terça-feira, 20 de agosto de 2013

Tornar-se monge na sociedade secular de hoje (Capítulo 2 de 2)

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB) 

 
IV – O Outro
Falamos sobre dois aspectos do mundo interior do jovem monge – a apropriação de sua herança humana como intelectual e como poeta, isto é, como alguém que pensa e alguém que sente. Falamos, então, sobre o ser humano em sua ‘solidão’, em sua experiência de si mesmo. Mas sabemos que solidão representa um polo da vida humana e que necessita para completar-se o polo da comunhão. O poeta tcheco Rilke afirmou que cada um de nós tem o dever de tornar-se um universo inteiro para depois entregar-se a um outro como dom. as nossas constituições trapistas comunicam esta mesma intuição quando dizem que nossa vivência monástica exige tanto uma grande capacidade para solidão como para a vida comunitária. E o nosso abade geral atual gosta de chamar-nos de ‘cenobitas no deserto’. Moramos no deserto monástico, sim, na separação geográfica da cidade e na privacidade de nosso coração. Mas vivemos juntos, e isto é essencial à nossa vocação monástica e humana.
O jovem brasileiro – e nisto ele é muito parecido com seus primos, os jovens do mundo inteiro, embora com uns toques particulares – encontra muito rapidamente dificuldades sérias neste caminho de comunhão. É quase certo que, provindo da cultura global, ele morava num ambiente precocemente sexualizado, e absorvia os valores desta cultura. Aqueles que se apresentam à porta do mosteiro como vocacionados raramente falam da experiência de uma longa e profunda amizade. Pulam, durante a entrevista, da família de origem para o primeiro namoro. Este pulo significa mais do que um lapso de memória. Ao contrário, deixa ver acertadamente um buraco importante em seu desenvolvimento. Ficou roubado, muitas vezes, da experiência de um compromisso afetivo, mas não fundamentalmente sexual, a aliança da amizade, onde realidades como idealismo, admiração e generosidade costumam despertar e florescer. Desde Homero na literatura grega e a primeira monarquia no Antigo Testamento, a amizade é visualizada como um dos aspectos mais preciosos da aventura humana, onde tranquilidade e paixão, sacrifício e realização, diferença e identidade brincam produtivamente entre si. Sei que nos lares brasileiros muitas destas qualidades acima mencionadas exprimem-se num contexto familiar, e também que o namoro/noivado/casamento constitui um dos mais fertéis campos imagináveis para o amadurecimento do ser humano. Mesmo assim, muitas vezes perde-se o momento entre lar e casamento, um momento que deve representar uma graça particular estável, uma forma vitalícia da intimidade humana.
Então, os nossos jovens entram no mosteiro. Quer dizer, para nós velhos, depois de muita transformação, é um mosteiro. Para eles, sobretudo quando entram sem esta experiência profunda de amizades (amizades particulares e grupos de amigos), a realidade é outra. Automaticamente, o mosteiro assume a tonalidade – a cara – de um time ou de uma sala de aula ou de uma vizinhança ou de um escritório/fábrica ou de um curso pré-vestibular, ou simplesmente da rua. Assim criamos todos nós o nosso mundo. Portanto, espontaneamente os jovens pegam na pasta de atitudes e práticas conhecidas. Por exemplo :
