quarta-feira, 30 de maio de 2018

A festa do corpo de Cristo


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

A verdadeira fé não vem por causa de milagres. 
*Artigo de Evaldo D´Assumpção,
médico e escritor


‘Neste ano, a festa denominada ‘Corpus Christi’ (Corpo de Cristo), cai no dia 31 de maio, pois é celebrada anualmente, 60 dias depois da Páscoa, sempre na quinta-feira seguinte ao Domingo da Santíssima Trindade, que por sua vez é celebrado no domingo seguinte ao Domingo de Pentecostes. Contudo, poucas pessoas conhecem a bela origem dessa celebração. Tudo se deu em decorrência de um extraordinário acontecimento no século XIII, mais especificamente no ano 1263. Era um tempo de muitas discussões sobre a veracidade da transubstanciação. Explico : transubstanciação diz respeito à transformação de uma coisa em outra. Na teologia católica refere-se à transformação do pão e do vinho na substância do corpo e sangue de Jesus Cristo, durante a cerimônia da consagração, que acontece exclusivamente no contexto da Santa Missa. Ou seja, por ela passa-se a ter a real presença de Jesus na hóstia e no vinho consagrados. Este dogma baseia-se nas próprias palavras de Jesus que disse : ‘Se não comerdes a carne do Filho do homem, nem beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós.... Minha carne é verdadeiramente comida, e meu sangue é verdadeiramente bebida’ (Jo 6, 53-54). E que durante a última ceia, ao entregar pão e vinho aos apóstolos, disse : ‘Isto é o meu corpo, que será entregue por vós....Este cálice é a nova aliança em meu sangue, que será derramado por vós.’ (Lc 22,19-20). O pão e o vinho consagrados não perdem sua forma material, mas sua substância se torna na substância do próprio Cristo Jesus, pela força de suas palavras.

Nos séculos XI e XII, heresias como a dos Cátaros e dos Patarinis negavam essa transubstanciação e com isso geravam muitas dúvidas até em sacerdotes. Um deles, Pedro de Praga era atormentado pela dúvida e decidiu-se por uma peregrinação a Roma, em busca de luz para a sua falta de fé. No trajeto, parou num povoado chamado Bolsena, próximo à cidade de Orvietto onde no verão residia o Papa Urbano IV. Em Bolsena, ao celebrar a missa na capela de Santa Cristina, durante a consagração sobreveio-lhe forte dúvida e neste momento viu cair da hóstia que elevava, gotas de sangue sobre o altar, impregnando o linho que o cobria. Procurou o Papa e este enviou o Bispo Giácomo que lhe trouxe o pano ensanguentado. Diante disso, em 11 de agosto de 1264 o Papa proclamou a bula ‘Transiturus de mundo’, instituindo para todo o mundo a festa de Corpus Christi. E encarregou a Tomás de Aquino (depois, canonizado santo) compor o Ofício da Celebração, que deveria ser anualmente celebrada, na quinta feira após a oitava de Pentecostes, em honra do Corpo do Senhor.

Mas, além deste chamado Milagre Eucarístico, outros mais aconteceram em território italiano. Algo semelhante ocorreu na cidade de Cássia, região de Úmbria, onde faleceu Santa Rita de Cássia, em 22 de maio de 1457. No ano de 1330 ali vivia o Padre Simone Fidati, um sacerdote Agostiniano muito procurado como confessor de sacerdotes. Certa feita ele foi procurado por um padre que acabara de viver uma incrível experiência. Sofrendo de enorme falta de fé na eucaristia, havia sido solicitado a levá-la a um moribundo. Com sua descrença, sem qualquer cerimônia tomou no sacrário uma hóstia consagrada, colocando-a dentro do seu breviário, sem nenhum cuidado especial, e dirigiu-se à residência do enfermo. Lá chegando, ao abrir seu livro de oração para pegar a hóstia consagrada, viu que as páginas do livro estavam embebidas de sangue, tendo a hóstia em seu meio, pregada numa delas. Estas páginas foram guardadas e levadas, uma para o Tabernáculo de Perúgia, e a outra, com a sagrada hóstia nela colada pelo sangue, para o mosteiro Agostiniano de Cássia, onde até hoje pode ser vista. E mais espantoso, é que nesta hóstia, quando iluminada por detrás, pode-se ver, nitidamente, o perfil de um rosto que se supõe seja a reprodução da face de Cristo. Em 1687 houve o reconhecimento oficial da Igreja, da Relíquia do Milagre Eucarístico de Cássia.

