globalizada’. Detidos nos
aeroportos por Leis de Imigração cada vez mais rígidas e
selecionadoras, os trabalhadores pressionam os limites territoriais de seus
países de origem, tentando a qualquer preço alcançar o outro lado. Prova disso
é o que vem ocorrendo na fronteira entre México e Estados
Unidos, no mar que divide o norte da África e o sul
da Europa ou na tríplice fronteira da zona de Foz do Iguaçu (Brasil, Argentina e Paraguai)
– só para citar alguns exemplos. Trata-se de uma ‘aventura’ que tem deixado um rastro macabro de cadáveres
insepultos, tanto nas areias do deserto e nas águas do Mediterrâneo,
quanto nas trilhas tortuosas da floresta.
Convém não esquecer, também, o que se poderia
chamar de migrações limítrofes. Trata-se do vai e vem
constante de trabalhadores que se deslocam de uma região para outra, ou de um
país para outro, em busca de trabalho, quase sempre temporário. Migram para as
safras agrícolas, para projetos governamentais ou para obras de construção
civil. A tríplice fronteira entre Chile, Bolívia e Peru é
exemplo disso. E vale sublinhar, ainda, o drama dos ‘desprezados’ pela violência em suas mais distintas formas, como é o
caso de milhares e milhares de colombianos pressionados entre dois fogos, a
guerrilha e o exército. No primeiro caso temos uma migração de
resistência : sair temporariamente para não fazê-lo em definitivo; no
segundo, uma fuga para os centros urbanos ou para outros países vizinhos.
2. Nomes e rostos
Mais importante que números, tabelas e
estatísticas, entretanto, é a realidade de pessoas, com seus nomes, rostos,
histórias e destinos. A mobilidade humana reúne trabalhadores individuais e
famílias inteiras, homens e mulheres, jovens e crianças – todos simultaneamente
em fuga e em busca. Fuga da
pobreza, da miséria e da fome; da violência e
dos conflitos
armados; da discriminação, do preconceito e
da perseguição
politica, ideológica ou religiosa… Busca de um solo que os
acolha como cidadãos e que possa ser chamado de pátria.
Três adjetivos poderiam ser usados para classificar
as migrações contemporâneas. Elas são, ao mesmo tempo, mais
intensas, mais complexas e mais diversificadas. Mais intensas que os movimentos
de tempos passados. Como já vimos, cresce progressivamente o número de pessoas
que se deslocam sobre a face do planeta. Importância decisiva aqui teve a
revolução dos transportes e das comunicações. O historiador Peter Gay elegeu
o trem e o movimento como duas grandes metáforas do século XIX, com enormes
deslocamentos transatlânticos. Segundo ele, entre 1820 e 1920, nada menos do
que 62 milhões de pessoas teriam deixado o velho continente europeu em direção
às terras novas das Américas, da Austrália e
da Nova Zelândia. Que dizer então dos dias atuais!
As migrações são também mais
complexas. Em épocas passadas, as pessoas arrancavam as próprias raízes da
terra que lhes tinha visto nascer e crescer e onde haviam enterrado seus
antepassados. Mas o faziam, em geral, para transplantá-las para outro lugar e
aí voltar a enraizar-se como colonos. A origem e o destino dos fluxos
migratórios encontravam-se mais ou menos previstos, determinados. Hoje
a tendência é uma migração que se repete, constituída de
várias etapas, às vezes sem chegar a aprofundar as raízes em nenhum lugar. Uma
espécie de vaivém sem fim, com horizontes e perspectivas diversificados.
Os movimentos migratórios tendem a navegar conforme o fluxo e
refluxo das ondas criadas pela economia globalizada. Um verdadeiro ‘exército de reserva’ que não mora,
acampa – como já denunciava o velho Karl. Deslocam-se ao sabor dos ventos e de novas oportunidades de
emprego ou subemprego. Movimento circular, pendular – afirmam alguns!