1)      Desconfiança : O jovem vive com medo de chamar atenção, acreditando que mais cedo ou mais tarde, atenção fatalmente vira zombaria. Se ele faz muito bem, está ‘puxando saco’; se ele fracassa, ele era um vaidoso, um idiota, por ter tentado aquilo que não tinha condições de realizar. Além de abafar sua criatividade – melhor ficar cabisbaixo e sumir no rebanho – esta desconfiança generalizada facilmente leva a um sentimento de hostilidade, tanto de sentir hostilidade quanto de sentir-se hostilizado. Quando isto acontece (e ainda não vi uma exceção), surge a tentativa de evasão. 
2)     Evasão : Tira o fôlego testemunhar com que rapidez os jovens podem apagar-se mutuamente do livro da vida : ‘Ele não presta’. Perdoam uma, duas, até três vezes, e depois (estou falando ironicamente ‘criam juízo’. Descobrem que este sujeito é perigoso, agressivo, mal educado, racista, etc. Nestas condições, pensam eles, o comportamento mais acertado é criar uma boa distância afetiva. Você fique em seu canto do mosteiro e eu fico no meu. Só que isto não pode dar certo. O mosteiro é pequeno demais, os encontros constantes demais para permitir uma boa guerra fria. Mais uma vez a sabedoria da cidade revela-se como penosamente inadequada no contexto monástico. Espiritualmente, a tática de evasão representa um contra-valor inaceitável numa sociedade de comunhão, como o mosteiro pretende ser. E depois, é um crime sem lucro. Busco com grande empenho colocar um espaço suficiente entre mim mesmo e aquele que eu chamo (com ênfase signiticativa) ‘Meu irmão’, mas ele continua vivendo no mosteiro e até ocupa alguns andares na casa da minha cabeça. Paciência! Donde vem esta tendência para desconfiança-hostilidade-evasão? Ao meu ver, em grande parte vem do treinamento insuficiente das emoções.   
3)     Treinamento insuficiente das emoções : Um fenômeno espantoso, que manifesta-se hoje em dia como norma, é a incapacidade de processar frustrações. Os nossos antepassados aceitavam com relativa calma que a vida é frustrante, que todo dia vai trazer sua pitada da contradição e que o ser humano mostra o seu estado de adulto superando as frustrações, incorporando-as em sua experiência e assim tornando-se mais livre das circunstâncias e mais aberto a elas. Os herdeiros de nossos antepassados (quer dizer, nós) em vez de contemplarmos as frustrações cotidianas da vida como um elemento normal, se não enriquecedor, as consideram como um insulto insuportável. Um golpe! Um baque! Uma facada! Cito estas três exclamações que ouço todo dia (tem outras) para indicar uma resposta às pequenas irritações que já bem enraizou-se em nossa cultura. Aqui no Brasil vejo entre os jovens uma oscilação preocupante entre ira e tristeza, como reações a estas provocações diárias e, frequentemente, reações desproporcionais. Me parece que entre as duas respostas aquela que mais predomina é a tristeza, e eu gosto de brincar com minha comunidade que a frase que eu mais escuto é (em voz chorosa) : ‘É difícil’ (aliás, para consolá-los, digo que se o brasileiro é mais suscetível ao vício da tristeza, o americano cai mais facilmente na armadilha da soberba. Por alguma razão, esta afirmação normalmente traz alívio). 
 
