4. Obras
Santo Agostinho é o Padre da Igreja que deixou o maior
número de obras, e hoje pretendo falar delas brevemente. Alguns dos escritos
agostinianos são de importância fundamental, e não só para a história do
Cristianismo, mas para a formação de toda a cultura ocidental : o exemplo mais
claro são as Confessiones, sem dúvida
um dos livros da antiguidade cristã ainda hoje muito lido. Como diversos padres
da Igreja dos primeiros séculos, mas em medida incomparavelmente mais ampla,
também o bispo de Hipona exerceu de fato uma influencia alargada e persistente,
como é demonstrado pela superabundante tradição manuscrita das suas obras, que
deveras são numerosíssimas.
Ele mesmo as passou em revista alguns antes de morrer nas
Retractationes e pouco depois da sua
morte elas foram cuidadosamente registradas no Indiculus (‘elenco’),
acrescentado pelo amigo fiel Possídio à biografia de Santo Agostinho, Vita Augustini. O elenco das obras de
Agostinho foi realizado com a intenção explícita de salvaguardar a sua memória
enquanto a invasão vândala se expandia em toda a África romana, e conta mil e
trinta escritos enumerados pelo seu autor, com outros ‘que não podem ser numerados, porque não os enumerou’. Bispo de uma
cidade próxima, Possídio ditava estas palavras precisamente a Hipona, onde se
tinha refugiado e assistira à morte do amigo e quase certamente se baseava no
catálogo da biblioteca pessoal de Agostinho. Hoje, são mais de trezentas as
cartas de bispo de Hipona que sobreviveram e quase seiscentas as homilias, mas
elas eram muitas mais, talvez até entre as três mil e as quatro mil, fruto de
quarenta anos de pregações do antigo reitor que tinha decidido seguir Jesus e
falar já não aos grandes da corte imperial, mas à simples população de Hipona.
Ainda em anos recentes, as descobertas de um grupo de
cartas e de algumas homilias enriqueceram o nosso conhecimento deste grande
Padre da Igreja. ‘Muitos livros’,
escreve Possídio, ‘foram por ele
compostos e publicados, muitas pregações foram feitas na igreja, transcritas e
corrigidas, quer para contestar os diversos hereges quer para interpretar as
sagradas Escrituras dos santos filhos da Igreja. Estas obras, ressalta o bispo
amigo, são tantas que dificilmente um estudioso tem a possibilidade de as ler e
aprender a conhece-las.’ (Vita
Augustini, 18,9)
Entre a produção literária de Agostinho, portanto, mais
de mil publicações subdivididas em escritos filosóficos, apologéticos,
doutrinais, morais, monásticos, exegéticos, anti-hereges, além, precisamente,
das obras excecionais de grande alcance teológico e filosófico. Antes de tudo,
é preciso recordar as já mencionadas Confessiones,
escritas em treze livros entre 397 e 400 para louvor de Deus. Elas são uma
espécie de autobiografia na forma de um diálogo com Deus. Este gênero literário
reflete precisamente a vida de Santo Agostinho, que era uma vida não fechada em
si, dispersa em tantas coisas, mas vivida substancialmente como diálogo com
Deus, e assim uma vida com os outros. Já o título Confessiones indica a especificidade desta autobiografia. Esta
palavra confessiones no latim
cristão, desenvolvido pela tradição dos Salmos, tem dois significados que
contudo se entrelaçam. Confessiones
indica, em primeiro lugar, a confissão das próprias debilidades, da miséria dos
pecados; mas, ao mesmo tempo, confessiones
significa louvor a Deus, reconhecimento a Deus. Ver a própria miséria na luz de
Deus torna-se louvor a Deus e agradecimento porque Deus nos ama e nos aceita,
nos transforma e nos eleva para Si mesmo. Sobre estas Confessiones, que tiveram grande êxito já durante a vida de Santo
Agostinho, ele mesmo escreveu : ‘Elas
exerceram sobre mim tal ação enquanto as escrevia e ainda exercem quando as
releio. Estas obras são do agrado de muitos irmãos’ (Retractaciones, II, 6) : e devo dizer que também eu sou um destes ‘irmãos’. E graças às Confessiones, podemos seguir passo a
passo o caminho interior deste homem extraordinário e apaixonado por Deus.
Menos conhecidas mas igualmente originais e muito importantes são, outrossim,
as Retractationes, compostas em dois
livros por volta do ano 427, nas quais Santo Agostinho já idoso realiza uma
obra de ‘revisão’ (retractatio) de toda a sua obra escrita,
deixando assim um documento literário singular e extremamente precioso, mas também
um ensinamento de sinceridade e de humildade intelectual.
O De civitate Dei,
obra imponente e decisiva para o desenvolvimento do pensamento político
ocidental e para a teologia cristã da história, foi escrito de 413 a 426, em
vinte e dois livros. A ocasião era o saque de Roma, levado a cabo pelos Godos
em 410. Numerosos pagãos ainda vivos, mas também muitos cristãos, disseram :
Roma caiu e agora o Deus cristão e os Apóstolos já não podem proteger a cidade.
Durante a presença das divindades pagãs, Roma era caput mundi, a grande capital, e ninguém podia pensar que teria
caído nas mãos dos inimigos. Agora, com o Deus cristão, esta grande cidade já
não parecia segura. Portanto, o Deus dos cristãos já não protegia, não podia
ser o Deus ao qual confiar-se. Nesta objeção, que tocava profundamente também o
coração dos cristãos, Santo Agostinho responde com esta obra grandiosa, o De civitate Dei, esclarecendo o que
devemos ou não esperar de Deus, qual é a relação entre o campo político e o
campo da fé da Igreja. Também nos dias de hoje este livro é uma fonte para
definir bem a verdadeira laicidade e a competência da Igreja, a grande e verdadeira
esperança que a fé nos proporciona.
