sábado, 7 de setembro de 2013

O Movimento Litúrgico e os efeitos do Concílio Vaticano II na Liturgia (Capítulo 1 de 3)

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

  

1. Introdução 

A partir da Idade Média, houve uma separação descomunal entre teologia e liturgia, distanciando os fiéis da celebração e restringindo-a ao clero. 
Com o surgimento do Concílio Vaticano II, obtivemos uma visão global da celebração litúrgica, deixando para trás as reformas que se ocupavam apenas de revisões e alterações de rubricas. Essa mudança era imprescindível mas, foi um processo lento, profundo e trabalhoso.
 

2. Antecedentes do Movimento Litúrgico
O Iluminismo

           Conhecido movimento ideológico e cultural, surgido no século XVIII, o Iluminismo corresponde à pré-história do movimento litúrgico.

Propunha a derrubada do ‘antigo’ ou do que estivesse alicerçado na autoridade, na hierarquia, na religião e na disciplina para, em seguida, construir novas bases : 'uma política sem direito divino, uma religião sem mistério e uma moral sem dogmas'.

Havia no ar uma insatisfação generalizada com a verdadeira situação da liturgia. Desa­brocharam, assim, tentativas de renovação litúrgica, que requeria :

ü      maior participação da comunidade,
ü      preparação do fiel para acompanhar e entender, por meio da inteligência, o que se pas­sava na liturgia e
ü      simplicidade em contraposição ao supérfluo.
Provém daí a estima pelos sermões e pela compreensão dos textos litúrgicos.

No entanto, essas tentativas não triunfaram. E, mesmo que pareça contraditório, nem tudo foi em vão nesse período. As intenções, em sua maioria, eram corretas e muitas delas encontram hoje sua realização mais genuína e verdadeira. Porém, no contexto daquele momento, inclusive o que era verdadeiro e válido estava intoxicado pelo racionalismo excessivo e individualista.



            De positivo, no campo da liturgia, o Iluminismo prestou um grande serviço à Igreja :

ü  invocou a simplificação dos ritos,
ü  lutou bravamente contra a exuberância do Barroco e
ü  contra os exageros da piedade popular, que se fartava da superstição e do fanatismo re­ligioso, tais como procissões, peregrinações, confrarias, o uso e abuso de relíquias, bênçãos e exorcismos.

            De negativo :

ü  permaneceu excessivamente cativo da própria dimensão humanista,
ü  apoiava uma prática religiosa iluminada pela inteligência e pela cultura e
ü  considerava a liturgia um meio para o indivíduo progredir no sentido moral e pedagó­gico e não como a ação salvífica de Cristo, celebrada e participada no culto.
 

O Sínodo de Pistóia (1786)

           Foi o fato mais representativo do Iluminismo católico e seu tema central era ‘a tendên­cia à simplificação, ao caráter comunitário e à compreensão’. Constavam entre as propostas de reforma litúrgica :

W     a participação ativa dos fiéis no sacrifício eucarístico
W     a comunhão com as hóstias consagradas na própria missa
W     estímulo à missa comunitária, em detrimento das missas privadas
W     centralidade e unicidade do altar (um dos pontos fortes deste evento)
W     limitar a exposição de relíquias sobre o altar
W     ênfase no significado da oração litúrgica
W     a necessidade de reformas do breviário
W     a leitura anual de toda a Escritura
W     a língua nacional ao lado do latim nos livros litúrgicos
Porém, o Sínodo foi condenado por Pio VI ao considerar heréticos os primeiros quinze decretos que se referiam à Igreja e à hierarquia. Tornou-se o exemplo clássico de algo justo que, ao ser tratado com imprudência e erros doutrinais, foi prontamente rejeitado e condenado, retardando por muito tempo (um século e meio) um processo de reforma inevitável. Após o Concílio Vaticano II, quase todas essas propostas se realizaram.

A diferença entre o Sínodo e o Concílio Vaticano II é significativa:

W     enquanto o Sínodo não previa nenhuma preparação catequética nem teológica,
W     o Concílio teve por trás dele um importante movimento litúrgico que supôs um caminho e um preparo em todos os níveis : desde o histórico até o bíblico, o patrístico, o teológico, o sacramental, o doutrinal, o pastoral, o litúrgico e o catequético.        

A Restauração Católica e a Renovação Monástica

Dom Prósper Guéranger
A Igreja, no século XIX, teve que conviver com uma cultura anticlerical e não-cristã em larga escala. E essa cultura, gradativamente, tornara-se independente dela. Por exemplo, em torno de 1870 ocorreram contínuas secularizações dos bens eclesiásticos em vários países.

