segunda-feira, 9 de setembro de 2013

O Movimento Litúrgico e os efeitos do Concílio Vaticano II na Liturgia (Capítulo 2 de 3)

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)



                 3. O Movimento Litúrgico

            Do ponto de vista histórico-litúrgico, tivemos os grandes períodos :

W  de 1909 a 1963do movimento litúrgico à reforma litúrgica
W  de 1963 a 1990 – da reforma litúrgica à renovação
W  de 1990 em dianteda renovação à espiritualidade litúrgica

            O movimento litúrgico foi um processo de retomada das virtudes cristãs que impulsio­nou a Igreja e estimulou o leigo a compreender e a partilhar com mais ênfase da vida litúrgica em comunidade, abrangendo etapas distintas :

W  de 1909 a 1914
W  de 1914 a 1918 e de 1939 a 1943 - tempo das Grandes Guerras
W  de 1943 a 1963

Para cada etapa, destacaremos uma personalidade pioneira e sua contribuição.


A primeira etapa (de 1909 a 1914 )

Dom Lambert Beauduin
            Dom Lambert Beauduin (1873-1960), sacerdote que devotou parte de sua vida ao mundo operário na pastoral litúrgica das paróquias, ansiava o retorno consciente e participativo do cristão na liturgia e que o mesmo compreendesse os mistérios celebrados no altar.

            Tempos depois, entrou para o mosteiro de Mont-César, na Bélgica, tornando-se monge beneditino. Em 1909, na cidade de Malines, difundiu o movimento litúrgico no Congresso Nacional de Obras Católicas. Tal episódio recomendava a renovação da liturgia como a oração da Igreja (alimento principal da vida dos fiéis), do culto autêntico e que a liturgia se consistisse da verdadeira religiosidade da Igreja.

            Nos primeiros tempos, emergiu uma profusão de artefatos de grande excelência : temporadas de formação, cursos, revistas, sinalizando que a liturgia estava muito além das ações protocolares.

            Quanto ao leigo, também era necessário reeducá-lo pois, ao perder o sentido da celebração litúrgica, perdera também o sentido do sagrado.

            Ao publicar ‘A piedade da Igreja’ (1914) para oferecer ao movimento bases teológicas mais sólidas, era evidente o predomínio do espírito do Motu Proprio de Pio X.

            Na sua visão teológica, Beauduin propôs : ‘o missal traduzido para os fiéis, a reza das vésperas e completas, a revalorização da missa paroquial principal e das antigas tra­dições litúrgicas nas famílias’.

            Na visão eclesiológica, recebeu influência de seu professor de Dogmática, Dom Columba Marmion. O então abade de Maredsous, dera uma orientação bíblica à sua teolo­gia eclesiológica (baseando-se nas epístolas de São Paulo, nos ensinamentos dos concílios e nos Santos Padres) e uma orientação cristológica à sua espiritualidade. Beauduin adotou quase o mesmo enfoque.

            Posteriormente, a Lumen gentium concederá à Igreja uma eclesiologia arraigada na tradição, na Escritura e nos Santos Padres.   

            As encíclicas de Pio XII valeram-se de seu trabalho : a concepção de Igreja na obra divina da redenção na ‘Mediator Dei’ e o conceito de Igreja como corpo místico, o Cristo glorioso e cabeça do corpo místico, na ‘Mystici corporis’.

            Por último, na visão litúrgica, Beauduin baseou-se na pastoral litúrgica. Para ele, o aspecto comunitário era essencial. Considerava a liturgia como educadora da fé, da vida e do culto da Igreja, distinguindo a diferença entre sacerdócio ministerial e sacerdócio co­mum : ‘em seu ministério, o sacerdote oferece o sacrifício como representante de Cristo, cabeça da Igreja, enquanto o cristão comum apresenta as oferendas como membro ativo do corpo místico’.

            No tocante à eficácia da celebração litúrgica, Dom Odo Casel dará prosseguimento à intuição da força salvífica da Páscoa na partilha em comunidade.          

