Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo
de Antônio Ronaldo Vieira Nogueira,
presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte, CE
‘‘Em verdade, em verdade eu vos digo : se o
grão de trigo, ao cair na terra, não morrer, ficará sozinho. Mas se morrer,
produzirá muito fruto’ (Jo 12,24). Algo fundamental do martírio daqui se
depreende : dar a vida, como Jesus, para produzir frutos. Por isso mesmo, nos
primeiros séculos da Igreja, se dizia que o sangue dos mártires é sementeira de
novos cristãos (Tertuliano). Já bem cedo, no Novo Testamento, se percebeu que a
perseguição era algo inerente à nova fé : ‘Porque
vós sabeis que para isso é que fomos destinados. De fato, quando ainda
estávamos entre vós, nós já vos dizíamos que devíamos sofrer tribulações, e
assim aconteceu como vós sabeis’ (1Ts 3,3b-4). Bem cedo também se percebeu
que essa perseguição podia chegar a uma morte violenta. Surgiu a teologia do
martírio (a palavra mártir quer dizer testemunha).
Com o tempo, a
definição de martírio foi ganhando certa complexidade e hoje é aceito
oficialmente o seguinte conceito : ‘Teologicamente
assim se define o martírio : o suportar voluntário da condenação à morte,
infligida por ódio contra a fé ou a lei divina, morte que é firme e
pacientemente suportada e que permite o ingresso imediato na bem-aventurança’
(FISICHELLA, Rino. Dicionário de Teologia Fundamental, verbete ‘Martírio’. Petrópolis: Vozes, 1994,
p.574).
Por sua vez, o
Concílio Vaticano II, na LG 42, afirma : ‘Tendo
Jesus, Filho de Deus manifestado sua caridade dando por nós a sua vida, ninguém
tem um amor maior do que o que dá a vida por ele e por seus irmãos (cf. 1Jo
3,16; Jo 15,13). Eis por que desde os tempos antigos alguns cristãos foram
chamados, e o serão sempre, a dar este testemunho de amor diante dos homens e
especialmente diante dos perseguidores. Por isto, o martírio, com o qual o
discípulo se torna uma só realidade com o mestre que livremente aceita a morte
pela salvação do mundo, e a ele se conforma no derramamento de sangue, é
considerado pela Igreja como dom insigne e prova suprema de caridade. Embora
ele seja a poucos concedido, devem todavia todos estar prontos a confessar a
Cristo diante dos homens e a segui-lo no caminho da cruz durante as
perseguições, que nunca faltam na vida da Igreja’. Nesse texto, o mártir
aparece inserido numa perspectiva cristocêntrica : a base do martírio é a
configuração a Cristo que manifesta seu amor, dando-nos sua vida. O mártir,
configurado a Cristo, é capaz de continuar o testemunho da entrega da vida por
amor, confirmando os irmãos na fé. O foco do texto recai sobre o amor, cuja
base é Cristo, e pelo qual se pode dar verdadeiro testemunho da ‘fé que age através do amor’ (Gl 5,6).
Essa tônica é
importante, pois nos encontramos diante de uma mudança de eventos em que muitas
vezes o perseguidor se diz também cristão e não simplesmente alguém que
explicitamente tenha ódio à fé e, muitas vezes, a perseguição que inflige é
dita em nome da fé cristã. Sem dúvida, permanece o odium fidei como
elemento importante e necessário para a compreensão do martírio, mas nele se
pode perceber que a fé que age pela caridade se manifesta na busca da justiça.
Nesse sentido, Rino Fisichella afirma : ‘o
mártir não é mais isolado a alguns casos esporádicos, mas é fácil encontrá-lo
em todos os lugares em que, por amor ao evangelho, se vive com coerência, até o
ponto de dar a própria vida, ao lado dos pobres, dos marginalizados e dos
violentados, e se defendem seus direitos pisoteados’ (Op. cit.,
p.575). Esse autor insiste na necessidade de uma definição de martírio em que
se compreendam as novas formas de perseguição nas quais a verdade da fé e a
credibilidade do amor estão comprometidas (cf. Ibidem).
Particularmente ilustrativo nessa tônica dada ao amor é o processo de
canonização do Pe. Maximiliano Kolbe, morto nos campos nazistas. Na homilia do
Papa João Paulo II, a ênfase recai sobre o testemunho de amor : ‘Diante da eloquência da vida e da morte do
Beato Maximiliano, não se pode
não reconhecer o que parece constituir o principal e essencial
conteúdo do sinal dado
por Deus à Igreja e ao mundo na sua morte. Não constitui esta morte enfrentada
espontaneamente, por amor ao homem, um particular cumprimento das palavras de Cristo? Não torna ela Maximiliano particularmente semelhante a Cristo,
Modelo de todos os Mártires, que na Cruz dá a própria vida pelos irmãos? Não
possui precisamente tal morte uma especial e penetrante eloquência para a nossa época? Não
constitui ela um testemunho
particularmente autêntico da Igreja no mundo contemporâneo?’
