quinta-feira, 1 de agosto de 2013

A arte da 'Lectio Divina'

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
   
*Artigo de Pe. Michael Casey, OCSO

Tal como é usada ultimamente, a ‘lectio divina’ é entendida como uma meditação orante dos textos da Bíblia e outros assuntos que formam a fé da Igreja. O termo ‘lectio divina’ originalmente se referia à leitura das Escrituras durante a Liturgia. Com o aumento da alfabetização e a disponibilidade de livros, o contexto destas leituras se tornou menos comunitário e mais pessoal, como pode ser constatado na distribuição de livros individuais que São Bento faz para a leitura durante a Quaresma. Essa leitura pessoal serviu de complemento para a Liturgia e tornou-se traço característico da espiritualidade beneditina. Ela deixou de ser uma experiência de escuta comunitária e tornou-se um diálogo interior do coração com o texto e, através do texto, com Deus.


Dinâmica

A ‘lectio’ se diferencia substancialmente de uma simples leitura e mesmo da ‘leitura espiritual’. Ela está a serviço da oração e vai além da mera absorção do conteúdo de uma página. A formulação clássica dinâmica foi dada por Guigo, o Cartuxo (†1188) : lectio, meditatio, oratio, contemplatio – (leitura, meditação, oração, contemplação). O que foi lido deve ser primeiramente digerido e assimilado por um processo de serena repetição, no qual buscamos nos tornar progressivamente harmonizados à sua sutil repercussão no coração. O texto, deste modo, serve como um espelho que traz realidades profundas à consciência. Essa elevada conscientização mostra nossa necessidade do auxílio divino e prontamente nos conduz à oração.

Algumas vezes, nesse diálogo com Deus, nos tornamos mais conscientes de Deus do que de nossas próprias necessidades e passamos do mais simples ao mais profundo estado de contemplação. Assim a ‘lectio’ pode ser vista como caminho para a contemplação. Isto não quer dizer que os quatro passos constituem um método sequencial a ser seguido ou que cada um deles está sempre presente na ‘lectio’. Com frequência, as diferentes fases se estendem por todo o dia, na medida em que a atenção à Palavra é prolongada e continuamos a responder ao que foi lido no modo como vivemos.


Prática

Inicialmente precisamos adquirir uma disciplina de leitura minuciosa, prestando atenção a toda palavra e sentença, sem nos permitir passar por cima de nada. Essa reflexão é ajudada pela leitura em voz alta, aprendendo a articular ou vocalizar a palavra como um meio de diminuir o ritmo e evitar a distração. É como ler poesia : o som das palavras cria ecos interiores, que se tornam pontos de associação intuitivos que se prendem mais facilmente à memória. Na ‘lectio’, a intenção é afetiva e não cognoscitiva, é o esforço do coração que deseja entrar em contato com Deus e desse modo restaurar nossas vidas.

Uma leitura mais ampla pode nos ajudar a fugir de perguntas especulativas que de outro modo dissipariam nossas energias. Essa preparação não é a ‘lectio’, mas é uma boa ajuda.

A atenção ao ambiente de nossa ‘lectio’ ajudará a nos conduzir mais suavemente à oração. Qualquer coisa que possamos fazer em termos de escolha de lugar, postura, ou assegurar o silêncio manterá afastadas possíveis agitações. Usar um ícone ou uma vela, ou reverenciar o livro das Escrituras poderá nos levar a um ambiente muito orante.


O Espírito Beneditino

Três termos encontrados na tradição monástica descrevem uma atitude apropriada para a ‘lectio’. Nossa leitura deve ser assídua, ou generosa, o que significa que envolve um emprego permanente de energia e demandará um sacrifício de tempo que poderíamos devotar a outras coisas. A ‘lectio’ tem que ser feita com espírito de reverência, expresso no modo como tratamos o livro sagrado em si, em nossa postura e na maneira com que tomamos medidas práticas de excluir do ambiente o que não é sagrado. É a reverência que nos faz manter o silêncio e a receptividade para ouvir a palavra que fala ao nosso espírito e traz a salvação. Ao abrir o livro sagrado, abrimos a nós mesmos, permitimos nos tornar vulneráveis, - desejosos de sermos atravessados pela espada de dois gumes. A isso São Bento se refere como compunção, nos permitindo experimentar a dupla dinâmica de todo genuíno encontro com Deus : de um lado a progressiva conscientização de nossa urgente necessidade de perdão e cura, e de outro, uma profunda confiança na superabundante misericórdia de Deus.


Desafios

Duas áreas exigem vigilância constante. Primeiro, não devemos ser meros ouvintes, mas cumpridores da Palavra. A menos, que vamos à nossa ‘lectio’ com um precedente desejo de conversão, será inútil o exercício. Nossa ‘lectio’ se desenvolverá mais plenamente quando buscamos encarnar o que é lido em nosso modo de agir. Quando Deus parece silencioso, frequentemente é porque há : ou uma resistência latente, ou muito barulho interior causado pela multiplicidade de outras preocupações. Algumas vezes, as dificuldades que experienciamos na ‘lectio’ servem como um convite a reexaminarmos nossa vida e a nos esforçarmos por estabelecer nela uma melhor harmonia com o que lemos. Segundo, temos que renunciar à procura por novidade. A ‘lectio’ precisa ser regular e não errante. Precisamos, como insiste São Bento, ler os livros da Escritura por inteiro, do início ao fim, serenamente, trabalhando nosso jeito através do Evangelho ou dos Profetas do Antigo Testamento, desejando ser surpreendido, resistindo à tentação de exercer total controle sobre o que se lê.


Alegria

A ‘lectio’ exige muito de nós, mas é uma experiência enriquecedora que renova constantemente nossa vida espiritual. A Palavra de Deus amplia a perspectiva de nossa experiência, dá sentido às nossas lutas e mantém viva a chama da esperança. Acima de tudo, o contato com a Sagrada Escritura é uma fonte de alegria e deleite para o coração, conduzindo-nos a um relacionamento cada vez mais profundo com Deus, a quem buscamos, e com Jesus, que nos chamou.



Fonte :
* Pe. Michael Casey, OCSO, monge da Abadia de Tarrawara, Austrália.

- Artigo extraído de THE BENEDICTINE HANDBOOK, Anthony Marett-Crosby, Editor. Part One : ‘Tools of Benedictine Spirituality’.

Revista Beneditina nrº 46, Abril/Junho de 2012, traduzido do inglês e editado pelas monjas beneditinas do Mosteiro da Santa Cruz – Juiz de Fora/Minas Gerais.

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Bibliografia :

Benedict of Nursia, Rule for Monasteries, Ch. 48
CASEY, Michael, The Art of Sacred Reading, Dove, Melbourne, 1995.
CASEY, Michael, Sacred Reading, Triumph Books, Liguori, 1996.
Guigo II, The Ladder of Monks and Twelve Meditations, Cistercian Publications, Kalamazoo, 1981, pp. 67-86.

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