quinta-feira, 10 de maio de 2018

Martírio : configuração a Jesus Cristo, entrega da vida por amor


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 O sangue dos mártires é sementeira de novos cristãos.
*Artigo de Antônio Ronaldo Vieira Nogueira,
presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte, CE


‘‘Em verdade, em verdade eu vos digo : se o grão de trigo, ao cair na terra, não morrer, ficará sozinho. Mas se morrer, produzirá muito fruto’ (Jo 12,24). Algo fundamental do martírio daqui se depreende : dar a vida, como Jesus, para produzir frutos. Por isso mesmo, nos primeiros séculos da Igreja, se dizia que o sangue dos mártires é sementeira de novos cristãos (Tertuliano). Já bem cedo, no Novo Testamento, se percebeu que a perseguição era algo inerente à nova fé : ‘Porque vós sabeis que para isso é que fomos destinados. De fato, quando ainda estávamos entre vós, nós já vos dizíamos que devíamos sofrer tribulações, e assim aconteceu como vós sabeis’ (1Ts 3,3b-4). Bem cedo também se percebeu que essa perseguição podia chegar a uma morte violenta. Surgiu a teologia do martírio (a palavra mártir quer dizer testemunha).

Com o tempo, a definição de martírio foi ganhando certa complexidade e hoje é aceito oficialmente o seguinte conceito : ‘Teologicamente assim se define o martírio : o suportar voluntário da condenação à morte, infligida por ódio contra a fé ou a lei divina, morte que é firme e pacientemente suportada e que permite o ingresso imediato na bem-aventurança’ (FISICHELLA, Rino. Dicionário de Teologia Fundamental, verbete ‘Martírio’. Petrópolis: Vozes, 1994, p.574).

Por sua vez, o Concílio Vaticano II, na LG 42, afirma : ‘Tendo Jesus, Filho de Deus manifestado sua caridade dando por nós a sua vida, ninguém tem um amor maior do que o que dá a vida por ele e por seus irmãos (cf. 1Jo 3,16; Jo 15,13). Eis por que desde os tempos antigos alguns cristãos foram chamados, e o serão sempre, a dar este testemunho de amor diante dos homens e especialmente diante dos perseguidores. Por isto, o martírio, com o qual o discípulo se torna uma só realidade com o mestre que livremente aceita a morte pela salvação do mundo, e a ele se conforma no derramamento de sangue, é considerado pela Igreja como dom insigne e prova suprema de caridade. Embora ele seja a poucos concedido, devem todavia todos estar prontos a confessar a Cristo diante dos homens e a segui-lo no caminho da cruz durante as perseguições, que nunca faltam na vida da Igreja’. Nesse texto, o mártir aparece inserido numa perspectiva cristocêntrica : a base do martírio é a configuração a Cristo que manifesta seu amor, dando-nos sua vida. O mártir, configurado a Cristo, é capaz de continuar o testemunho da entrega da vida por amor, confirmando os irmãos na fé. O foco do texto recai sobre o amor, cuja base é Cristo, e pelo qual se pode dar verdadeiro testemunho da ‘fé que age através do amor’ (Gl 5,6).

Essa tônica é importante, pois nos encontramos diante de uma mudança de eventos em que muitas vezes o perseguidor se diz também cristão e não simplesmente alguém que explicitamente tenha ódio à fé e, muitas vezes, a perseguição que inflige é dita em nome da fé cristã. Sem dúvida, permanece o odium fidei como elemento importante e necessário para a compreensão do martírio, mas nele se pode perceber que a fé que age pela caridade se manifesta na busca da justiça. Nesse sentido, Rino Fisichella afirma : ‘o mártir não é mais isolado a alguns casos esporádicos, mas é fácil encontrá-lo em todos os lugares em que, por amor ao evangelho, se vive com coerência, até o ponto de dar a própria vida, ao lado dos pobres, dos marginalizados e dos violentados, e se defendem seus direitos pisoteados’ (Op. cit., p.575). Esse autor insiste na necessidade de uma definição de martírio em que se compreendam as novas formas de perseguição nas quais a verdade da fé e a credibilidade do amor estão comprometidas (cf. Ibidem). Particularmente ilustrativo nessa tônica dada ao amor é o processo de canonização do Pe. Maximiliano Kolbe, morto nos campos nazistas. Na homilia do Papa João Paulo II, a ênfase recai sobre o testemunho de amor : ‘Diante da eloquência da vida e da morte do Beato Maximiliano, não se pode não reconhecer o que parece constituir o principal e essencial conteúdo do sinal dado por Deus à Igreja e ao mundo na sua morte. Não constitui esta morte enfrentada espontaneamente, por amor ao homem, um particular cumprimento das palavras de Cristo? Não torna ela Maximiliano particularmente semelhante a Cristo, Modelo de todos os Mártires, que na Cruz dá a própria vida pelos irmãos? Não possui precisamente tal morte uma especial e penetrante eloquência para a nossa época? Não constitui ela um testemunho particularmente autêntico da Igreja no mundo contemporâneo?’ (JOÃO PAULO II, Papa. Solene Rito de canonização de São Maximiliano Maria Kolbe. Homilia. Roma, 10 de outubro de 1982).