(JOÃO PAULO II, Papa. Solene Rito de canonização de São Maximiliano Maria
Kolbe. Homilia. Roma, 10 de outubro de 1982).
Também Karl Rahner
postulava uma ampliação do sentido de martírio, tomando como base a própria
vida de Dom Oscar Romero : ‘Por que não
haveria de ser mártir um monsenhor Romero, por exemplo, que tombou na luta pela
justiça na sociedade, numa luta que ele travou a partir de suas convicções
cristãs mais profundas?’ (RAHNER, Karl. Dimensões do martírio. Concilium,
n.183, 1983, p.271). O próprio Papa Francisco, em discurso dirigido a
salvadorenhos que foram a Roma lhe agradecer a beatificação de Dom Romero,
apresentou o martírio sofrido por Romero, antes, durante e depois de sua vida :
‘Gostaria de acrescentar algo, que talvez
nos tenha passado despercebido. O martírio de D. Romero não teve lugar
unicamente no momento da sua morte; tratou-se de um martírio-testemunho, de um
sofrimento anterior, de uma perseguição precedente, até à sua morte. Mas também
posterior porque, depois de morto — eu era um jovem sacerdote e disto fui
testemunha — ele foi difamado, caluniado, desonrado, isto é, o seu martírio
continuou até por parte dos seus próprios irmãos no sacerdócio e no episcopado.
[...] Depois de ter entregue (sic) a própria vida, ele continuou a oferecê-la,
deixando-se açoitar por todas aquelas incompreensões e calúnias. Só Deus sabe
como isto me fortalece! Só Deus conhece
a história das pessoas, e quantas vezes pessoas que já entregaram a própria
vida, ou que já morreram, continuam a ser lapidadas com a pedra mais dura que
existe no mundo : a língua’ (FRANCISCO, Papa. Discurso do Papa Francisco a um grupo de
peregrinos de El Salvador. Roma, 30 de outubro de 2015).
Visto isso,
acreditamos que um conceito de martírio no mundo atual em que as perseguições
apresentam novas facetas (muitas vezes propugnadas por cristãos, marcada também
pela ridicularização, banalização, indiferença, calúnia e, por fim, a morte),
precisamos ter consciência de que o ódio à fé tem se manifestado como ódio ao
amor pelo qual opera a fé e que se manifesta na configuração da própria vida à
de Jesus que doa livremente sua vida para ser fiel a Deus até o fim. Por isso,
o martírio é provocado pela configuração a Cristo, continuando sua missão de
anúncio da Boa Notícia aos pobres, de libertação aos presos e recuperação da
vista aos cegos, liberdade aos oprimidos e ano da graça do Senhor (cf. Lc
4,18-19). O mártir, portanto, se põe no seguimento de Jesus, realizando, na sua
vida, o mesmo amor manifestado na vida, na missão e na cruz de Jesus. O mártir
é testemunha da entrega da vida por amor, provocando adesão a Jesus, à sua
missão e ao amor com que Ele entregou a própria vida; o sangue do mártir se
torna, assim, semente de novos cristãos, de novas adesões, de continuidade na
missão de Jesus. Isso não nos deve fazer esquecer, porém, embora falemos aqui
analogicamente, os inúmeros ‘mártires
anônimos’, pessoas que deram a vida por amor, de maneira incondicional,
mesmo sem uma profissão explícita da fé. Tampouco se pode esquecer os mártires
que não foram canonizados : assim como conhecemos inúmeras pessoas que mesmo
não canonizadas as consideramos santas pelo testemunho de vida que deram, assim
também vale a pena trazer diante dos olhos e do coração tantos homens e
mulheres que tombaram na luta pelo Reino anunciado por Jesus : Pe. Rutílio
Grande, Margarida Maria, Pe. Ezequiel Ramin, Santos Dias, Pe. Josimo, Ir.
Dorothy e a multidão de testemunhas que não se podia contar, que traziam palmas
na mão e lavaram suas vestes no sangue do Cordeiro (cf. Ap 7,9-14).
A vida doada
livremente por amor, por si só, é também denúncia profética contra todos
aqueles que negam o amor pela prática da injustiça, violência e opressão e também
por aqueles que continuam a lapidar a vida do mártir com a pedra da língua,
como bem nos recorda o Papa Franscisco. A mesma configuração a Jesus Cristo
leva o mártir a não provocar violência contra seus inimigos, mas a vencer o mal
com a força do bem e do amor. Por fim, o mártir provoca esperança : ‘Em verdade, em verdade eu vos digo : se o
grão de trigo, ao cair na terra, não morrer, ficará sozinho. Mas se morrer,
produzirá muito fruto’ disse Jesus (Jo 12,24); ‘se me matarem, ressuscitarei na vida do meu povo’ disse Dom Romero.’
Fonte :
* Artigo na íntegra http://domtotal.com/noticia/1250934/2018/04/martirio-configuracao-a-jesus-cristo-entrega-da-vida-por-amor/
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