Entretanto, o mais detalhadamente estudado dos chamados Milagres Eucarísticos, certamente foi o ocorrido em outra cidade na costa adriática, chamada Lanciano. Seu nome vem do fato de aí ter nascido Longino, o centurião que deu o golpe de lança no tórax de Cristo crucificado.

Este é talvez o mais antigo, pois ocorreu no século VIII, quando um monge da ordem Basilicana, como os demais passava por uma profunda crise de fé, não acreditando na transubstanciação. Durante uma consagração, diante de sua comunidade, viu gotas de sangue escorrerem pela hóstia elevada, que em suas mãos transformou-se em carne. Transtornado pelo que via, guardou cuidadosamente os coágulos formados do sangue escorrido, e a hóstia feita em carne. Séculos depois, nos anos 1970 e 71, os professores da Universidade de Siena, Odoardo Linoli e Ruggero Bertelli, com autorização da Igreja, fizeram exames químicos e microscópicos do sangue, constatando que estava em perfeito estado, sem que houvesse qualquer traço de conservantes, o mesmo acontecendo com a carne em que se transformou parte da hóstia. O sangue revelou-se ser humano e do grupo AB, o mais comum entre os judeus. E a carne revelou-se músculo cardíaco humano, contendo filetes nervosos e vasos como se tivesse sido retirado de um coração ainda palpitando. Muitos outros estudos foram feitos, nenhum deles levantando qualquer suspeita de fraude, como aconteceu com os outros Milagres Eucarísticos reconhecidos pela Igreja.

Concluindo, afirmo acreditar que a verdadeira fé não vem por causa de milagres, que só reforçam a chama bruxuleante existente em nossos corações. Quem busca fatos miraculosos para crer, tão somente alcança a crendice e o fanatismo, que com o mesmo ímpeto que surgem, se esvaem pela inconsistência que os caracteriza.’


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sábado, 26 de maio de 2018

Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 A Trindade Santa é a chave que nos abre a porta para adentrarmos na relação amorosa e orante com o próprio Deus Uno e Trino.
*Artigo de Daniel Reis,
graduando em Teologia e em Direito (PUC - MG)


‘‘Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo’, não separados por vírgula, mas somados pela conjunção aditiva ‘e’, fazendo com que pela soma se resulte uma unidade indivisível, é como sempre começamos as nossas orações, sejam elas pessoais ou comunitárias (litúrgicas). Muitas vezes, de forma automática, proferimos esta fórmula ao rezar, sem nos darmos conta da profundidade do que estamos fazendo. Afinal, qual a razão de mencionarmos a Santíssima Trindade quando rezamos?

Pelo princípio da primazia da ação divina, sabemos que é Deus quem sempre age primeiro; Ele sempre toma a iniciativa de vir ao encontro da humanidade. Este ímpeto do Pai se inaugurou na história com a encarnação do Filho, sob a ação do Espírito Santo. Da criação do mundo (Gn 1-2) à recriação em Cristo (2Cor 5,17), o Deus Uno e Trino se faz presente em nós e, através de nós, convida a humanidade para retornar ao convívio da família divina e participar de sua plena comunhão.

Quando iniciamos as nossas orações mencionando as pessoas divinas, não estamos fazendo uma invocação, mas respondendo a uma convocação que a Trindade Santa nos faz primeiro. A oração é a forma de nos relacionarmos com o Deus Família, e para ingressarmos nesta relação de amor, somos legitimados ‘em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo’, aos quais nos apresentamos em resposta à vocação que sempre nos é dirigida.

Respondemos ‘em nome do Pai’, que é o Amante por excelência, fonte de todo o amor derramados sobre nós. Se em nome d´Ele nos apresentamos, em nome d´Ele e como Ele devemos agir : com misericórdia para com os filhos e filhas que prodigamente ‘gastam a vida’, sendo esta a maior das heranças que Ele nos concede (cf. Lc 15,11-32); como um Pai que ‘faz raiar o seu sol sobre maus e bons e derrama a chuva sobre justos e injustos’ (Mt 5,45); um Pai providente, que sabe das necessidades alheias antes de ser solicitado (cf. Mt 6,8); um Pai que perdoa as nossas ofensas e espera que façamos o mesmo com os nossos ofensores (cf. Mt 6,15).