Também Karl Rahner postulava uma ampliação do sentido de martírio, tomando como base a própria vida de Dom Oscar Romero : ‘Por que não haveria de ser mártir um monsenhor Romero, por exemplo, que tombou na luta pela justiça na sociedade, numa luta que ele travou a partir de suas convicções cristãs mais profundas?’ (RAHNER, Karl. Dimensões do martírio. Concilium, n.183, 1983, p.271). O próprio Papa Francisco, em discurso dirigido a salvadorenhos que foram a Roma lhe agradecer a beatificação de Dom Romero, apresentou o martírio sofrido por Romero, antes, durante e depois de sua vida : ‘Gostaria de acrescentar algo, que talvez nos tenha passado despercebido. O martírio de D. Romero não teve lugar unicamente no momento da sua morte; tratou-se de um martírio-testemunho, de um sofrimento anterior, de uma perseguição precedente, até à sua morte. Mas também posterior porque, depois de morto — eu era um jovem sacerdote e disto fui testemunha — ele foi difamado, caluniado, desonrado, isto é, o seu martírio continuou até por parte dos seus próprios irmãos no sacerdócio e no episcopado. [...] Depois de ter entregue (sic) a própria vida, ele continuou a oferecê-la, deixando-se açoitar por todas aquelas incompreensões e calúnias. Só Deus sabe como isto me fortalece! Só Deus conhece a história das pessoas, e quantas vezes pessoas que já entregaram a própria vida, ou que já morreram, continuam a ser lapidadas com a pedra mais dura que existe no mundo : a língua’ (FRANCISCO, Papa. Discurso do Papa Francisco a um grupo de peregrinos de El Salvador. Roma, 30 de outubro de 2015).

Visto isso, acreditamos que um conceito de martírio no mundo atual em que as perseguições apresentam novas facetas (muitas vezes propugnadas por cristãos, marcada também pela ridicularização, banalização, indiferença, calúnia e, por fim, a morte), precisamos ter consciência de que o ódio à fé tem se manifestado como ódio ao amor pelo qual opera a fé e que se manifesta na configuração da própria vida à de Jesus que doa livremente sua vida para ser fiel a Deus até o fim. Por isso, o martírio é provocado pela configuração a Cristo, continuando sua missão de anúncio da Boa Notícia aos pobres, de libertação aos presos e recuperação da vista aos cegos, liberdade aos oprimidos e ano da graça do Senhor (cf. Lc 4,18-19). O mártir, portanto, se põe no seguimento de Jesus, realizando, na sua vida, o mesmo amor manifestado na vida, na missão e na cruz de Jesus. O mártir é testemunha da entrega da vida por amor, provocando adesão a Jesus, à sua missão e ao amor com que Ele entregou a própria vida; o sangue do mártir se torna, assim, semente de novos cristãos, de novas adesões, de continuidade na missão de Jesus. Isso não nos deve fazer esquecer, porém, embora falemos aqui analogicamente, os inúmeros ‘mártires anônimos’, pessoas que deram a vida por amor, de maneira incondicional, mesmo sem uma profissão explícita da fé. Tampouco se pode esquecer os mártires que não foram canonizados : assim como conhecemos inúmeras pessoas que mesmo não canonizadas as consideramos santas pelo testemunho de vida que deram, assim também vale a pena trazer diante dos olhos e do coração tantos homens e mulheres que tombaram na luta pelo Reino anunciado por Jesus : Pe. Rutílio Grande, Margarida Maria, Pe. Ezequiel Ramin, Santos Dias, Pe. Josimo, Ir. Dorothy e a multidão de testemunhas que não se podia contar, que traziam palmas na mão e lavaram suas vestes no sangue do Cordeiro (cf. Ap 7,9-14).

A vida doada livremente por amor, por si só, é também denúncia profética contra todos aqueles que negam o amor pela prática da injustiça, violência e opressão e também por aqueles que continuam a lapidar a vida do mártir com a pedra da língua, como bem nos recorda o Papa Franscisco. A mesma configuração a Jesus Cristo leva o mártir a não provocar violência contra seus inimigos, mas a vencer o mal com a força do bem e do amor. Por fim, o mártir provoca esperança : ‘Em verdade, em verdade eu vos digo : se o grão de trigo, ao cair na terra, não morrer, ficará sozinho. Mas se morrer, produzirá muito fruto’ disse Jesus (Jo 12,24); ‘se me matarem, ressuscitarei na vida do meu povo’ disse Dom Romero.’


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