Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
Dentre suas características, o pelagianismo nega a necessidade
da graça divina para a salvação. (Jeremy Bishop/ Unsplash)
*Artigo
de José María Castillo,
teólogo
‘O Papa Francisco, em sua recente Exortação
Apostólica Gaudete et Exsultate, nos
faz perceber que, talvez sem estarmos cientes do que está acontecendo com
muitos cristãos, na realidade estamos vivendo nosso cristianismo à custa de
recuperar e dar nova vida a erros (e heresias) que foram rejeitados pela Igreja
séculos atrás. Mas acontece que agora esses erros do passado estão sendo
reabilitados como se fossem a solução para os nossos problemas.
Por isso, o Papa
fala agora sobre o ‘pelagianismo atual’.
Qualquer cristão, medianamente cultivado, sabe muito bem que o pelagianismo é
uma heresia disseminada pelo monge Pelágio no século V. Em resumo, o que
Pelágio ensinava é que o pecado original não existe e negava a necessidade da
graça de Deus. Porque o monge Pelágio entendia que a vontade humana tem poder e
autonomia que lhe bastam. Assim, os pelagianos relativizavam, ou até mesmo
negavam, a necessidade da recepção de sacramentos ou da observância de práticas
religiosas. Exatamente o que muitas pessoas pensam e fazem hoje. São aquelas
que não rezam ou não vão à missa. Porque estão persuadidas de que têm vontade e
liberdade para serem cidadãos exemplares. Outra coisa é se de fato o são.
Porque escandalosos e corruptos existem em abundância.
Diante dessas
ideias, o Papa Francisco insiste, com toda razão, em que os pelagianos
(antigos e modernos) ‘no fundo confiam
apenas em suas próprias forças e sentem-se superiores aos outros’. Por
isso, na minha opinião, aqueles que pensam e vivem assim cumprem o que o Papa
diz na carta. São aqueles que têm ‘a
ideia de que tudo pode ser feito com a vontade humana’. É o que eles pensam
e dizem. Mas eles o fazem?
Sabemos muito bem
que a Igreja foi mudando em muitas coisas. Mas quase sempre com atraso. E
porque não teve mais outra escolha senão mudar. Por exemplo : não faz muito
tempo, o conhecido historiador Frédéric Lenoir nos recordava que a Inquisição
foi abolida no século XVIII. Mas por quê? Por que a instituição tomou
consciência de seu abominável comportamento e decidiu emendar-se? Não.
Simplesmente porque já não dispunha mais dos meios necessários para sua vontade
de dominação. Porque a separação da Igreja e do Estado privou a Igreja do ‘braço secular’ no qual se apoiava para
tirar a vida dos hereges (Cristo Filósofo, Madri: Ariel, p. 29).
Pois algo
semelhante está acontecendo agora com este ‘pelagianismo
atual’. Explico-me. Muitas pessoas não pensaram naquilo que sabiamente
disse Peter Sloterdijk : ‘sem uma crítica
da verticalidade, não estamos em condições de avançar’. O ‘sistema vertical’ já não se sustenta
mais. Por quê? Muitas pessoas não perceberam a mudança mais profunda que
estamos experimentando. Um fato que está mudando a vida das pessoas é que o ‘poder opressivo’ está sendo substituído
pelo ‘poder sedutor’ (Byung-Chul
Han). Quando vejo a quantidade de pessoas que, em todos os lugares e em todos
os momentos, estão debruçadas sobre a tela do celular e prestam mais atenção a
isso do que a qualquer ameaça, digo a mim mesmo : isso é mais grave e
determinante do que imaginamos!
A religião foi
decisiva enquanto o poder opressivo (o pecado, a culpa, o inferno...) era forte
o suficiente para influenciar a vida dos crentes. Esse poder e essa força
enfraqueceram e a cada dia interessam menos e podem menos. O que permanece em
pé? O poder sedutor daquilo que nos impressiona e atrai.
Por que o Papa
Francisco atrai tantas pessoas que nem sequer têm crenças religiosas? Por uma
razão muito simples. Porque ele tem poder de sedução. É verdade que este Papa
tem inimigos, especialmente em ambientes clericais e tradicionais. Pela simples
razão de que esses ambientes viveram, em grande parte, do poder opressivo (de
Deus, do bispo, do pároco, do pecado e do inferno). Na medida em que os ‘clericais’ e ‘tradicionais’ ficam sem ‘poder
opressivo’, nessa mesma medida se veem desarmados e têm a impressão de que
estão soçobrando.
Pelo contrário, se
lemos e relemos as páginas dos Evangelhos, o que se percebe é que Jesus tinha
um ‘poder sedutor’ irresistível. A
coisa mais clara, nesse sentido, é o poder que, no Evangelho, tem o ‘seguimento’ de Jesus. Basta uma palavra :
‘segue-me’. E isso é tudo. Nem um
programa de vida, nem um motivo, nem um ideal. Nada (Dietrich Bonhoeffer). E
sabemos que, pela força dessa palavra, as pessoas deixavam suas casas, suas
famílias, esqueciam-se de comer, perdiam toda segurança... A força da sedução
era irresistível. Quão insuportável era para os Sumos Sacerdotes e ‘homens da religião’ o poder sedutor de
Jesus. Até que decidiram matá-lo (Jo 11, 47-53).
Pelagianismo
atual? Como precisamente conclui Francisco, enquanto ‘em cada irmão, especialmente no mais pequeno, frágil, desamparado e
necessitado, está presente a própria imagem de Deus’, e nós o tratamos de
acordo, o futuro estará cada dia mais claro. Tal religião tem e terá um poder irresistível.’
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