Nos apresentamos também em nome do Filho’, o Amado, no qual todos nós fomos amados, e como Ele somos chamados a amar : ‘Amai-vos uns aos outros, assim como eu vos amei’ (Jo,15-12); a perdoar: ‘Pai, perdoa-lhes, eles não sabem o que fazem’ (Lc 23,34); a confiar: ‘Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito’ (Lc 23,46); a ‘anunciar a boa nova aos pobres, a libertação aos cativos, a recuperação da vista aos cegos, a liberdade aos oprimidos e para proclamar o tempo da graça do Senhor’ (Lc 4,18-19).

Por fim, somos confirmados e impelidos ‘em nome do Espírito Santo’, o Amor que procede do Pai e do Filho. A seu exemplo, devemos fecundar a humanidade para salvá-la a partir de dentro (cf. Lc 1,35); iluminados por Ele, devemos redescobrir a nossa filiação divina, que nos permite clamar ‘Abba! Pai!’ (Rm 8,15), a fim de que rendamos seus frutos de ‘amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, autodomínio’ (Gl 5,22-23) e que falemos a língua universal do amor, promovendo assim um novo Pentecostes (cf. At 2,1-11) nesse mundo destruído pela divisão e pela linguagem de ódio.

A Trindade Santa é a chave que nos abre a porta para adentrarmos na relação amorosa e orante com o próprio Deus Uno e Trino. Pai : o Amante; Filho : o Amado; Espírito Santo, o próprio Amor que une e enlaça as Três Pessoas Divinas em um só Deus, devem continuar sempre figurando ao início e no final de nossas orações, para que também em nossas vidas tudo comece e termine ‘em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo’.’


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sexta-feira, 25 de maio de 2018

Falar ou calar-se


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
  
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*Artigo de Dom Walmor Oliveira de Azevedo,
Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte, MG


‘O descompromisso com a verdade é cada vez mais frequente. Alimenta a propagação de notícias falsas e a manipulação das informações para o atendimento de interesses mesquinhos. Cada vez mais, as tecnologias no campo da comunicação facilitam falar de tudo e de todos, sobre as mais variadas coisas, conforme o próprio interesse. Comprometida a verdade, a sociedade inteira perde o rumo e dificilmente encontra algum caminho promissor. Mas, na interioridade humana, no ato de falar ou calar-se, está inscrita a fórmula para superar esse descompromisso com o que é verdadeiro.

Quando se deve falar? Falar o quê? E quando é oportuno e eficaz calar-se? Sobre os pilares do falar e do calar-se estão os processos relacionais, a condução da sociedade, a cooperação mútua e cidadã em defesa da justiça e do bem. Vale lembrar uma regra de ouro ensinada por São Gregório Magno, fecundado por suas experiências e tradição monástica, na sua famosa Regra Pastoral : o pastor seja discreto no silêncio e útil com suas palavras, para não falar o que deve calar, nem se calar quando é necessário falar. Importante esclarecer que a metáfora do pastor, originalmente ligada ao exercício do pastoreio no contexto religioso e confessional, também se aplica mais amplamente. Vale para o exercício de cada pessoa na condução da própria vida, no contexto profissional ou familiar, enfim, em tudo o que se faz no dia a dia.

O ‘pastoreio’, neste sentido, remete às ações que objetivam o próprio bem e, sobretudo, o bem do outro. Assim, todos devem exercer um tipo de pastoreio, que pode ser avaliado a partir do bem que cada um promove na condução de suas responsabilidades. O exercício qualificado do pastoreio, quando se torna uma cultura, constitui preciosa alavanca para que a sociedade conquiste o desenvolvimento integral, com irrestrito respeito à vida. E a cultura marcada pelo bom exercício do pastoreio só pode ser conquistada quando são superados os modos de falar orientados pelas superficialidades.

