Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo
de Patrícia Prado,
Doutoranda em Relações Internacionais (PUC, MG)
‘Falar sobre o
martírio é ir ao encontro do testemunho e da fé. É falar sobre a morte, mas
também sobre a vida. É ir aos fundamentos, aos valores que sustentam não apenas
um pensamento sobre determinada ação, mas, antes, as origens que mantêm viva a
ideia que leva a essa ação. Falar sobre martírio é ir ao encontro do
sacrifício, da devoção, da renúncia, da entrega. Por isso, antes de dizer o que
é o martírio, e em especial, o martírio no Islã, é preciso compreender as bases
teológicas dessa religião a fim de chegar à construção do significado de
martírio para esse grupo religioso.
Terceira religião
da tríade monoteísta, o Islã tem seu advento no século VII, entre os povos de
língua árabe, sendo hoje a religião que mais cresce no mundo seguindo atrás do
Cristianismo em número de adeptos (LIPKA, 2017). Presente em todos os
continentes, não se pode falar do Islã, mas dos Islãs que se apresentam como
uma mescla entre o conjunto de regras fixas e a adaptação cultural. Por isso,
ao se pensar ou falar sobre Islã é preciso dizer não apenas de qual grupo está
a se analisar – xiita, sunita, alauíta, etc – mas, também da(s) escola(s) de
interpretação ou de jurisprudência (fiqh) a qual esse(s) grupo(s)
segue(m).
A ideia sobre o
martírio, um dos conceitos caros dentro do Islã, é construída dentro de um
arcabouço teológico que passa pela compreensão entre vida terrena, pós-vida e
vida em comunidade. Isso significa que, para compreender o martírio dentro do
pensamento desse grupo, é preciso ter em mente que a ideia de que a comunidade (ummah)
está acima da ideia de indivíduo. Logo, toda a ação que envolve a entrega da
própria vida em prol de um coletivo passa por essa construção que diz sobre a
visão de mundo dos inseridos nessa lógica, algo que terá implicações diretas
sobre o social.
Mas, o que de fato
é o martírio dentro do pensamento islâmico? Partimos em busca pelo entendimento
indo ao significado semântico da palavra. Do árabe shahada a
palavra martírio significa testemunho. Interessante observar que, shahada é
o primeiro pilar da fé islâmica que diz sobre a confissão de fé feita por
aquele que se reverte ao Islã : lā 'ilaha 'illāl-lāh an Muhammadur
rasūlu llāhi – Não há divindade além de Allah (Deus) e
Muhammad é Seu mensageiro (e Profeta). Isso significa que, para se alcançar o
nível de viver o martírio (shahada) e se tornar, assim, um shahid (mártir)
há toda uma preparação que começa no testemunho em vida e vida junto à
comunidade, algo ligado diretamente ao grande jihad (esforço).
O grande jihad, que diz sobre conduta, postura diante de Deus
e dos homens, prepara o ser, caso seja necessário, entrar no chamado pequeno jihad que
seria a luta armada, porém, a luta armada que se constitua em legítima defesa.
Assim, o mártir é
antes de tudo um crente, um muçulmano (entregue) a Deus e à sua causa, por
isso, seus valores e buscas estarão sempre mediados pela vontade de Deus, que
está baseada na justiça e na luta contra a opressão. Nesse sentido, as lutas
encabeçadas por grupos de resistência islâmica seriam legítimas, pois ao
contrário dos grupos terroristas, a resistência tem objetivos e modos de
operação que se fundamentam em uma ética para com o outro e com a vida.
Além disso é
preciso pontuar que, nem toda morte em nome de Deus é considerada um martírio
e, consequentemente, nem todo que morre em nome de Deus é um mártir. Assim,
além das questões que passam por verificação dos objetivos e formas como as
mortes ocorreram é preciso, também, verificar a vida daquele que morreu. Entre
os muçulmanos é comum ouvir frases como ‘só Deus sabe quem é um mártir’, como
também é comum ouvir e ver, através das homenagens que são feitas àqueles que
morrem por uma causa : ‘esse é um mártir’.
Apesar de
parecerem contraditórias as falas, a certeza nasce do testemunho dado em vida
pelo que alcança o martírio, ou seja, o reconhecimento dado pela comunidade
nasce do testemunho que se manifestou, em vida, através do grande jihad diário.
Assim, os mártires deixam um testemunho vivo, poderoso, capaz de mobilizar
novas gerações dando continuidade a esse movimento que diz sobre a morte, mas
também sobre a vida. E, assim, o martírio vai se constituindo dentro dessa
comunidade em uma força que se manifesta em resistência ativa.
Segundo Alagha
(2013), o martírio no Islã pode ser dividido em 4 tipos : 1) al-istishadi
al-mujahid (o lutador martirizado). Diz-se sobre aquele que se coloca
em posição de perigo para salvar outros. Esse tipo de martírio, que envolve o
uso do corpo como arma de combate, só pode ser utilizado se houver uma
permissão ou autorização do líder religioso. Caso não haja esse tipo de
autorização, a morte constitui-se em suicídio. 2) al shahid al
mujahid (o lutador mártir). O que morre no campo de batalha ao
enfrentar o inimigo em uma causa justa e legítima. 3) al-shahid (o
mártir). Diz-se sobre um inocente que é morto. 4) shahid al watan e/ou shahid
al qadiyya (o mártir do estado nação/ o mártir de uma causa). Diz-se
do não muçulmano que morre lutando pelo seu país ou por uma causa justa.
A especificação
dos tipos de martírio que podem ocorrer dentro do Islã é de suma importância
para que possamos alargar nosso entendimento sobre o que é o martírio e também,
o que não é martírio. Tal entendimento nos ajudará na construção de análises
imparciais e justas sobre eventos e ações que ocorrem no ambiente internacional
e que tem como envolvidos muçulmanos. Acredito que esse exercício, de
compreensão do martírio, faz-se necessário ao se pensar que o uso de algumas
ações por pessoas e grupos que se auto nomeiam como muçulmanos não são e não
devem ser categorizados como martírio.
A busca pela
categorização correta, oriunda de uma compreensão que começa pelo estudo das
bases teológicas da religião e das formas interpretativas dos grupos, pode
contribuir não apenas para o combate ao preconceito relacionado aos muçulmanos,
mas, também, para o esclarecimento àqueles que se sentem atraídos por mensagens
travestidas de resistência, mas que, de fato, estão a construir o terror.
O martírio, como
uma ideia que perpassa outras tradições, está relacionado a valores e ideais
caros, que refletem de forma contundente uma vida de entrega e abnegação. Logo,
falar sobre o martírio é falar sobre um caminho que começa no testemunho (shahada)
de fé, de entrega. Um caminho que vai sendo construído em um esforço diário
(grande jihad) consigo, a fim de se tornar apto a testemunhar (shahadad),
em prol de outros no caminho, Deus. A morte, nesse sentido, não é o fim, mas
antes, a recompensa de uma vida vivida na e pela causa de Deus. Por isso, ‘não creiais que aqueles que foram mortos no
caminho de Allah estão mortos; ao contrário, estão vivos, junto de seu Senhor,
e por Ele sustentados’ (Alcorão 3:169).’
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