O que é a tarefa do pai espiritual, imitador de Jesus,
neste ninho de vespas?
            Me parece que ele tem que constituir um contrapeso a estas tendências, ou melhor, fazer exorcismo destes demônios. Não há dúvida : tal desconfiança, hostilidade, evasão, impaciência, irritação e melancolia vão além de ser sintomas do estresse do mundo pós-moderno. Surgem de uma experiência deturpada do próximo e do ambiente interpessoal, uma experiência que estimula os hormônios de superficialidade, esperteza e excessiva prudência e que impedem o florescimento de um clima de repouso e certeza, onde gestos como o sorriso, o aperto da mão, o abraço da paz na missa, o pedido de perdão são mini-sacramentos, isentos de uma interpretação ambígua. São Máximo Confessor, monge e teólogo do século VII, ensinava que os homens são capazes de negligência; quando manisfestam hostilidade e condenação, é um sinal seguro da atuação do Maligno.
            O pai espiritual responde a estas forças malignas por sua recusa de entrar em diálogo com elas. Na presença daqueles sentimentos que acabei de citar, e que certamente o convidam a ‘entrar na onda’ – convite cuja força ele mesmo sente por causa da persistência das consequências do pecado – ele vai agir contra a mentira. A gente pensa nos manifestos de Jesus no Sermão da Montanha, de São Francisco de Assis em sua celebrada oração (‘Senhor, fazei de mim um instrumento de vossa paz’), de Tolstoi e de Gandhi, e a gente vê que a ‘violência’ de insistir em ver a presença divina no outro, acreditar nele e perseverar em fazer-lhe o bem é muito mais poderosa do que a nuvem de poeira criada por nossos medos e agressividades. Tanto quanto o mestre encontra-se como alvo da desconfiança/agressão quanto ele testemunha uma situação negativa entre outros irmãos, ele vai buscar rasgar o véu da mentira. Seu método não consiste em desmascarar a projeção (‘Você está vendo tal coisa deste jeito por causa do negativismo que você traz em si mesmo’), nem em moralizar, mas em fazer visível de novo o verdadeiro rosto espiritual dos brigados.
            Nisso, ele vai encontrar uma grande ajuda no uso abundante e benevolente do humor. A maior bênção do humor é precisamente apontar numa maneira aceitável para o exagero, a dureza, a amargura, a autopiedade – em breve, para o venenoso numa determinada tomada de atitude. O humor contemplativo identifica-se com o irmão irracional (‘Veja como nós dois podemos agir como loucos, quando queremos’), e o chama de volta para a razão e a paz. O humor contemplativo admite que o irmão irritado tem razão, pelo menos em parte, mas coloca a pergunta : O que você – o que nós – vamos ganhar se você continuar resmungando; o que você – o que nós – poderíamos ganhar se você parasse de resmungar e começasse a cantar de novo com a gente? O humor contemplativo aproveita do direito de cutucar (um dos meus apelidos na comunidade é ‘o grande cutucador’) sem magoar. Diz-se que o que o diabo mais teme é ser ridicularizado; quando o pai espiritual consegue mostrar a bobagem no comportamento do irmão por uma cutucada que dá em cheio, o demônio foge e o irmão retorna a ser ele mesmo. Assim como disse que quando trata-se da apropriação de uma história dolorosa por parte de um noviço, o mestre tem que saber chorar e calar-se; quando o assunto é a purificação da comunidade das tendências belicosas e afastadoras, o mestre tem que rir e fazer o outro rir. Isto já é conversão, quando a dificuldade reside em vaidade e hiper-sensabilidade. Várias parábolas de Jesus pretendem levar pessoas do mundo fechado deles para o reino de Deus justamente por meio de uma gargalhada. 
 