No âmbito católico, os erros do Iluminismo provocaram uma sólida resistência que se manifestou na acolhida de antigos valores, de dogmas e no respeito à hierarquia da Igreja, isto é, à Cúria Romana (só para constar, a diversidade litúrgica na França esteve determinada pela infidelidade a Roma). A retomada da tradição obviamente contemplou a liturgia : a predileção pelas orações em latim, as rubricas, as solenidades e, principalmente, a restauração do canto gregoriano autêntico. Durante o Barroco, a música sacra adquirira ares de espetáculo com a introdução do concerto e do bel canto na missa.

Nesse meio tempo, despontou a renovação do monacato beneditino pelas mãos de Dom Prósper Guéranger (1805-1875). Antes, porém, ele teve que restaurar o mosteiro de Solesmes, nos arredores de Paris – para se ter uma idéia do ambiente e do momento descrito, após a Revolução Francesa, esta edificação tornara-se um estábulo.

Dom Guéranger publicou ‘Instituições Litúrgicas’ (1840) criticando as liturgias particulares e ‘O ano Litúrgico’ (1841) para auxiliar a compreensão da liturgia durante o ano eclesiástico.

Inteiramente convicto do valor inestimável da tradição cristã, contribuiu com uma fabulosa obra :

ü     estimulou a oração comunitária,
ü     destacou para o povo a presença do Espírito Santo na celebração litúrgica
ü     foi um infatigável e ardente opositor de toda forma de heresia
ü     uniu os católicos em torno do papado
ü     incitou o retorno à liturgia romana
ü     acreditava que a chave da inteligência da liturgia era a leitura do Antigo Testamento, bem como a do Novo apoiada no Antigo
ü     restaurou a ordem beneditina na França
ü     igualmente restaurou e cultivou com esmero o canto gregoriano em sua forma original (até hoje, Solesmes é referência em música sacra) e
ü     disseminou a reforma monástica e espiritual pelos inúmeros mosteiros beneditinos
o      Beuron, na Alemanha
o      Maredsous, na Bélgica
o      Maria Laach, na Alemanha, dentre outros

           Entretanto, restaram duas lacunas: os livros litúrgicos não foram reorganizados e tudo permanecia calcado no latim.

A brilhante reforma perpetrada por Dom Guéranger, para alguns estudiosos, foi consi­derada incompleta por ter se baseado no período medieval, sem regressar e se aprofundar na Igreja primitiva e na teologia dos Santos Padres.

O Concílio Vaticano I (1869-1870)

Pio IX

O papa Pio IX convocou o Concílio Vaticano I para desanuviar a doutrina católica e referendar o poder papal no âmago da Igreja e da sociedade. Em função da guerra franco-alemã, em 1870, ele foi repentina e precocemente suspenso ( e não encerrado, como alguns imaginam ). Todavia, deu tempo :

ü     De condenar os erros do ateísmo, do racionalismo e do materialismo, dentro e fora da Igreja e
ü     De promulgar duas Constituições Dogmáticas relevantes
o       a ‘Dei Filius’, sobre a fé católica da revelação de Deus por meio de Jesus Cristo e da criação, ou seja, o reconhecimento da harmonia entre fé e razão e
o       a ‘Pastor Aeternus’, pertinente à Igreja, determinou a infalibilidade papal, quando o mesmo fala ex cathedra (oficialmente) sobre assuntos de fé e moral.


        Pio X e o Motu Proprio ‘Tra le sollecitudini 

Pio X

O início do século XX foi sacudido pelo Motu Proprio ‘Tra le sollecitudini’, ou, ‘Dentre as solicitudes’ (1903). Lançado pelo papa Pio X, frisava o canto e a música na Igreja, as­sinalando um ponto de partida no quesito atividade litúrgica. O papa, ao se referir ao verdadeiro espírito cristão e à ‘participação ativa nos sacrossantos mistérios e na oração pú­blica e solene da Igreja’, determinava uma trilha de renovação que exerceria influência nas próximas décadas.
Porém, nesse momento, o tom enfático não refletia a real situação da liturgia nem o cotidiano das comunidades cristãs que permaneciam atreladas às leis e aos ritos externos.
  

Fontes :
Bettencourt, Estevão Tavares. Curso de Liturgia. Escola ‘Mater Ecclesiae’, Cursos por Correspondência, Rio de Janeiro.
Flores, Juan Javier. Introdução à Teologia Litúrgica. São Paulo, Paulinas, 2006.
López Martín, Julián. A Liturgia da Igreja. São Paulo, Paulinas, 2006.
Castellano, Jesús. Liturgia e Vida Espiritual. São Paulo, Paulinas, 2008.
Marsili, Salvatore. Sinais do Mistério de Cristo. São Paulo, Paulinas, 2009.
Garcia Cordeiro, José Manuel. Movimento Litúrgico (Discurso do bispo de Bragança-Miranda na tomada de posse como correspondente da Academia Internacional de Cul­tura Portuguesa). Lisboa, 2012.


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