            Graças à criatividade de Beauduin, ao retornar às origens para obter os componentes basilares da renovação litúrgica, alcançamos a visão teológica da liturgia. E esta será uma das linhas adotadas pelo Concílio Vaticano II.

            Contudo, o movimento litúrgico era bem aceito desde que, limitado aos mosteiros, principalmente naqueles que receberam a influência renovadora de Dom Guéranger. O pa­norama deixou de ser tranquilo quando o movimento apresentou-se como ‘renovação espi­ritual’.

            Após a publicação de ‘A Litúrgia Católica’ (1913), de Dom Maurice Festugière, do mosteiro de Maredsous, numa revista francesa, deflagrou-se o conflito : nessa matéria, o  monge beneditino criticava duramente os movimentos espirituais que ao longo do tempo  haviam se afastado da liturgia.

             O jesuíta Navatel contestou dizendo que a liturgia nada mais era do que a ‘parte ceri­monial e decorativa do culto católico’. Para ele, uma vez aceito no plano da renovação espiritual, essas mudanças colocariam em crise posicionamentos de espiritualidade pre-estabelecidos.

            Tal burburinho alvoroçou quem temia as inovações, enquanto os fomentadores dos novos rumos insistiam que não era uma questão de ‘beneditismo’ e, sim, de algo muito maior : ‘restaurar o primado da graça de Cristo’.
  

A segunda etapa (de 1914 a 1918 e de 1939 a 1943 )

Dom Odo Casel
              O mosteiro de Maria Laach (Alemanha) se destacou em inúmeras frentes, dentre elas na doutrina elaborada sobre o mistério do culto cristão, capitaneada por Dom Odo Casel (1886-1948).

            Na década de 1930, esse admirável monge beneditino impressionou-se pela designa­ção da ação litúrgica nas fontes antigas como ‘mysterium-sacramentum’. A partir daí, concedeu-lhe um prestígio que perdura até hoje.

A liturgia da Igreja, como ‘celebração sintética de toda a história da salvação’, era a essência de sua reflexão e assegurava a presença consagratória do ato da morte e ressurrei­ção de Cristo, não no sentido físico, mas sacramental, na missa e em outros momentos do culto cristão. Esse princípio facilitou a compreensão da estrutura unitária e compacta do sistema sacramental. 
Embora tenha sido muito contestada por delinear um paralelo entre o paganismo e os mistérios cristãos, Casel concluiu uma idéia bastante original, baseando-se nos Santos Pa­dres, na escolástica e no Concílio de Trento :
ü  a realidade de um evento primordial de redenção
o   se a liturgia era totalmente destinada à história da salvação, que é o mistério de Cristo, a memória litúrgica cristã seria o mistério pascal ( morte e ressur­reição ) de Cristo, o fato que centraliza a vida do Verbo encarnado 
ü  que este evento torna-se presente num rito
o   o culto cristão atualizaria a obra real da redenção de acordo com os ritos e sím­bolos da liturgia, prolongando-se na Igreja para santifica-la e torna-la acessível
o   os monges de Maria Laach batizaram esse evento de mistério, que quer dizer ‘ação concreta que torna presente uma ação passada’
o   o ponto mais alto e denso dos ‘santos mistérios’, no culto, seria a celebração da Eucaristia
ü  que o homem de todo tempo e de todo lugar, através do rito, realiza a sua história universal de salvação
o   para Casel, a liturgia era a ‘ação ritual da obra salvífica de Cristo’, isto é, Deus revelado no mistério de Cristo, abrangendo todos os atos de sua vida, de maneira sacramental, simbólica e atemporal 
            Por meio de Casel, a liturgia conquistou um lugar decisivo na teologia, ao ser inserida como mistério cultual : o início e o fim de toda a revelação.
 
            Obviamente, ele influenciou a encíclica ‘Mediator Dei’, que seria escrita depois por Pio XII, e muitos trabalhos desenvolvidos no Concílio Vaticano II.


Ecos do Movimento Litúrgico no Brasil

            Um de seus expoentes foi Dom Martinho Michler, monge beneditino do mosteiro do Rio de Janeiro que, em 1933, incentivou os fiéis a compartilhar uma vida cristã, especialmente a liturgia, baseada nas fontes autênticas.