Por fim as migrações são mais
diversificadas. Novas pessoas, raças, povos e nações passam a fazer parte do
contingente de migrantes. O pluralismo
cultural e religioso da sociedade contemporânea também se reproduz
nas distintas faces dos migrantes. Em algumas cidades como New
York, Roma, São Paulo, Paris ou Londres –
entre as mais cosmopolitas – os moradores praticamente tropeçam diariamente com
‘os mil rostos do outro’, além de
poderem entrar em contato com diferentes idiomas, bandeiras e costumes. Difícil
hoje, se não impossível, encontrar um país que de alguma forma não esteja
envolvido com o fenômeno das migrações. Uns como lugares de origem,
outros como lugares de destino e outros ainda como lugares de trânsito, sem
falar de alguns que podem, ao mesmo tempo, representar as três funções, como é
o caso do México e Guatemala, de Portugal, Itália ou Turquia.
II. Radiografia do fenômeno
migratório
Não basta, porém, a fotografia. Qualquer médico que
se preze, se realmente pretende curar o paciente, deve tratar de conhecer as
causas mais profundas da enfermidade. Conhecer o mal pela raiz é conditio
sine qua non para receitar o remédio apropriado. O mesmo vale para o
fenômeno das migrações. Em grande parte dos casos, estamos diante
de deslocamentos compulsórios, forçados, os quais podem ser evitados com
políticas adequadas, quer nos países de origem, quer nos países de trânsito e
destino. Numa palavra, constituem males que podem ser corrigidos nas relações
nacionais e internacionais.
Disso resulta a necessidade de tirar uma
radiografia da mobilidade humana. Somente esta pode romper com as aparências às
vezes enganosas. E resulta também a relevância de ouvir as histórias de
cada migrante, conhecer os diversos valores de cada cultura, bem
como acompanhar os estudos mais aprofundados sobre a realidade das migrações.
A radiografia revela não apenas a pele, mas os ossos, os órgãos interiores e o
coração. Com isso, como veremos, pode-se desenvolver uma pastoral mais eficaz.
1. Motivações imediatas
Perguntemos a qualquer migrante : por
que você deixou a sua terra natal e migrou para outra região ou outro país? O
que o levou a dar um passo tão arriscado e às vezes sem retorno? As respostas
podem ser as mais diversas. Alguns dirão que tinham o desejo de conhecer outros
lugares, outros poderão referir-se um um período de seca prolongada ou a uma
forte inundação; outros ainda mostrarão as cicatrizes de conflitos
armados ou se lembrarão com pesar dos familiares que pereceram vítimas
da violência. Muitos dirão simplesmente que decidiram seguir o caminho de
um parente ou amigo que os precedeu; depois, eles mesmos chamaram seus
conhecidos e dessa forma vai se recompondo a rede familiar.
Um grupo considerável sai em razão da saúde,
buscando lugares onde o atendimento é melhor, mais rápido e dispõe de
equipamentos modernos; não poucos jovens, de ambos os sexos, após o estudo
elementar e secundário, procuram lugares onde podem continuar com os estudos
superiores, com vistas à profissionalização e emprego. Mas as expressões ‘trabalho’, ‘futuro mais promissor’ e ‘vida
melhor’ praticamente aparecerão em todas as respostas. Também tem sido
comum falar de ‘hemorragia de cérebros’
ou ‘fuga de talentos’. Neste tipo de
visão vêm à tona, com toda a naturalidade, os chamados fatores de expulsão e de
atração. Mas a primeira resposta do migrante e a primeira
impressão de quem o ouve podem ser enganosas. As motivações imediatas costumam
esconder causas mais profundas. Aqui também a fotografia carece de uma
radiografia.
2. Causas remotas
Em grande parte dos fluxos migratórios,
o contexto socioeconômico de origem é marcado por um dupla contradição. De um
lado, ilhas de riqueza num oceano de pobreza e miséria, onde
convivem lado a lado a concentração de renda e a exclusão
social. A linha que divide o Primeiro e o Terceiro
Mundo, na verdade, passa pelo interior de cada país e até mesmo de cada
região. De outro, desde o início da década de 1970, assiste-se a uma crise
prolongada e estrutural do sistema capitalista de produção que faz aumentar o
movimento circular de imensas massas humanas em todo mundo. A crise se abate,
em primeiro lugar, sobre as pessoas mais vulneráveis, e estas se vêm forçadas a
buscar em terras distantes melhores oportunidades de vida, no rastro mesmo do
acúmulo de capital.