Este livro excelso é uma apresentação da história da
humanidade governada pela Providencia Divina, mas atualmente dividida por dois
amores. E este é o desígnio fundamental, a sua interpretação da história, que é
a luta entre dois amores. E este é o desígnio fundamental, a sua interpretação
da história, que é a luta entre dois amores : o amor a si mesmo, ‘até à indiferença por Deus’, e o amor a
Deus, ‘até à indiferença por sim mesmo’
(De civitate Dei, XIV, 28), à plena
liberdade de si próprio pelos outros, na luz de Deus. Portanto, este talvez
seja o maior livro de Santo Agostinho, de uma importância permanente.
Igualmente importante é o De Trinitate,
obra em quinze li vros no núcleo principal da fé cristã, a fé no Deus
trinitário, escrita em dois tempos : entre 399 e 412, os primeiros doze livros,
publicados sem o conhecimento de Agostinho, que por volta de 420 os completou e
reviu a obra inteira. Aqui, ele reflete sobre o rosto de Deus e procura compreender
este mistério do Deus que é singular, o único criador do mundo, de todos nós e,
todavia, que precisamente este Deus único é trinitário, um círculo de amor.
Procura compreender o mistério insondável : exatamente o ser trinitário, em três
Pessoas, é a mais real e mais profunda unidade do único Deus. O De doctrina Christiana é, no entanto,
uma verdadeira e própria análise, ao próprio Cristianismo, que teve uma
importância determinante na formação da cultura ocidental.
Apesar de toda a sua humildade, Agostinho certamente
estava consciente da sua estatura intelectual. Mas para ele, mais importante do
que realizar grandes obras de elevado significado teológico, era transmitir a
mensagem aos simples. Esta sua intenção mais profunda, que orientou toda a sua
vida, manifesta-se numa carta escrita ao colega Evódio, na qual comunica a decisão
de suspender momentaneamente o ditado dos livros do De Trinitate, ‘porque são demasiado
cansativos e na minha opinião podem ser entendidos por poucos; por isso, são mais
urgentes os textos que, esperamos, venham a ser mais úteis para muitos’ (Epistulae, 169,1,1). Portanto, para ele
era mais útil comunicar a fé de modo compreensível para todos do que escrever grandes
obras teológicas. A responsabilidade profundamente sentida em relação à divulgação
da mensagem cristã é sentida também na origem de escritos como De catechizandis rudibus, uma teoria e
também uma prática da catequese, ou o Psalmus
contra partem Donati. Os donatistas eram o grande problema da África de
Santo Agostinho, um cisma intencionalmente africano. Eles afirmavam : a verdadeira
cristandade é africana. Opunham-se à unidade da Igreja. Contra este cisma, o
grande bispo lutou durante toda a sua vida, procurando convencer os donatistas
que somente na unidade também a africanidade pode ser verdadeira. E para se
fazer compreender pelos mais simples, que não conseguiam entender o latim
erudito do reitor, disse : devo escrever também com erros gramaticais, num
latim muito simplificado. E fê-lo sobretudo neste Psalmus, uma espécie de poesia simples contra os donatistas, para ajudar
todas as pessoas a compreenderem que unicamente na unidade da Igreja se realiza
para todos realmente a nossa relação com Deus e aumenta a paz no mundo.
Nesta produção destinada a um publico mais vasto reveste
uma importância particular o número de homilias, muitas vezes pronunciadas ‘de modo improvisado’, transcrita pelas
taquígrafos durante a pregação e imediatamente postas em circulação. Entre
elas, sobressaem as lindas Enarrationes
in Psalmos, muito lidas na Idade Média. Precisamente a prática de publicação
dos milhares de homilias de Agostinho, muitas vezes sem o controle do autor, era
sua difusão e sucessiva dispersão, mas também a sua vitalidade. Com efeito, imediatamente
as pregações do bispo de Hipona tornavam-se, pela fama do seu autor, textos
muito procurados e serviam também para outros bispos e sacerdotes como modelos,
adequados a contextos sempre novos.
A tradição iconográfica, já num afresco lateranense que
remonta ao século VI, representa Santo Agostinho com um livro na mão, sem
dúvida para expressar a sua produção literária que influenciou em grande medida
a mentalidade e o pensamentos cristãos, mas para exprimir também o seu amor
pelos livros, pela leitura e pelo conhecimento da grande cultura precedente.
Quando faleceu nada deixou, narra Possídio, mas ‘recomendava sempre que se conservasse diligentemente para a posteridade
a biblioteca da igreja com todos os códices’, sobretudo o das suas obras. Nelas,
sublinha Possídio, Agostinho está ‘sempre
vivo’e beneficia quem lê os seus escritos não obstante, conclui ele, ‘na minha opinião puderam tirar mais proveito
do seu contato aqueles que o conseguiram ver e ouvir, quando falava
pessoalmente nas igrejas, e sobretudo aqueles que tiveram experiência da sua
vida quotidiana no meio do povo’ (Vita
Augustini, 31). Sim, também para nós teria sido muito bom poder ouvi-lo
pessoalmente. Todavia, ele está deveras vivo nos seus escritos, está presente
em nós e assim sentimos também a vitalidade permanente da fé, à qual ele
entregou toda a sua vida.
(20 de fevereiro de 2008)
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