3. O Movimento Litúrgico
Do
ponto de vista histórico-litúrgico, tivemos os grandes períodos :
W de 1909 a 1963 – do movimento litúrgico à reforma litúrgica
W de 1963 a 1990 – da reforma litúrgica à renovação
W de 1990 em diante – da renovação à espiritualidade litúrgica
O
movimento litúrgico foi um processo de retomada das virtudes cristãs que
impulsionou a Igreja e estimulou o leigo a compreender e a partilhar com mais
ênfase da vida litúrgica em comunidade, abrangendo
etapas distintas :
W
de 1909 a 1914
W
de 1914 a 1918 e de 1939
a 1943 - tempo das Grandes Guerras
W de 1943 a 1963
Para
cada etapa, destacaremos uma personalidade pioneira e sua contribuição.
A primeira etapa (de 1909 a 1914
)
Dom Lambert Beauduin |
Dom
Lambert Beauduin (1873-1960), sacerdote que devotou parte de sua vida ao mundo
operário na pastoral litúrgica das paróquias, ansiava o retorno consciente e
participativo do cristão na liturgia e que o mesmo compreendesse os mistérios
celebrados no altar.
Tempos
depois, entrou para o mosteiro de Mont-César, na Bélgica, tornando-se monge
beneditino. Em 1909, na cidade de Malines, difundiu o movimento litúrgico no Congresso
Nacional de Obras Católicas. Tal episódio recomendava a renovação da liturgia
como a oração da Igreja (alimento principal da vida dos fiéis), do culto
autêntico e que a liturgia se consistisse da verdadeira religiosidade da Igreja.
Nos
primeiros tempos, emergiu uma profusão de artefatos de grande excelência : temporadas
de formação, cursos, revistas, sinalizando que a liturgia estava muito além das
ações protocolares.
Quanto
ao leigo, também era necessário reeducá-lo pois, ao perder o sentido da
celebração litúrgica, perdera também o sentido do sagrado.
Ao
publicar ‘A piedade da Igreja’ (1914) para oferecer ao movimento bases
teológicas mais sólidas, era evidente o predomínio do espírito do Motu Proprio
de Pio X.
Na
sua visão teológica, Beauduin propôs
: ‘o missal traduzido para os fiéis, a reza
das vésperas e completas, a revalorização da missa paroquial principal e das
antigas tradições litúrgicas nas famílias’.
Na
visão eclesiológica, recebeu influência de seu professor de Dogmática, Dom Columba Marmion. O então abade de
Maredsous, dera uma orientação bíblica à sua teologia eclesiológica (baseando-se
nas epístolas de São Paulo, nos ensinamentos dos concílios e nos Santos Padres)
e uma orientação cristológica à sua espiritualidade. Beauduin adotou quase o
mesmo enfoque.
Posteriormente,
a Lumen gentium concederá à Igreja
uma eclesiologia arraigada na tradição, na Escritura e nos Santos Padres.
As
encíclicas de Pio XII valeram-se de seu trabalho : a concepção de Igreja na
obra divina da redenção na ‘Mediator Dei’ e o conceito de Igreja como corpo
místico, o Cristo glorioso e cabeça do corpo místico, na ‘Mystici corporis’.
Por
último, na visão litúrgica, Beauduin
baseou-se na pastoral litúrgica. Para ele, o aspecto comunitário era essencial.
Considerava a liturgia como educadora da fé, da vida e do culto da Igreja,
distinguindo a diferença entre sacerdócio ministerial e sacerdócio comum : ‘em seu ministério, o sacerdote oferece o
sacrifício como representante de Cristo, cabeça da Igreja, enquanto o cristão
comum apresenta as oferendas como membro ativo do corpo místico’.
No
tocante à eficácia da celebração litúrgica, Dom Odo Casel dará prosseguimento à
intuição da força salvífica da Páscoa na partilha em comunidade.
Graças
à criatividade de Beauduin, ao retornar às origens para obter os componentes
basilares da renovação litúrgica, alcançamos a visão teológica da liturgia. E esta
será uma das linhas adotadas pelo Concílio Vaticano II.