Tomemos o exemplo dos que responsabilizam uma longa
estiagem pela saída da terra natal. Em princípio, a resposta não é incorreta, e
sim incompleta. Se é verdade que a falta prolongada de chuvas faz as pessoas
deixarem a própria região ou país, é igualmente certo que ela, por si só, não
determina o êxodo em massa. A seca não faz mais do que marcar a hora da
partida, mas por trás desse flagelo existe uma estrutura agrária e
agrícola que desde longa data priva as pessoas de qualquer tipo de
defesa. Isso se comprova pelo fato de que os grandes latifundiários, com ou sem
chuva, permanecem aí. O que expulsa, portanto, não é a seca, mas a cerca! Ou
seja, as condições injustas e desiguais da propriedade e posse da terra.
Vale o mesmo para outros tipos de respostas simples
ou de análises a olho nu. No pano de fundo da mobilidade humana em geral, a
visão imediatista, superficial ou simplesmente conjuntural muitas vezes oculta
as causas mais profundas e estruturais. Na imensa maioria dos casos, prevalecem
como raiz da migração uma situação social e econômica adversa
à permanência no local de origem. Falta de trabalho e salário decente, precariedade
no sistema público de saúde e educação, relações
trabalhistas análogas à escravidão, cultura
patriarcal em que a mulher é totalmente submissa ao
poder masculino, exploração do trabalho infantil (sem
confundir com a iniciação sadia das crianças a determinados serviços por parte
de algumas famílias) – constituem alguns exemplos de tal situação.
Em certos países e regiões, tratam-se de
verdadeiros resíduos medievais em pleno século XXI. Nisto o capitalismo revela
uma de suas faces ocultas mais flagrantes e perversas : paradoxal e
contraditoriamente, com a contínua revolução tecnológica, coexistem
por um lado os implementos de tecnologia mais avançada, de ponta, e por outro
formas de trabalho há tempo execradas e banidas pela luta sindical ao longo da
história. Como afirma o sociólogo José de Souza Martins,
podem conviver lado a lado formas não capitalistas dentro de um sistema
capitalista de produção.
Outras causas dos deslocamentos de massa estão
relacionadas, como vimos acima, com a perseguição política, ideológica ou
religiosa que obriga à fuga; com formas de preconceito, xenofobia e
discriminação étnica ou de credo; com os conflitos armados dentro de um mesmo
país (p.ex. Líbano) ou entre dois Estados diferentes e beligerantes
(p.ex. Israel e Palestina, Rússia e Ucrânia);
com os confrontos entre facções rebeldes e as forças do exército (p.ex. Colômbia);
com a violência em todas as suas formas, particularmente o tráfico de seres
humanos provocado pelo crime organizado; com a disputa pelo controle do tráfico
de drogas e armas (p.ex. México, Colômbia e Brasil);
com o trabalho temporário, o qual, no decorrer dos anos pode levar a uma migração definitiva.
III. Um olhar
bíblico-teológico-pastoral
Existem três maneiras de ler o fenômeno das migrações à
luz da Palavra de Deus. A primeira se reduz a tomar um episódio
bíblico ou um determinado livro – respectivamente os Discípulos de
Emaús ou o Livro de Rute – e a partir dessa
aproximação busca aprofundar o tema. A segunda toma textos bíblicos que se
relacionam à temática migratória, costurando com eles uma reflexão
de caráter teológico, espiritual ou pastoral. A terceira, por fim, trata de ler
toda a Palavra de Deus na perspectiva da mobilidade humana,
com o enfoque de uma teologia ou espiritualidade do caminho. Sem desconsiderar
as demais vias, seguiremos esta última, tomando apenas alguns textos
paradigmáticos, do Antigo Testamento e outro do Novo Testamento,
para ilustrar essa experiência de um povo a caminho.