Ao se utilizar a palavra de modo superficial, comprometem-se entendimentos, atitudes medíocres são alimentadas e fecham-se horizontes. Consequentemente, essas atitudes são limitadas e pouco eficazes para gerar o que é bom. Assim, a sociedade permanece empobrecida, um lugar da indiferença que prejudica o exercício da cidadania. Falar com superficialidade faz com que os muitos sistemas linguísticos disponíveis, em vez de contribuírem para a aproximação, configurem uma verdadeira Babel, que enjaula a cidadania na confusão. É lamentável, por exemplo, quando a fala de quem representa o povo é permeada por mentiras e objetiva somente conquistar certas metas – distantes do que é necessário ao bem comum, priorizando somente o interesse de pequeno grupo. Uma lástima também quando as relações familiares, profissionais, cotidianas, são orientadas pelos parâmetros da superficialidade.

A incapacidade para falar o que é preciso, livre de inverdades, é sinal de uma falha grave na condição ética e moral do indivíduo. E só conquista a clarividência quem tem a ousadia de viver e falar sob o alicerce da verdade, algo raro nestes tempos, de tantas manipulações para o atendimento de interesses questionáveis. Hoje especialmente, fala-se para agradar, mesmo sendo incoerente com as próprias convicções. Em outras situações, a verdade é ‘dita pela metade’, para alcançar certos objetivos pouco nobres. Pareceres são emitidos sem o conhecimento adequado da realidade, prejudicando a promoção da justiça, pois prevalecem subjetivismos. Fala-se o que interessa, para ferir imagens, ou mesmo para enaltecê-las, até mesmo quando não são nada daquilo que se apresenta. Desprovidas de moralidade, essas atitudes não contribuem para o bem de todos.

São urgentes investimentos para que haja qualificação da atitude de falar e de calar-se na sociedade. Nesse sentido, vale remontar ao conceito helênico de parresia, como dinâmica da linguagem política comprometida com a verdade, base para uma verdadeira democracia. Desse modo, a liberdade da palavra será de fato compreendida como força significativa na construção da sociedade justa e solidária. A postura do apóstolo Paulo pode inspirar modos nobres de se lidar com a palavra. Em seu compromisso de viver e proclamar autenticamente a fé, Paulo valia-se de verdadeira franqueza, sustentada pela coragem de dizer tudo o que fosse necessário, e não se calar por conveniência, arquitetando manipulações.

A vida de Paulo é uma escola para todas as pessoas, sendo particularmente capaz de corrigir quem mais patologicamente fala ou se cala desrespeitando a verdade. É possível antever o bem e as consequências revolucionárias se o ‘pastoreio’ de todo cidadão for exercido com sabedoria, sendo discreto no silêncio e útil na fala, ‘para não falar o que deve calar, nem calar o que deve dizer’.’


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quarta-feira, 23 de maio de 2018

A Teologia do abraço


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 POPE FRANCIS
*Artigo de Vinícius Figueira e Fernanda Venturim Vantil, 
  
‘Já parou para pensar que dificilmente uma pessoa te abraça? Há quem se contente com um ‘tudo bem?’, outros com um ‘oi’ e não passa disso. Já pensou se com todas as pessoas que encontrássemos tivéssemos a bondade de cumprimentá-la com um abraço ou, se preferir, um amasso?

No contexto bíblico, o abraço significa misericórdia. Vale recordar aqui o abraço do Pai no filho pródigo. As mazelas, as decepções, os pecados, a arrogância, a precariedade, a soberba, se dissolveran no abraço do Pai misericordioso.

Não tenho dúvida de que aquele sujeito sem nome (pode ser eu ou você) que pegou a parte da herança e partiu para o mundo contemplou a verdade interpretada por Martha Medeiros : ‘Tudo o que você pensa e sofre, dentro de um abraço se dissolve’. O abraço esmagante do Pai devolveu ao filho desgraçado o dom da vida, da eternidade.

abraço, segundo alguns especialistas, faz bem para a saúde psíquica e física. Ele tem o poder de aumentar os níveis de uma substância chamada oxitocina, que tem a particularidade de reduzir os estados de stress e ansiedade, aumentando a felicidade e o bem estar das pessoas. Pessoas com um nível elevado de oxitocina têm a probabilidade de desenvolverem um comportamento maior de ligação entre as pessoas. Você sabia disto?