            As primeiras manifestações até que foram bem recebidas em alguns círculos, tais como a Ação Católica, mas aguçaram a oposição dos tradicionalistas que acreditavam tra­tar-se de um movimento insurgente no seio da Igreja, quase uma heresia.

            As implicações tiveram seu ápice no jornal ‘O Legionário’, das Congregações Maria­nas de São Paulo, e no jornal ‘O Catolicismo’, do movimento ‘Tradição, Família e Proprie­dade’ (TFP).

            Foi pertinente a intervenção do bispos do Brasil e da Santa Sé para serenar as discus­sões : de um lado tínhamos os liturgistas promovendo os novos ares e, de outro lado, os de­vocionistas, conservadores que não permitiriam a extinção do culto aos santos, ao papa, à Virgem, ao Santíssimo, etc..., ou seja, às devoções populares. 


A terceira etapa (de 1943 a 1963 )

Pio XII
             Algumas personalidades, que atuavam na vanguarda do movimento litúrgico, exagera­ram seus posicionamentos, chegando a desconsiderar a piedade individual e as de­voções particulares, para enaltecer exclusivamente a oração comunitária e as celebrações de caráter oficial da Igreja.
 
            A escola de Maria Laach, por exemplo, era uma das que distinguiam entre piedade objetiva (litúrgica) e piedade subjetiva (pessoal). A reação de correntes contrárias foi rá­pida, apontando desvios nos avanços litúrgicos.
 
            Pio XII (1876-1958), com suas encíclicas ‘Mystici corporis’ (1943) e ‘Mediator Dei’ (1947), interveio com muita prudência.
 
            A encíclica ‘Mediator Dei’, considerada a carta magna do movimento, acolheu o con­ceito de que Cristo atua na liturgia e removeu idéias exageradas, censurando francamente os extremismos e, em particular, levantou a questão da ‘piedade objetiva (litúrgica)’, apre­sentada como um ‘denominador comum’ de muitos erros.
 
            A encíclica apresentava como fato :

ü  a harmonia entre liturgia e vida espiritual – reconhecendo na ação litúrgica sua superio­ridade, não desvalorizou nem estabeleceu antagonismo entre a oração litúr­gica e a oração privada e

ü  a defesa da liturgia subordinada à hierarquia eclesiástica – na eclesiologia de Pio XII, a liturgia seria confiada aos sacerdotes, em nome da Igreja.
o   a ‘Sacrosanctum concilium’ será alicerçada mais no sacerdócio comum dos fi­éis do que no sacerdócio ministerial e falará desta participação como um di­reito e uma obrigação de todos os cristãos em virtude de seu batismo
o   segundo o grande teólogo Yves Congar, ‘Pio XII não era contrário às mudan­ças, mas fazia questão de conservar um certo controle’.

            Apesar de favorecer as mudanças e suas perspectivas positivas, o Papa Pio XII inquie­tava-se por enxergar no movimento litúrgico mais razões de apreensão do que de consenso.

             E por fim, ao discursar no Congresso Litúrgico Internacional de Assis (1956), os con­gressistas perceberam que a ‘questão litúrgica’, entendida agora como ‘reforma litúrgica’, tinha começado seu caminho, mostrando o valor da liturgia na santificação das almas e a ação pastoral da Igreja. 

              Síntese de suas realizações :

ü  reordenação da vigília pascal (1951),
ü  introdução da missa vespertina e das novas normas para o jejum eucarístico (1957),
ü  decreto de simplificação das rubricas, do breviário e do missal (1955),
ü  ‘Ordo hebdomadaesanctae’ (1955), 
ü  instrução sobre a música na liturgia (1956),

ü  novo Código de Rubricas (feito em conjunto com João XXIII),

ü  nova edição típica do breviário e do missal

             Independente de seus limites, as reformas de Pio XII traçaram – de modo brando – uma nova teologia litúrgica, que será bem recepcionada pelo Vaticano II.


Um comentário:

Rosa Truffa disse...

excelente material de estudo!

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