1. Olhar o migrante com os olhos de Deus
Com relação à antiga aliança podemos focalizar o
olhar sobre o que os especialistas chamam de ‘credo histórico’ do Povo de Israel : Dt 26, 5-10, em
sua versão mais elaborada e Ex 3, 7-10, numa versão mais primitiva. Trata-se,
como se sabe, da experiência que ajudou a fundar o próprio Israel enquanto Povo
de Deus. Confrontando as duas versões, encontraremos quarto verbos na
primeira pessoa do singular, todos atribuídos a Deus, que nos apontam para um
fio condutor que haverá de permear toda a Bíblia. Diz Javé :
eu vi a aflição do meu povo no Egito, eu ouvi seu clamor sob o peso
da escravidão, eu conheço seu sofrimento e eu desci para libertá-lo
e o conduzir a uma terra onde corre leite e mel.
As quatro formas verbais – vi, ouvi, conheço e
desci – denotam que, por ocasião de sua ‘experiência
fundante’, os israelitas desenvolveram a teologia e a espiritualidade de um
Deus que não somente está atento à situação concreta do povo na terra
da escravidão, mas sobretudo desce para acompanhá-lo nos caminhos
do êxodo e do deserto; mais tarde, do exílio e da diáspora. Esse ato
de descer se realizará plenamente com o mistério da encarnação. Aqui o
importante é sublinhar a sensibilidade e solidariedade de um Deus próximo e
que, frente à opressão do Faraó, toma partido em favor dos
sofredores e humilhados. Numa palavra, um Deus que privilegia os pobres, não
pelo simples fato de serem pobres nem por serem necessariamente ‘bons’, e sim porque são vítimas de
circunstâncias históricas adversas.
O movimento profético, por sua vez, não faz senão
atualizar essa mesma teologia e espiritualidade para os tempos conturbados da
monarquia e do exílio. O binômio da aliança – libertação e promessa – se reveste
de novo vigor. Daí seu tríplice enfoque do profetismo : a lembrança de que ‘foste escravo no Egito’ e
por isso agora não deves oprimir nem o estrangeiro que mora contigo e muito
menos teu próprio irmão; a denúncia frente às diversas formas de opressão, pois
‘vós chefes de Israel esqueceram
o direito e a justiça, trituram os ossos do meu povo, fazendo dele carne de
panela’, dirá o profeta Miquéias (Mq 3, 1-2); enfim, o
anúncio, que aparece como o respiro de um povo oprimido, esperando a promessa
da Jerusalém Celeste, de ‘um
novo céu e uma nova terra’ (Is 65, 17-25).
Quanto aos textos neotestamentários, podemos
deter-nos sobre dois textos de relevância fundamental. De um lado, logo na
abertura de seu Ministério Público, o profeta itinerante de Nazaré (John
P. Meier) toma o Livro de Isaías para anunciar aquilo que
se convencionou chamar o ‘programa de
Jesus’ (Lc 4, 16-20; Is 61, 1-2). Revela-se desde o início sua predileção
pelos oprimidos, escravos, prisioneiros e pobres, o que retoma em outros termos
a expressão ‘órfão, viúva e estrangeiro’
do AT. No coração do Mestre estão mergulhadas as raízes da ‘opção preferencial pelos pobres’, pois
aí encontrarão carinho especial os marginalizados, indefesos, excluídos e migrantes –
‘eu era migrante e vocês
me acolheram’ (Mt 25,35).
De outro lado, o evangelista Mateus costuma
interromper a narrativa para introduzir pequenos resumos, como a sublinhar algo
que não pode ser esquecido. ‘Jesus
percorria todas as cidades e povoados…’, diz o texto. E prossegue : ‘Vendo as multidões cansadas e abatidas, teve
compaixão porque eram como ovelhas sem pastor’ (Mt 9, 35-38). Duas
observações : primeiro, chamar a atenção para o verbo ‘percorrer’, o qual, por si só, demonstrando a prática pastoral de
Jesus, poderia server para um bom retiro de conversão. Ele não se limita a
esperar pelas pessoas no templo (ou na porta da Igreja), mas vai ao
encontro dos peregrinos; segundo, entre tais ‘multidões cansadas e abatidas’, cabe um destaque particular para o
volume de migrantes que erram pelas estradas de todo o
planeta, muitas vezes órfãos, sós e perdidos.