Mário Quintana faz questão de aludir o abraço a um laço. Diz ele : ‘Meu Deus! Como é engraçado! Eu nunca tinha reparado como é curioso um laço… uma fita dando voltas. Enrosca-se, mas não se embola, vira, revira, circula e pronto : está dado o laço. É assim que é o abraço: coração com coração, tudo isso cercado de braço’.

Penso que, nos tempos hodiernos, nossos casais precisam se abraçar. Precisam encostar um coração no outro (Rita Apoena). Já imaginou acalmar os corações atribulados por uma discussão, encostando um coração no outro? Corações atribulados se entendem e se acalmam no compasso da vida, que se renova dentro de um abraço.

Certa vez, havia um casal de idade mediana nas dependências de uma Praça. Eles viram quando ali estava uma menina, baixinha, com cabelos de fios dourados, muito pacífica. Passavam-se minutos e minutos, e ela ali persistia. Quando menos esperavam, salta de um ônibus um menino com trajes de viajante, mochilas nas costas, e apressadamente se direciona até a menina. Em fração de segundos, um atracou o outro num abraço, e os dois ficaram por um bom tempo sem trocar palavras. Certamente fazia muito tempo que o casal de namorados não se encontrava.

O normal seria que eles trocassem belas saudações, nobres palavras, ricas frases. Mas eles optaram pelo abraço. Pois o abraço permitia que eles se sentissem. Quando vemos uma sociedade (famílias, grupos, religiões) machucada, triste, sem rumo, sem esperança, nós podemos dizer que estamos vendo (e vivenciando) uma sociedade que perdeu a capacidade de se sentir. O poeta português Fernando Pessoa já dizia : ‘quem sente muito, cala; quem quer dizer quanto sente, fica sem alma nem fala, fica só, inteiramente’!

Já Drummond se atreve dizer que ‘se você sabe explicar o que sente, não ama, pois o amor foge de todas as explicações possíveis’.

Traduzindo : amar não é teoria, é sentir.  Abraçar é amar. Abraçar é discursar sem palavras. Abraçar é poder entrar no outro sem pisar no seu terreno. Abraçar é ser mais gente. Abraçar é uma forma de teologar… pois até Deus quis morar no abraço!’


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domingo, 20 de maio de 2018

Renova-nos por dentro

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Na festa cristã do Espírito Santo, a todos nos diz Jesus o que um dia disse aos Seus discípulos, exalando sobre eles o Seu alento: 'Recebei o Espírito Santo'.
*Artigo do Padre José Antonio Pagola

‘Pouco a pouco estamos a aprender a viver sem interioridade. Já não necessitamos de estar em contato com o melhor que há dentro de nós. Basta-nos viver ocupados. Contentamo-nos com funcionar sem alma e nos alimentarmos só de bem-estar. Não queremos expor-nos a procurar a verdade. Vem, Espírito Santo, e liberta-nos do vazio interior.

Temos aprendido a viver sem raízes e sem metas. Basta-nos deixarmos programar de fora. Movemo-nos e agitamo-nos sem cessar, mas não sabemos o que queremos nem para onde vamos. Estamos cada vez mais bem informados, mas sentimo-nos mais perdidos que nunca. Vem, Espírito Santo, e liberta-nos da desorientação.

Já só nos interessam as grandes questões da existência. Não nos preocupa ficarmos sem luz para enfrentarmos a vida. Fizemo-nos mais céticos, mas também mais frágeis e inseguros. Queremos ser inteligentes e lúcidos. Mas não encontramos sossego nem paz. Vem, Espírito Santo, e liberta-nos da obscuridade e da confusão interior.

Queremos viver mais, viver melhor, viver mais tempo, mas viver o quê? Queremos sentir-nos bem, sentir-nos melhor, mas sentir o quê? Procuramos desfrutar intensamente da vida, tirar o máximo sumo, mas não nos contentamos só com passar bem. Fazemos o que nos apetece. Não há proibições nem terrenos vedados. Por que queremos algo diferente? Vem, Espírito Santo, e ensina-nos a viver.

Queremos ser livres e independentes e nos encontramos cada vez mais sós. Necessitamos de viver e nos encerramos no nosso pequeno mundo, por vezes tão aborrecido. Necessitamos de nos sentir queridos e não sabemos criar contatos vivos e amistosos. Ao sexo chamamos «amor», e ao prazer, «felicidade», mas quem saciará a nossa sede? Vem, Espírito Santo, e ensina-nos a amar.