Contudo,
o movimento litúrgico era bem aceito desde
que, limitado aos mosteiros, principalmente naqueles que receberam a influência
renovadora de Dom Guéranger. O panorama deixou de ser tranquilo quando o
movimento apresentou-se como ‘renovação
espiritual’.
Após
a publicação de ‘A Litúrgia Católica’
(1913), de Dom Maurice Festugière, do mosteiro de Maredsous, numa revista
francesa, deflagrou-se o conflito : nessa matéria, o monge beneditino criticava duramente os
movimentos espirituais que ao longo do tempo haviam se afastado da liturgia.
O jesuíta Navatel contestou dizendo que a
liturgia nada mais era do que a ‘parte cerimonial
e decorativa do culto católico’. Para ele, uma vez aceito no plano da
renovação espiritual, essas mudanças colocariam em crise posicionamentos de
espiritualidade pre-estabelecidos.
Tal
burburinho alvoroçou quem temia as inovações, enquanto os fomentadores dos novos
rumos insistiam que não era uma questão de ‘beneditismo’
e, sim, de algo muito maior : ‘restaurar
o primado da graça de Cristo’.
A segunda etapa (de 1914 a 1918 e
de 1939 a 1943 )
Dom Odo Casel |
O
mosteiro de Maria Laach (Alemanha) se destacou em inúmeras frentes, dentre elas
na doutrina elaborada sobre o mistério do culto cristão,
capitaneada por Dom Odo Casel (1886-1948).
Na
década de 1930, esse admirável monge beneditino impressionou-se pela designação da
ação
litúrgica nas fontes antigas como ‘mysterium-sacramentum’. A partir
daí, concedeu-lhe um prestígio que perdura até hoje.
A liturgia
da Igreja, como ‘celebração sintética de
toda a história da salvação’, era a essência de sua reflexão e assegurava a
presença consagratória do ato da morte e ressurreição de Cristo, não no
sentido físico, mas sacramental, na missa e em outros momentos do culto cristão.
Esse princípio facilitou a compreensão da estrutura unitária e compacta do
sistema sacramental.
Embora tenha
sido muito contestada por delinear um paralelo entre o paganismo e os mistérios
cristãos, Casel concluiu uma idéia bastante original, baseando-se nos Santos Padres,
na escolástica e no Concílio de Trento :
ü
a realidade de um evento primordial de redenção
o
se
a liturgia era totalmente destinada à história
da salvação,
que é o mistério de Cristo, a memória litúrgica cristã seria o mistério pascal
( morte e ressurreição ) de Cristo, o fato que centraliza a vida do Verbo
encarnado
ü
que este evento torna-se presente num rito
o
o
culto cristão atualizaria a obra real da redenção de acordo com os ritos e símbolos
da liturgia, prolongando-se na Igreja para santifica-la e torna-la acessível
o
os
monges de Maria Laach batizaram esse evento de mistério, que quer dizer ‘ação concreta que torna presente uma ação passada’
o
o
ponto mais alto e denso dos ‘santos mistérios’, no culto, seria a celebração da
Eucaristia
ü
que o homem de todo tempo e de todo lugar, através
do rito, realiza a sua história universal de salvação
o
para
Casel, a liturgia era a ‘ação ritual da
obra salvífica de Cristo’, isto é, Deus revelado no mistério de Cristo,
abrangendo todos os atos de sua vida, de maneira sacramental, simbólica e
atemporal
Por meio de Casel,
a liturgia conquistou um lugar decisivo na teologia, ao ser inserida como
mistério cultual : o início e o fim de
toda a revelação.
Obviamente, ele influenciou a encíclica ‘Mediator Dei’, que seria escrita depois
por Pio XII, e muitos trabalhos desenvolvidos no Concílio Vaticano II.