2. Olhar a Deus com os olhos do migrante
Quem muito caminha aprende a depurar não somente a
bagagem, mas também a alma. Toda a longa travessia ensina a deixar de lado o
que é supérfluo e ater-se ao que é essencial. O ato de migrar e remigrar ajuda
a discernir o que é indispensável do que é negociável. O caminho,
principalmente quando o vaivém se repete uma, duas, três ou mais vezes, traz
como lição a sabedoria de despojar-se do que pesa e retarda os passos, para
concentrar-se no foco, na meta, no horizonte da própria existência humana. Numa
palavra, os pés do peregrino desenvolvem uma mística singular, no sentido de
relativar ‘as muitas coisas’ para
absolutizar ‘uma só coisa’ que é a
mais importante, como vemos no episódio que narra o encontro de Jesus na casa
de Marta e Maria (Lc 10, 38-42). Além disso,
de acordo com o cor inquietum de Santo
Agostinho, o migrante representa a condição
de todo ser humano, peregrino na face da terra, em busca da pátria definitiva.
De acordo com a Doutrina Social da Igreja (DSI),
no coração de cada pessoa e no coração de cada cultura existem sementes do
Verbo. Ao deslocar-se de um lado para outro, os migrantes são
portadores de tais sementes. Lembrando o Bem-aventurado J. B.
Scalabrini – ‘pai e apóstolo
dos migrantes’ – da mesma forma que as aves e os ventos
transmitem o pólen que fecunda a vida, assim também os viajantes de tantas
estradas levam consigo expressões e valores que fecundam a tradição cultural de
outros povos. Nisso, a migração não deixa de ser um
instrumento de evangelização que tende a promover uma depuração e purificação
recíproca e permanente das culturas, como nos recorda o Documento de
Aparecida. Além disso, o migrante jamais
pode ser considerado apenas como vítima de exploração no mercado de trabalho.
Se é verdade que, por um lado, ele normalmente é forte candidato aos serviços
mais sujos e pesados, mais perigosos e mal remunerados, também é certo que, por
outro lado, sua teimosia indômita e imbatível faz dele um protagonista e um
profeta do futuro. Por caminhos inóspitos e hostis, ou ‘por mares nunca dantes navegados’ – na expressão do poeta
português Camões – o olhar voltado para Deus costuma ser o farol
da ‘frágil embarcação’ de todo migrante.
Nessa perspectiva, a fé e a esperança do povo migrante costuma
ser uma luz que aponta novos horizontes para a história, seja ela pessoal,
familiar ou coletiva. Em sua bagagem, por mais pobre e exígua que seja, raramente
falta algum símbolo da religião de seus ancestrais, e muitas vezes a Bíblia (ou
o Corão, para os muçulmanos). Assim que, o ato de migrar,
por si só, põe em marcha não somente as expectativas do migrante e
sua família, mas também a própria história. Enquanto, por uma parte, o deslocamento
compulsório denuncia na origem a incapacidade de muitas nações em
conceder uma cidadania digna a seus compatriotas, por outra, no trânsito e no
destino anuncia a necessidade de mudanças urgentes e estruturais nas relações
nacionais, regionais e internacionais. Em síntese, não seria exagero a firmar
que a frase de Martin Luther
King– I have a dream (eu tenho um sonho) – constitui
uma força motriz na vida do migrante. Parafraseando Euclides
da Cunha, ‘o migrante é
antes de tudo um forte’.
IV. Desafios e perspectivas : o
que fazer?