Na nossa vida já não há sítio para Deus. A Sua presença ficou reprimida ou atrofiada dentro de nós. Cheio de ruídos por dentro já não pode escutar a Sua voz. Focados em mil desejos e sensações, não chegamos a perceber a sua proximidade. Sabemos falar com todos menos com Ele. Temos aprendido a viver de costas ao Mistério. Vem, Espírito Santo, e ensina-nos a acreditar.

Crentes e não crentes, pouco crentes e maus crentes, assim peregrinamos muitas vezes pela vida. Na festa cristã do Espírito Santo, a todos nos diz Jesus o que um dia disse aos Seus discípulos, exalando sobre eles o Seu alento : «Recebei o Espírito Santo». Esse Espírito que sustém as nossas pobres vidas e alenta a nossa débil fé pode penetrar em nós e reavivar a nossa existência por caminhos que só Ele conhece.’


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sábado, 19 de maio de 2018

Consagrados pelo Espírito, que abre corações e fronteiras


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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Ano B – Domingo 20.5.2018

Atos  2,1-11
Salmo  103
Gálatas  5,16-25
João  15,26-27; 16,12-25


Reflexões

‘O Pentecostes cristão celebra o dom do Espírito, «que é Senhor e dá a vida». Inicialmente, a festa hebraica de Pentecostes – sete semanas, ou seja 50 dias depois da Páscoa – era a festa da ceifa do trigo (cf. Ex 23,16; 34,22). Mais tarde, associou-se a ela a recordação da celebração da Lei no Sinai. De festa agrícola, o Pentecostes passou progressivamente a uma festa histórica : um memorial das grandes alianças de Deus com o seu povo (veja-se Noé, Abraão, Moisés e os profetas Jeremias 31,31-34 e Ezequiel 36,24-27…). É de sublinhar a nova perspectiva acerca da Lei e o modo de entender e viver a aliança. A Lei era um dom do qual Israel se sentia orgulhoso, mas era uma etapa transitória, insuficiente.

Era necessário avançar num caminho de interiorização da Lei, caminho que atinge o seu cume no dom do Espírito Santo, que nos é dado, como nova fonte normativa, como verdadeiro e definitivo princípio de vida nova. À volta da Lei, Israel constituiu-se como povo. Na nova família de Deus, a coesão não vem já de um mandamento exterior, por muito importante que seja, mas vem do interior, do coração, em força do amor que o Espírito nos concede «porque o amor de Deus foi derramado nos nossos corações por meio do Espírito Santo» (Rm 5,5). Graças a Ele «somos filhos de Deus» e imploramos : «Abbá, Pai!». Somos o povo da nova aliança, chamados a viver uma vida nova, em força do Espírito que faz de nós família de Deus, com a dignidade de filhos e herdeiros (Rm 8,15-17).

A uma tal dignidade deve corresponder um estilo de vida coerente. Paulo (II leitura) descreve com palavras concretas dois estilos de vida diferentes e opostos, consoante a escolha de cada um: as obras da carne (v. 19-21) ou os frutos do Espírito (v. 22). Para os que são de Cristo Jesus e vivem do Espírito, o programa é só um : «caminhamos segundo o Espírito» (v. 25).

O Espírito faz caminhar as pessoas e os grupos humanos e cristãos, renovando-os e transformando-os a partir de dentro. O Espírito abre os corações, cura-os, reconcilia-os, fá-los ultrapassar fronteiras, conduz à comunhão. É Espírito de unidade (de fé e de amor) na pluralidade de carismas e de culturas, como se vê no acontecimento do Pentecostes (I leitura), no qual se conjugam bem a unidade e a pluralidade, ambos dons do mesmo Espírito. A grande efusão do Espírito consagra os discípulos para serem missionários do Evangelho em todos os lugares da terra. Povos diferentes entendem uma única linguagem comum a todos (v. 9-11). São Paulo atribui ao Espírito a capacidade de tornar a Igreja una e multíplice na pluralidade de carismas, ministérios e modos de agir (cf. 1Cor 12,4-6). A Igreja tem sempre diante de si o desafio de ser católica e missionária; de passar de Babel a Pentecostes. Cf. Bento XVI.