Ecos do Movimento Litúrgico no
Brasil
Um
de seus expoentes foi Dom Martinho Michler, monge beneditino do mosteiro do Rio
de Janeiro que, em 1933, incentivou os fiéis a compartilhar uma vida cristã,
especialmente a liturgia, baseada nas fontes autênticas.
As
primeiras manifestações até que foram bem recebidas em alguns círculos, tais
como a Ação Católica, mas aguçaram a oposição dos tradicionalistas que
acreditavam tratar-se de um movimento insurgente no seio da Igreja, quase uma
heresia.
As
implicações tiveram seu ápice no jornal ‘O
Legionário’, das Congregações Marianas de São Paulo, e no jornal ‘O Catolicismo’, do movimento ‘Tradição, Família e Propriedade’ (TFP).
Foi pertinente a
intervenção do bispos do Brasil e da Santa Sé para serenar as discussões : de
um lado tínhamos os liturgistas promovendo os novos ares e, de outro lado, os
devocionistas, conservadores que não permitiriam a extinção do culto aos santos,
ao papa, à Virgem, ao Santíssimo, etc..., ou seja, às devoções populares.
A terceira etapa (de 1943 a 1963 )
Pio XII
|
Algumas
personalidades, que atuavam na vanguarda do movimento litúrgico, exageraram seus
posicionamentos, chegando a desconsiderar a piedade individual e as devoções
particulares, para enaltecer exclusivamente a oração comunitária e as
celebrações de caráter oficial da Igreja.
A
escola de Maria Laach, por exemplo, era uma das que distinguiam entre piedade objetiva (litúrgica) e piedade subjetiva (pessoal). A reação de
correntes contrárias foi rápida, apontando desvios nos avanços litúrgicos.
Pio
XII (1876-1958), com suas encíclicas ‘Mystici
corporis’ (1943) e ‘Mediator Dei’
(1947), interveio com muita prudência.
A
encíclica ‘Mediator Dei’, considerada
a carta magna do movimento, acolheu o conceito de que Cristo atua na
liturgia e removeu idéias exageradas, censurando francamente os extremismos e,
em particular, levantou a questão da ‘piedade
objetiva (litúrgica)’, apresentada como um ‘denominador comum’ de muitos erros.
A
encíclica apresentava como fato :
ü
a
harmonia entre liturgia e vida espiritual – reconhecendo na ação litúrgica sua
superioridade, não desvalorizou nem estabeleceu antagonismo entre a oração
litúrgica e a oração privada e
ü
a
defesa da liturgia subordinada à hierarquia eclesiástica – na eclesiologia de
Pio XII, a liturgia seria confiada aos sacerdotes, em nome da Igreja.
o
a
‘Sacrosanctum concilium’ será
alicerçada mais no sacerdócio comum dos fiéis do que no sacerdócio ministerial
e falará desta participação como um direito e uma obrigação de todos os
cristãos em virtude de seu batismo
o
segundo
o grande teólogo Yves Congar, ‘Pio XII
não era contrário às mudanças, mas fazia questão de conservar um certo controle’.
Apesar
de favorecer as mudanças e suas perspectivas positivas, o Papa Pio XII inquietava-se
por enxergar no movimento litúrgico mais razões de apreensão do que de consenso.
E
por fim, ao discursar no Congresso Litúrgico Internacional de Assis (1956), os
congressistas perceberam que a ‘questão
litúrgica’, entendida agora como ‘reforma
litúrgica’, tinha começado seu caminho, mostrando o valor da liturgia na santificação
das almas e a ação pastoral da Igreja.
Síntese
de suas realizações :
ü
reordenação
da vigília pascal (1951),
ü
introdução
da missa vespertina e das novas normas para o jejum eucarístico (1957),
ü
decreto
de simplificação das rubricas, do breviário e do missal (1955),
ü
‘Ordo hebdomadaesanctae’ (1955),
ü
instrução
sobre a música na liturgia (1956),
ü
novo
Código de Rubricas (feito em conjunto com João XXIII),
ü
nova
edição típica do breviário e do missal
Um comentário:
excelente material de estudo!
Postar um comentário