Após uma rápida visão da realidade migratória
(Partes I e II), seguida de alguns elementos bíblico-teológicos-pastorais de
luz e orientação (Parte III), o objetivo desta última parte é o de apontar
pistas de ação sócio-pastoral e política. Mais do que ‘inventar a roda’, procuramos concentrar a atenção sobre determinadas
atividades que, em sua maioria, já estão em curso na Igreja em
geral e na Pastoral dos
Migrantes em particular.
1. Acolhida e documentação
A acolhida
constitui o DNA da Pastoral dos Migrantes. Trata-se de abrir o
coração, as portas e os espaços eclesiais e culturais para ‘o outro, o estrangeiro, o diferente’. Em
termos concretos, acolher significa, antes de tudo, promover uma assistência
imediata a quem chega a um novo lugar. Tal assistência, caso a caso, comporta a
preocupação com as dimensões pessoal, familiar, social, jurídica, educacional,
sanitária, psicológica… Daí a existência de uma rede de Casas do
Migrante, espalhadas tanto nas fronteiras (entre México e Estados
Unidos, entre México e Guatemala ou
entre Chile, Bolívia e Peru), quanto
em algumas metrópoles de grande afluência de migrantes (São
Paulo, Santiago, Manaus). Desnecessário acrescentar
que, não raro, torna-se de fundamental importância o ensino da língua local.
A acolhida vem acompanhada de um longo processo de
regularização dos documentos. Sem estes, todas as portas se fecham, a começar
pelo acesso a um emprego decente e com carteira assinada. O trabalho, por sua
vez, reabre uma série de oportunidades. Também neste caso, os migrantes podem
contar com uma rede de Centros de Acolhida e de Orientação,
providos de assistentes sociais, advogados e outros profissionais que podem
ajudar a inserir-se e integrar-se mais rapidamente na sociedade de destino. É
conhecida e notória a forma grosseira com que muitas autoridades da Polícia
Federaltratam os recém-chegados. Sem dúvida, a presença de um profissional
infunde-lhes maior confiança.
2. Direitos Humanos dos Migrantes
O empenho pela defesa dos Direitos Humanos em
geral, e dos direitos dos migrantes em particular, constitui
uma das características da ação sócio-pastoral junto ao mundo da mobilidade
humana. Boa parte dos imigrantes permanecem por meses, anos, e
até décadas (quando não a vida inteira) na precária situação de indocumentados
– ‘sin papiers’ ou ‘sin papeles’. Nessa condição irregular,
tornam-se vulneráveis a todo tipo de exploração trabalhista ou
sexual e, além disso, presa fácil para a rede mundial do crime organizado.
Sabemos bem qual o peso da palavra ‘clandestinos’ em sociedades como Estados
Unidos, Europa, Austrália, Japão, entre
outras. Traduz-se concretamente como insegurança, instabilidade, medo e, no fim
da linha, processo de repatriação. Infelizmente, no trato com os imigrantes desprovidos
de documentação regular, o mesmo ocorre nos países subdesenvolvidos ou
emergentes. De tudo isso resulta a necessidade de contar com proteção jurídica
para a conquista e/ou defesa dos direitos à vida e à dignidade humana.
3. Paróquias multiculturais e pluriétnicas
De um ponto de vista estritamente pastoral, nas
paróquias de acolhida faz-se necessário resgatar e promover os valores
culturais e religiosos dos migrantes. Não é difícil abrir espaço
para encontros multiculturais ou pluri-étnicos, tais como festa do padroeiro,
festa das nações, e assim por diante. Aqui, porém, esconde-se uma ambiguidade
que, com frequência, comporta uma armadilha capaz de confundir os incautos. De
um lado, o cultivo da língua original, das expressões culturais e religiosas
ajuda a cimentar e manter a coesão do grupo étnico, sobretudo em casos de discriminação, preconceito e
hostilidade; de outro lado, contudo, nesse processo de resgate cultural reside
o risco de criar guetos cerrados, dificultando assim uma integração natural e
mais rápida. Em termos metafóricos, os anjos da tradição religiosa podem
converter-se em demônios, promotores de divisão e isolamento. O desafio é
encontrar o equilíbrio entre o respeito às diferentes etnias e a integração
progressiva na sociedade de chegada.
