quarta-feira, 16 de maio de 2018

Judaísmo e martírio


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Não raro o martírio sobreveio sobre o povo judeu e bem mais que uma centena de vezes se configurou como um caminho possível ante ideia de apostatar a fé. 
*Artigo de Reuberson Ferreira, M.S.C.,
mestre em teologia

You have done everything to make me lose my faith in You, to make me cease to believe in You. But I die exactly as I have lived, an unshakeable believe in You’ (Yols Rakover).

'Nos difíceis tempos do nazismonuma das ruínas do gueto de Varsóvia, preservado em uma pequena garrafa escondida entre montes de pedras carbonizadas e ossos humanos, diz-se que foi encontrado o testamento espiritual de um judeu chamado Yosl Rakover, intitulado diálogo com D’us. Entre outras coisas, o testamentário, após relatar a trágica morte de sua família, as agruras de sua vida e sua nefasta situação ante o regime de Hitler, dirige-se a D’us dizendo : Fizeste de tudo para que eu não acreditasse em Ti! Mas eu morro exatamente como vivi : com uma inabalável fé em Ti

Essa história, não obstante o realismo, a carga teológica e emocional que apresenta, é uma obra de ficção pós-holocausto[1] escrita na argentina, originalmente para um jornal iídiche, pelo Judeu Lituano Zvi Kolitz. Vertida para diversos idiomas, popularizou-se em meios judaicos (e não judaicos), inclusive merecendo comentários de Emmanuel Lévinas. Esse texto, a despeito das interpretações teológicas a ela impressas e da certeza que as mortes no holocausto não eram somente fruto de perseguição religiosa, é lendária e ilustra aquilo que no universo judaico é entendido como martírio : a capacidade de, incluso perder a própria vida, para não abjurar sua fé no Senhor de Israel, não profanar o nome santo de D’us (cf Lv. 22,32).

Sobre o judaísmo, antes de mais, deve-se dizer que o martírio não é algo que se busque, almeje, planeje ou deseje. Muito ao contrário, ele visa defender e prover a vida dos filhos de Israel. Sacrifício humano é uma ideia incipiente no universo judaico. Não obstante essa premissa, não raro o martírio sobreveio sobre o povo judeu e bem mais que uma centena de vezes se configurou como um caminho possível ante ideia de apostatar a fé.

No universo das Escrituras Sagradas, no livro de Daniel, os irmãos Sidrac, Misac e Abdênago, são lançados ao fogo por não aceitarem adorar deuses estranhos e quando postos na fornalha são vistos cantando – crer-se salmos da Torah (Dn3,21ss). Na obra de Macabeus, a família de Matatias e muitos outros do seu clã, recusam-se em oferecer sacrifícios no altar a Modin. Eles, escusando-se em profanar o sábado, tiveram suas vidas ceifadas (1Mc 1, 15.19.21.33-27). Os três irmãos e os Macabeus são exemplos estritos de fiéis judeus que prefeririam o martírio à apostasia.

Ao longo da história judaica, figuras como Rabi Chanina ben Teradyon e Rabi Akiva, como narra o Talmude, foram martirizados pelas tropas romanas após a destruição do Templo, no primeiro século da era comum. Sobre eles recaiu esse peso por não negarem a própria fé, ensinarem publicamente à Torah assumindo, desse modo, em sua morte, a noção Kidush haShem (Santificar o nome do Senhor, cf. Lv 22, 33) – o martírio. Esse mesmo conceito assumira no imaginário religioso judaico, no período das primeiras cruzadas, uma outra conotação, não mais o da morte impingida por outrem, mas da autoimolação sacrificial ante a possibilidade de negação a fé.

Dentro da tradição litúrgica das festas Judaicas, na celebração de Yom Kippur, que fecha o ciclo aberto por Rosh Hashaná, há alusões ao martírio. Entre essas duas festividades, há um período de dez dias, chamados de dias de arrependimento. Neles, o judeu deve contristar-se do seus pecados, transgressões e faltas para voltar a unir-se com Deus, no dia mais sagrado para o judaísmo. Nesse período, mormente na última oração, recorda-se a memória dos mártires e se louva sua indômita bravura em permanecer fiel ao Senhor, mesmo às expensas de sua vida.

Por fim, apenas para recordar um fato da história recente, a Shoá. No holocausto foi impingida violenta morte ao povo judaico pelo simples delito/pecado de serem Judeus. Foram mais de seis milhões de judeus, que mesmo que conscientemente não estivessem negando a fé (ou até fossem indiferentes a ela) podem, como Maimônides categorizou, serem inseridos dentro da perspectiva de uma morte em Kidush hashem, para santificar o nome de D’us. Como corolário,  foram martirizados. Não sem razão, o nobel da paz, Elie Wiesel, em sua obra The Nigth, ao descrever os horrores do campo de concentração do qual sobrevivera, mesmo reconhecendo que tudo aquilo era culpa da irracionalidade humana, mas eivado por um sentimento de frustração face o silêncio de D’us diante da shóa, desabafou dizendo que ‘se o Senhor existisse, Ele deveria pedir perdão de joelhos à humanidade’, pelos sofrimentos ali vividos. Tamanha foi a barbárie/martírio que Wiesel testemunhou!

Em um plano geral, a noção judaica de martírio é ato segundo, pois sua primeira opção é preservar a vida. Historicamente, contudo, o judaísmo testemunhou ações que se configuram como martiriais, sempre motivadas pela convicção de não abjurar a fé e, desse modo, fazer santo o nome do Senhor. O passar do tempo foi auferindo novas conotações a esse conceito até imprimir-lhe a noção de que qualquer judeu, morto pelo simples fato de ser judeu, era um mártir e teria morrido em Kidush hashem. Em síntese, martírio no judaísmo decorre da opção de, em face a uma situação limite, se preciso for, preferir perder a própria vida a negar o D’us de seus pais.’


[1] KOLITZ, zvi. Yosl Rakover Talks to Go https://archive.nytimes. com/www .nytimes.com/books/first/k /kolitz-god.html. acesso: 04.04.2018(06hs51’)


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