Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo
de Reuberson Ferreira, M.S.C.,
mestre em teologia
You
have done everything to make me lose my faith in You, to make me cease to
believe in You. But I die exactly as I have lived, an unshakeable believe in
You’ (Yols Rakover).
'Nos difíceis
tempos do nazismo, numa das ruínas do gueto de Varsóvia, preservado
em uma pequena garrafa escondida entre montes de pedras carbonizadas e ossos
humanos, diz-se que foi encontrado o testamento espiritual de um judeu chamado
Yosl Rakover, intitulado diálogo com D’us. Entre outras coisas, o
testamentário, após relatar a trágica morte de sua família, as agruras de sua
vida e sua nefasta situação ante o regime de Hitler, dirige-se a D’us dizendo :
‘Fizeste de tudo para que eu não acreditasse em Ti! Mas eu morro exatamente
como vivi : com uma inabalável fé em Ti’
Essa história, não
obstante o realismo, a carga teológica e emocional que apresenta, é uma obra de
ficção pós-holocausto[1] escrita na argentina,
originalmente para um jornal iídiche, pelo Judeu Lituano Zvi Kolitz.
Vertida para diversos idiomas, popularizou-se em meios judaicos (e não
judaicos), inclusive merecendo comentários de Emmanuel Lévinas. Esse texto, a
despeito das interpretações teológicas a ela impressas e da certeza que as
mortes no holocausto não eram somente fruto de perseguição religiosa, é
lendária e ilustra aquilo que no universo judaico é entendido como martírio : a
capacidade de, incluso perder a própria vida, para não abjurar sua fé no Senhor
de Israel, não profanar o nome santo de D’us (cf Lv. 22,32).
Sobre o judaísmo,
antes de mais, deve-se dizer que o martírio não é algo que se busque, almeje,
planeje ou deseje. Muito ao contrário, ele visa defender e prover a vida dos
filhos de Israel. Sacrifício humano é uma ideia incipiente no universo judaico.
Não obstante essa premissa, não raro o martírio sobreveio sobre o povo judeu e
bem mais que uma centena de vezes se configurou como um caminho possível ante ideia
de apostatar a fé.
No universo das
Escrituras Sagradas, no livro de Daniel, os irmãos Sidrac, Misac e Abdênago,
são lançados ao fogo por não aceitarem adorar deuses estranhos e quando postos
na fornalha são vistos cantando – crer-se salmos da Torah (Dn3,21ss). Na obra
de Macabeus, a família de Matatias e muitos outros do seu clã, recusam-se em
oferecer sacrifícios no altar a Modin. Eles, escusando-se em profanar o sábado,
tiveram suas vidas ceifadas (1Mc 1, 15.19.21.33-27). Os três irmãos e
os Macabeus são exemplos estritos de fiéis judeus que prefeririam o martírio à
apostasia.
Ao longo da
história judaica, figuras como Rabi Chanina ben Teradyon e Rabi Akiva, como
narra o Talmude, foram martirizados pelas tropas romanas após a destruição do
Templo, no primeiro século da era comum. Sobre eles recaiu esse peso por não
negarem a própria fé, ensinarem publicamente à Torah assumindo, desse modo, em
sua morte, a noção Kidush haShem (Santificar o nome do Senhor,
cf. Lv 22, 33) – o martírio. Esse mesmo conceito assumira no imaginário
religioso judaico, no período das primeiras cruzadas, uma outra conotação, não
mais o da morte impingida por outrem, mas da autoimolação sacrificial ante a
possibilidade de negação a fé.
Dentro da tradição
litúrgica das festas Judaicas, na celebração de Yom Kippur, que fecha o ciclo
aberto por Rosh Hashaná, há alusões ao martírio. Entre essas duas festividades,
há um período de dez dias, chamados de dias de arrependimento. Neles, o judeu
deve contristar-se do seus pecados, transgressões e faltas para voltar a
unir-se com Deus, no dia mais sagrado para o judaísmo. Nesse período, mormente
na última oração, recorda-se a memória dos mártires e se louva sua indômita
bravura em permanecer fiel ao Senhor, mesmo às expensas de sua vida.
Por fim, apenas
para recordar um fato da história recente, a Shoá. No holocausto foi impingida
violenta morte ao povo judaico pelo simples delito/pecado de serem Judeus.
Foram mais de seis milhões de judeus, que mesmo que conscientemente não
estivessem negando a fé (ou até fossem indiferentes a ela) podem, como
Maimônides categorizou, serem inseridos dentro da perspectiva de uma morte
em Kidush hashem, para santificar o nome de D’us. Como
corolário, foram martirizados. Não sem razão, o nobel da paz, Elie
Wiesel, em sua obra The Nigth, ao descrever os
horrores do campo de concentração do qual sobrevivera, mesmo reconhecendo que
tudo aquilo era culpa da irracionalidade humana, mas eivado por um sentimento
de frustração face o silêncio de D’us diante da shóa, desabafou dizendo que ‘se o Senhor existisse, Ele deveria pedir
perdão de joelhos à humanidade’, pelos sofrimentos ali vividos. Tamanha foi
a barbárie/martírio que Wiesel testemunhou!
Em um plano geral,
a noção judaica de martírio é ato segundo, pois sua primeira opção é preservar
a vida. Historicamente, contudo, o judaísmo testemunhou ações que se configuram
como martiriais, sempre motivadas pela convicção de não abjurar a fé e, desse
modo, fazer santo o nome do Senhor. O passar do tempo foi auferindo novas conotações
a esse conceito até imprimir-lhe a noção de que qualquer judeu, morto pelo
simples fato de ser judeu, era um mártir e teria morrido em Kidush
hashem. Em síntese, martírio no judaísmo decorre da opção de, em face
a uma situação limite, se preciso for, preferir perder a própria vida a negar o
D’us de seus pais.’
[1] KOLITZ,
zvi. Yosl Rakover Talks to Go https://archive.nytimes. com/www
.nytimes.com/books/first/k /kolitz-god.html. acesso: 04.04.2018(06hs51’)
Fonte :
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