Resgatar e promover os valores inerentes a cada
pessoa, povo e cultura requer, como dimensão primordial, um espaço privilegiado
para a história individual e coletiva. Nessa linha, os encontros de migrantes por
etnia costumam ser extremamente reveladores. Parte-se do pressuposto que
a migração constitui um golpe que deixa feridas, algumas
jamais cicatrizadas. Arrancar as raízes e expô-las ao sol escaldante do caminho
tem consequências inevitáveis. Normalmente sofre quem parte e sofre quem
permanece na terra de origem. Narrar a própria história – como nos ensina a
psicologia – é uma forma de exorcizar as sombras que obscurecem seu percurso.
Verbalizar o sofrimento ajuda a libertar-se do peso que herdamos do passado.
Vale o mesmo para a história do grupo como um todo. Trata-se de promover tempo
e espaço para que os próprios migrantes, ao cruzar seus caminhos,
possam intercambiar experiências e, com isso, enriquecer-se mutuamente.
4. Presença na origem e no destino
Da mesma forma que os movimentos
migratórios estabelecem uma ponte de sobrevivência entre a terra de
origem e a terra de destino, os agentes e lideranças que os acompanham podem
empenhar-se por construir, em correspondência, uma ponte sócio-pastoral entre
os locais de saída e os locais de chegada. Unir os dois lados da ponte através
de visitas programadas, missões populares, intercâmbio de informações e de
pessoal… Eis uma forma de manter e fortalecer a fé e o esforço dos migrantes na
luta por uma sobrevivência justa e digna. Se os migrantes têm
dificuldade de ir até a Igreja, esta deve fazer-se presente onde
quer que eles estejam.
Essa presença da Igreja,
simultaneamente no pólo de origem e no pólo de destino, não é novidades dos tempos
atuais. Com efeito, no final do século XIX, Dom J. B.
Scalabrini fundou dois institutos religiosos (masculino e
feminino) e um instituto leigo para acompanhar os emigrantes italianos,
tanto na própria diocese de Piacenza e demais regiões da Itália,
quanto do outro lado do oceano : Estados Unidos, Brasil, Argentina, Austrália,
entre outros países. Tratava-se, como ele mesmo afirmava, de levar-lhes ‘o sorriso da pátria e o conforto da fé’.
‘Para os migrantes’ –
dizia ainda – ‘a pátria é a terra que
lhes dá o pão’, concluindo que ‘a migração amplia
o conceito de pátria’.
5. Centros de estudos e de pastoral
Com a finalidade de desenvolver a um trabalho mais
eficaz e de maior incidência sociopolítica, torna-se necessário manter uma
leitura científica e atualizada do fenômeno da mobilidade humana. Nasceram
assim os Centros de Estudos Migratórios, hoje espalhados pela Europa, Ásia, África, América
do Norte e América do Sul. Em colaboração e sinergia com
outras entidades acadêmicas, realizam pesquisas, estudos, conferências,
encontros, cursos e seminários no sentido de envolver o maior número de
pessoas, como também de sensibilizar a Igreja, a sociedade civil e
as autoridades dos governos para o drama das migrações. Evidente
que semelhante leitura aprofundada dos fluxos e tendências, causas e
consequências da migração mantém-se estritamente conectada com
os itens anteriores. Ela ajuda não somente a incrementar as atividades
pastorais, sociais e políticas, mas também incide sobre as mudanças necessárias
para novas Leis de Imigração.
Vale
a esse respeito sublinhar a realização do Fórum Internacional de
Migração e Paz. Em sua 5ª edição (Antigua, Bogotá, Cidade
do México, New York e Berlim), o Fórum tem
mantido um duplo objetivo : por um lado, desvincular o conceito de migração do
pano de fundo da ideologia de segurança nacional e do crime organizado,
enfatizando antes suas potencialidades para a busca da paz; por outro, envolver
autoridades políticas, expoentes acadêmicos e outras personalidades, na
tentativa de maior incidência sociopolítica em favor dos direitos dos migrantes.
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