O Espírito Santo é certamente o fruto mais extraordinário da Páscoa na morte e ressurreição de Jesus : Ele sopra-o sobre os seus discípulos (Jo 20,22-23). É o Espírito do perdão dos pecados e o Espírito da missão universal. Melhor, é o protagonista da missão (cf. RM cap. III; EN 75s), confiada por Jesus aos apóstolos e aos seus sucessores. O Espírito está sempre em ação: na obra missionária simples e escondida de cada dia, como também nos momentos mais solenes, a fim de «renovar o acontecimento do Pentecostes nas Igrejas particulares», em ordem a um empenho mais firme na nova evangelização e na missão ad gentes.

Para essa missão o Espírito é-nos dado como guia «para a verdade completa» e como Consolador (Evangelho). Estreitamente ligada à ação criativa e purificadora do Espírito, está também a Sua capacidade de sanar e curar. Trata-se de um poder real e eficaz, à volta do qual existe uma sensibilidade particular no mundo missionário, ainda que nem sempre seja fácil de discernir bem. A ação sanadora atinge por vezes também o corpo, mas muito mais frequentemente toca o espírito humano, sanando as feridas interiores e infundindo o bálsamo da reconciliação e da paz.’


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sexta-feira, 18 de maio de 2018

O martírio na perspectiva do Islã


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Para o Islã, nem todo que morre em nome de Deus é um mártir.
*Artigo de Patrícia Prado,
Doutoranda em Relações Internacionais (PUC, MG) 

‘Falar sobre o martírio é ir ao encontro do testemunho e da fé. É falar sobre a morte, mas também sobre a vida. É ir aos fundamentos, aos valores que sustentam não apenas um pensamento sobre determinada ação, mas, antes, as origens que mantêm viva a ideia que leva a essa ação. Falar sobre martírio é ir ao encontro do sacrifício, da devoção, da renúncia, da entrega. Por isso, antes de dizer o que é o martírio, e em especial, o martírio no Islã, é preciso compreender as bases teológicas dessa religião a fim de chegar à construção do significado de martírio para esse grupo religioso.

Terceira religião da tríade monoteísta, o Islã tem seu advento no século VII, entre os povos de língua árabe, sendo hoje a religião que mais cresce no mundo seguindo atrás do Cristianismo em número de adeptos (LIPKA, 2017). Presente em todos os continentes, não se pode falar do Islã, mas dos Islãs que se apresentam como uma mescla entre o conjunto de regras fixas e a adaptação cultural. Por isso, ao se pensar ou falar sobre Islã é preciso dizer não apenas de qual grupo está a se analisar – xiita, sunita, alauíta, etc – mas, também da(s) escola(s) de interpretação ou de jurisprudência (fiqh) a qual esse(s) grupo(s) segue(m).

A ideia sobre o martírio, um dos conceitos caros dentro do Islã, é construída dentro de um arcabouço teológico que passa pela compreensão entre vida terrena, pós-vida e vida em comunidade. Isso significa que, para compreender o martírio dentro do pensamento desse grupo, é preciso ter em mente que a ideia de que a comunidade (ummah) está acima da ideia de indivíduo. Logo, toda a ação que envolve a entrega da própria vida em prol de um coletivo passa por essa construção que diz sobre a visão de mundo dos inseridos nessa lógica, algo que terá implicações diretas sobre o social.

Mas, o que de fato é o martírio dentro do pensamento islâmico? Partimos em busca pelo entendimento indo ao significado semântico da palavra. Do árabe shahada a palavra martírio significa testemunho. Interessante observar que, shahada é o primeiro pilar da fé islâmica que diz sobre a confissão de fé feita por aquele que se reverte ao Islã : lā 'ilaha 'illāl-lāh an Muhammadur rasūlu llāhi – Não há divindade além de Allah (Deus) e Muhammad é Seu mensageiro (e Profeta). Isso significa que, para se alcançar o nível de viver o martírio (shahada) e se tornar, assim, um shahid (mártir) há toda uma preparação que começa no testemunho em vida e vida junto à comunidade, algo ligado diretamente ao grande jihad (esforço). O grande jihad, que diz sobre conduta, postura diante de Deus e dos homens, prepara o ser, caso seja necessário, entrar no chamado pequeno jihad que seria a luta armada, porém, a luta armada que se constitua em legítima defesa.

