*Artigo de Pe. Michael Casey, OCSO
Tal como é
usada ultimamente, a ‘lectio divina’ é entendida como uma meditação orante dos
textos da Bíblia e outros assuntos que formam a fé da Igreja. O termo ‘lectio
divina’ originalmente se referia à leitura das Escrituras durante a Liturgia.
Com o aumento da alfabetização e a disponibilidade de livros, o contexto destas
leituras se tornou menos comunitário e mais pessoal, como pode ser constatado
na distribuição de livros individuais que São Bento faz para a leitura durante
a Quaresma. Essa leitura pessoal serviu de complemento para a Liturgia e
tornou-se traço característico da espiritualidade beneditina. Ela deixou de ser
uma experiência de escuta comunitária e tornou-se um
diálogo interior do coração com o texto e, através do texto, com Deus.
Dinâmica
A ‘lectio’ se diferencia substancialmente
de uma simples leitura e mesmo da ‘leitura
espiritual’. Ela está a serviço da oração e vai além da mera absorção do
conteúdo de uma página. A formulação clássica dinâmica foi dada por Guigo, o Cartuxo (†1188) :
lectio, meditatio, oratio, contemplatio – (leitura, meditação, oração,
contemplação). O que foi
lido deve ser primeiramente digerido e assimilado por um processo de serena
repetição, no qual buscamos nos tornar progressivamente harmonizados à sua
sutil repercussão no coração. O texto, deste modo, serve como um espelho que traz
realidades profundas à consciência. Essa elevada conscientização mostra nossa
necessidade do auxílio divino e prontamente nos conduz à oração.
Algumas
vezes, nesse diálogo com Deus, nos tornamos mais conscientes de Deus do que de
nossas próprias necessidades e passamos do mais simples ao mais profundo estado
de contemplação. Assim a ‘lectio’
pode ser vista como caminho para a contemplação. Isto não quer dizer que os
quatro passos constituem um método sequencial a ser seguido ou que cada um deles está sempre presente na ‘lectio’. Com
frequência, as diferentes fases se estendem por todo o dia, na medida em que a
atenção à Palavra é prolongada e continuamos a responder ao que foi lido no
modo como vivemos.
Prática
Inicialmente
precisamos adquirir uma disciplina de leitura minuciosa, prestando atenção a
toda palavra e sentença, sem nos permitir passar por cima de nada. Essa
reflexão é ajudada pela leitura em voz alta, aprendendo a articular ou
vocalizar a palavra como um meio de diminuir o ritmo e evitar a distração. É
como ler poesia : o som das palavras cria ecos interiores, que se tornam pontos
de associação intuitivos que se prendem mais facilmente à memória. Na ‘lectio’, a intenção é afetiva e não cognoscitiva,
é o esforço do coração que deseja entrar em contato com Deus e desse modo
restaurar nossas vidas.
Uma leitura
mais ampla pode nos ajudar a fugir de perguntas especulativas que de outro modo
dissipariam nossas energias. Essa preparação não é a ‘lectio’, mas é uma boa
ajuda.
A atenção ao
ambiente de nossa ‘lectio’ ajudará a
nos conduzir mais suavemente à oração. Qualquer coisa que possamos fazer em
termos de escolha de lugar, postura, ou assegurar o silêncio manterá afastadas
possíveis agitações. Usar um ícone ou uma vela, ou reverenciar o livro das
Escrituras poderá nos levar a um ambiente muito orante.
O Espírito Beneditino
Três termos
encontrados na tradição monástica descrevem uma atitude apropriada para a ‘lectio’. Nossa leitura deve ser assídua,
ou generosa, o que significa que envolve um emprego permanente de energia e
demandará um sacrifício de tempo que poderíamos devotar a outras coisas. A ‘lectio’ tem que ser feita com espírito
de reverência, expresso no modo como tratamos o livro sagrado em si, em nossa
postura e na maneira com que tomamos medidas práticas de excluir do ambiente o
que não é sagrado. É a reverência que nos faz manter o silêncio e a
receptividade para ouvir a palavra que fala ao nosso espírito e traz a salvação.
Ao abrir o livro sagrado, abrimos a nós mesmos, permitimos nos tornar
vulneráveis, - desejosos de sermos atravessados pela espada de dois gumes. A
isso São Bento se refere como compunção, nos permitindo experimentar a dupla
dinâmica de todo genuíno encontro com Deus : de um lado a progressiva
conscientização de nossa urgente necessidade de perdão e cura, e de outro, uma
profunda confiança na superabundante misericórdia de Deus.
Desafios
Duas áreas
exigem vigilância constante. Primeiro, não devemos ser meros ouvintes, mas
cumpridores da Palavra. A menos, que vamos à nossa ‘lectio’ com um precedente desejo de conversão, será inútil o
exercício. Nossa ‘lectio’ se
desenvolverá mais plenamente quando buscamos encarnar o que é lido em nosso
modo de agir. Quando Deus parece silencioso, frequentemente é porque há : ou
uma resistência latente, ou muito barulho interior causado pela multiplicidade
de outras preocupações. Algumas vezes, as dificuldades que experienciamos na ‘lectio’ servem como um convite a
reexaminarmos nossa vida e a nos esforçarmos por estabelecer nela uma melhor
harmonia com o que lemos. Segundo, temos que renunciar à procura por novidade.
A ‘lectio’ precisa ser regular e não
errante. Precisamos, como insiste São Bento, ler os livros da Escritura por
inteiro, do início ao fim, serenamente, trabalhando nosso jeito através do
Evangelho ou dos Profetas do Antigo Testamento, desejando ser surpreendido,
resistindo à tentação de exercer total controle sobre o que se lê.
Alegria
A ‘lectio’ exige muito de nós, mas é uma
experiência enriquecedora que renova constantemente nossa vida espiritual. A
Palavra de Deus amplia a perspectiva de nossa experiência, dá sentido às nossas
lutas e mantém viva a chama da esperança. Acima de tudo, o contato com a
Sagrada Escritura é uma fonte de alegria e deleite para o coração,
conduzindo-nos a um relacionamento cada vez mais profundo com Deus, a quem
buscamos, e com Jesus, que nos chamou.
Fonte :
* Pe. Michael Casey, OCSO, monge da Abadia de Tarrawara, Austrália.
- Artigo extraído de THE BENEDICTINE HANDBOOK, Anthony Marett-Crosby,
Editor. Part One : ‘Tools of Benedictine Spirituality’.
Revista Beneditina nrº 46,
Abril/Junho de 2012, traduzido do inglês e editado pelas monjas beneditinas do
Mosteiro da Santa Cruz – Juiz de Fora/Minas Gerais.
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Bibliografia
:
Benedict of Nursia, Rule for Monasteries,
Ch. 48
CASEY, Michael, The Art of Sacred
Reading, Dove, Melbourne, 1995.
CASEY, Michael, Sacred Reading,
Triumph Books, Liguori, 1996.
Guigo II, The Ladder of Monks and
Twelve Meditations, Cistercian Publications, Kalamazoo, 1981, pp. 67-86.
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