V – O Compromisso
Alguns anos atrás, um professor de sociologia deu um curso para os professos trienais trapistas norte-americanos. Ao ouvir a pergunta, se haveria um fator que mais dificultava a formação monástica hoje em dia, respondeu imediatamente, ‘Sem dúvida. A impossibilidade do jovem comprometer-se’. Provavelmente, esta resposta não nos surpreende, porque o fenômeno da instabilidade é mundial em suas dimensões, mas não deve faltar de deixar-nos assutados. Apesar da afirmação recente de um presidente de uma faculdade ‘Ivy League’, Yale, ‘Vemos agora que uma vida bem sucedida não é uma linha reta, mas uma série fecunda de zigue-zagues’, não podemos perder a consciência que compromisso é a grande condição para comunhão, para maturidade, para o verdadeiro bem estar, e finalmente, para a manutenção do contrato social, isto é, para a continuação da sociedade. Foi Kierkegaard que asseverou, no título de um de seus livros, ‘Pureza de coração significa desejar uma coisa só’; foi Jung que insistiu que as tarefas mais profundas da vida só podem ser cumpridas por aqueles que permanecem fielmente num único propósito.
O grande bloqueio surge de uma ignorância e uma impotência. A ignorância consiste em não saber que a nossa identidade é necessariamente social. Ninguém entra na gruta de tesouros do seu próprio ser a não ser por uma interação estável com um comunidade.
Identidade depende da identificação. Aquele que borboleteia na sua vida acaba sendo apenas um punhado de pó colorido. A impotência consiste em não poder assumir o trabalho sacrificante de tornar-se peça viva e vivificante de um organismo meta-individual, de morrer à uma identidade independente e ressurgir como parte de um ou outro corpo místico (no fim das contas, qualquer família, qualquer verdadeira comunidade é também um corpo místico). Lembra-se da citação de Rilke – Primeiro a gente tem que crescer para ser um universo para depois dar-se a um outro. Aqui estamos tratando deste segundo momento, do dom mútuo dos universos. Igualmente São Bento ensina que o monge que pretende unir-se com Deus e consigo mesmo vai chegar ao seu objetivo somente mergulhando-se, ativa e afetivamente, na comunidade, suas tradições e mais ainda, com seu pessoal.
Isto traz à tona um desafio particular do compromisso monástico. O que o monge deseja acima de tudo é unir-se com Deus. Neste caso, não há ignorância nenhuma que a sua própria auto-realização depende de uma sintonia progressiva com Deus, uma ‘união de Espírito’ com Deus, para empregar o termo clássico. Por outro lado, a dificuldade de abir-se à irrupção da vida divina em sua vida é enorme, é literalmente espantosa. Uma ativa receptividade às ‘mexidas’ de um Deus invisível, transcendente e nem sempre delicado constitui a grande aventura e o grande sofrimento da vocação contemplativa. De fato, esta irrupção de Deus na vida da gente forma o drama inteiro da nossa vivência. A luta para conhecimento de si mesmo, para desenvolvimento do intelecto, para a superação das paixões nas interações comunitárias – todas estas realidades são reflexos da grande iniciativa de Deus de formar uma só coisa com um pobre mortal. É a sombra jogada por sua aproximação que põe em movimento todos estes processos.
A grande tentação do jovem monge é de dissociar os elementos desta atividade única : o unir-se de Deus com sua criação. O jovem quase morre de medo e de dor, sentindo os dedos de Deus nele, dedos que segundo João da Cruz são perfeitamente capazes de queimar e não somente acariciar. O jovem sente que uma fresta – qual um abismo está abrindo-se nele para deixar o Todo Poderoso (bom, ruim?) entrar e não sabe se vai aguentar, tem quase certeza que não. Portanto, ele quer negar a necessidade de viver estes dois processos simultaneamente. Para unir-se a Deus, pensa ele, não deve ser indispensável passar por tudo isto com os irmãos. Ele vem a perceber que a comunidade é impiedosa, que ela insiste em mantê-lo no centro da arena, e também que em vez de suavizar o sofrimento vertical místico acrescenta o sofrimento horizontal, através de transtornos, friezas, grosserias. Quando damos conta da fragilidade dos jovens, vemos o tamanho de heroísmo pedido por nossa vida simples e repetitiva. E percebemos que a perseverança na fé, esperança e caridade é um milagre.
Se o pai espiritual pode ajudar aqui? Certamente por meio da oração, porque o mistério fica essencialmente entre Deus e o jovem. Rezando igualmente para si mesmo, para não forçar a liberdade do jovem (e assim prejudica-la permanentemente), mas ao mesmo tempo para não deixar esta liberdade do jovem sem as dicas que ela necessita. Além disso, há duas forma de ajuda que o pai pode prestar. Cada vez que ele percebe a mão do Senhor tocar num de seus irmãos para prová-lo, ele deve viver seu próprio compromisso com uma pureza e fidelidade intensificada. Se o assunto é de identificação, ele em primeiro lugar tem que identificar-se com o provado, o purificado, em oração assídua e em oferta de si mesmo. Ficar com ele, à medida que isto é possível, entrar livremente em comunhão com este irmão em tudo o que este sofre, como prece silenciosa, que o irmão chegue àquela comunhão profunda com Deus e com a comunidade que o impelia a entrar no mosteiro.
A segunda forma de ajuda é de abrir seu coração, revelar seus segredos. Tem muita coisa hiperpessoal na vida monástica – toda a história de intimidade e dor entre Deus e a gente – que nunca deve ser falada (foi São Bernardo que gostava de repetir ‘O meu segredo é meu’).  
A grande exceção se encontra nestes tempos de provação do discípulo. Nestes momentos, o mestre pode falar do mistério que ninguém conhece, este mistério que pode exercer um poder divino por ser o mais precioso, quase o único bem precioso que ele possui. É o vaso de bálsamo que ele quebra e jorra sobre seu discípulo para ungí-lo em sua hora. Assim como Jesus fez do fim do seu ministério um desvelar-se absoluto : ‘Agora eu posso chamar-vos de amigos, porque tudo o que ouvi de meu Pai eu vos dei a conhecer’ (Jo 15,15).
 
 

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