Assim, o mártir é antes de tudo um crente, um muçulmano (entregue) a Deus e à sua causa, por isso, seus valores e buscas estarão sempre mediados pela vontade de Deus, que está baseada na justiça e na luta contra a opressão. Nesse sentido, as lutas encabeçadas por grupos de resistência islâmica seriam legítimas, pois ao contrário dos grupos terroristas, a resistência tem objetivos e modos de operação que se fundamentam em uma ética para com o outro e com a vida.

Além disso é preciso pontuar que, nem toda morte em nome de Deus é considerada um martírio e, consequentemente, nem todo que morre em nome de Deus é um mártir. Assim, além das questões que passam por verificação dos objetivos e formas como as mortes ocorreram é preciso, também, verificar a vida daquele que morreu. Entre os muçulmanos é comum ouvir frases como ‘só Deus sabe quem é um mártir’, como também é comum ouvir e ver, através das homenagens que são feitas àqueles que morrem por uma causa : ‘esse é um mártir’.

Apesar de parecerem contraditórias as falas, a certeza nasce do testemunho dado em vida pelo que alcança o martírio, ou seja, o reconhecimento dado pela comunidade nasce do testemunho que se manifestou, em vida, através do grande jihad diário. Assim, os mártires deixam um testemunho vivo, poderoso, capaz de mobilizar novas gerações dando continuidade a esse movimento que diz sobre a morte, mas também sobre a vida. E, assim, o martírio vai se constituindo dentro dessa comunidade em uma força que se manifesta em resistência ativa.

Segundo Alagha (2013), o martírio no Islã pode ser dividido em 4 tipos : 1) al-istishadi al-mujahid (o lutador martirizado). Diz-se sobre aquele que se coloca em posição de perigo para salvar outros. Esse tipo de martírio, que envolve o uso do corpo como arma de combate, só pode ser utilizado se houver uma permissão ou autorização do líder religioso. Caso não haja esse tipo de autorização, a morte constitui-se em suicídio. 2) al shahid al mujahid (o lutador mártir). O que morre no campo de batalha ao enfrentar o inimigo em uma causa justa e legítima. 3) al-shahid (o mártir). Diz-se sobre um inocente que é morto. 4) shahid al watan e/ou shahid al qadiyya (o mártir do estado nação/ o mártir de uma causa). Diz-se do não muçulmano que morre lutando pelo seu país ou por uma causa justa.

A especificação dos tipos de martírio que podem ocorrer dentro do Islã é de suma importância para que possamos alargar nosso entendimento sobre o que é o martírio e também, o que não é martírio. Tal entendimento nos ajudará na construção de análises imparciais e justas sobre eventos e ações que ocorrem no ambiente internacional e que tem como envolvidos muçulmanos. Acredito que esse exercício, de compreensão do martírio, faz-se necessário ao se pensar que o uso de algumas ações por pessoas e grupos que se auto nomeiam como muçulmanos não são e não devem ser categorizados como martírio.

A busca pela categorização correta, oriunda de uma compreensão que começa pelo estudo das bases teológicas da religião e das formas interpretativas dos grupos, pode contribuir não apenas para o combate ao preconceito relacionado aos muçulmanos, mas, também, para o esclarecimento àqueles que se sentem atraídos por mensagens travestidas de resistência, mas que, de fato, estão a construir o terror.

O martírio, como uma ideia que perpassa outras tradições, está relacionado a valores e ideais caros, que refletem de forma contundente uma vida de entrega e abnegação. Logo, falar sobre o martírio é falar sobre um caminho que começa no testemunho (shahada) de fé, de entrega. Um caminho que vai sendo construído em um esforço diário (grande jihad) consigo, a fim de se tornar apto a testemunhar (shahadad), em prol de outros no caminho, Deus. A morte, nesse sentido, não é o fim, mas antes, a recompensa de uma vida vivida na e pela causa de Deus. Por isso, ‘não creiais que aqueles que foram mortos no caminho de Allah estão mortos; ao contrário, estão vivos, junto de seu Senhor, e por Ele sustentados’ (Alcorão 3:169).’


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