3. Pensamento
O meu querido predecessor João Paulo II dedicou a Santo
Agostinho em 1986 isto é, no décimo sexto centenário da sua conversão, um longo
e denso documento, a Carta Apostólica Augustinum
Hipponensem. O próprio Papa quis definir este texto como ‘um agradecimento a Deus pelo dom feito à
Igreja, e através dela à humanidade inteira, com aquela admirável conversão’.
Sobre o tema da conversão gostaria de voltar a refletir numa próxima audiência.
É um tema fundamental não só para a sua vida pessoal, mas também para a nossa.
No Evangelho, o próprio Senhor resumiu a Sua pregação com a palavra : ‘Convertei-vos.’ Seguindo o caminho de
Santo Agostinho, poderíamos meditar sobre o que foi esta conversão : uma coisa
definitiva, decisiva, mas a decisão fundamental deve desenvolver-se, deve
realizar-se em toda a nossa vida.
Hoje a catequese é dedicada, ao contrário, ao tema fé e razão,
que é determinante, ou melhor, o tema determinante para a biografia de Santo
Agostinho. Quando era criança tinha aprendido da sua mãe Monica a fé católica.
Mas quando era adolescente abandonou esta fé porque não via a sua racionalidade
e não queria uma religião que não fosse também para ele expressão da razão,
isto é, da verdade. A sua sede de verdade era radical e levou-o, portanto, a
afastar-se da fé católica. Mas a sua radicalidade era tal que ele não podia se
contentar com filosofias que não alcançassem a própria verdade, que não chegassem
a Deus. E a um Deus que não fosse só uma última hipótese cosmológica, mas o
verdadeiro Deus, o Deus que dá a vida e que entra na nossa própria vida. Assim
todo o percurso intelectual e espiritual de Santo Agostinho constitui um modelo
válido também hoje na relação entre fé e razão, tema não só para homens crentes
mas para cada homem que procura a verdade, tema central para o equilíbrio e o
destino de cada ser humano. Estas duas dimensões, fé e razão, não podem ser
separadas nem contrapostas, mas devem estar sempre juntas. Como escreveu o
próprio Agostinho, depois da sua conversão, fé e razão são ‘as duas forças que nos levam a conhecer’
(Contra Academicos, III, 20,43). A este
propósito permanecem justamente célebres as duas fórmulas agostinianas (Sermones, 43,9) que expressam esta
síntese coerente entre fé e razão : crede
ut intelligas (‘crê para compreender’)
o crer abre o caminho para passar pela porta da verdade mas também, e
inseparavelmente, intellige ut credas
(‘compreende para crer’), perscruta a
verdade para poder encontrar Deus e crer.
As duas afirmações de Agostinho exprimem com eficaz prontidão
e com igual profundidade a síntese deste problema, na qual a Igreja Católica vê
expresso o próprio caminho. Historicamente, esta síntese vai-se formando, ainda
antes da vinda de Cristo, no encontro entre fé judaica e pensamento grego no
judaísmo helênico. Sucessivamente na história esta síntese foi retomada e
desenvolvida por muitos pensadores cristãos. A harmonia entre fé e razão significa
sobretudo que Deus não está longe : não está longe da nossa razão e da nossa
vida; está próximo de cada ser humano, perto do nosso coração e da nossa razão,
se realmente nos pusermos a caminho. Precisamente, esta proximidade de Deus ao
homem foi sentida com extraordinária intensidade por Agostinho. A presença de
Deus no homem é profunda e ao mesmo tempo misteriosa, mas pode ser reconhecida
e descoberta no próprio íntimo : não saias, afirma o convertido, mas ‘volta para ti; no homem interior habita a
verdade; e se achares que a tua natureza é alterável, transcende-te a ti mesmo.
Mas recorda-te, quando te transcendes a ti mesmo, transcendes uma alma que
raciocina.’ (De vera religione,
39,72) Precisamente como ele mesmo ressalta, com uma afirmação muito famosa, no
início das Confessiones,
autobiografia espiritual escrita para louvor de Deus ‘Criastes-nos para Vós, e o nosso coração está inquieto, enquanto não descansa
em Vós.’ (I, 1,1)
A distância de Deus equivale à distância de si mesmo : ‘De fato, tu’ reconhece Agostinho (Confessiones, III, 6,11) dirigindo-se
diretamente a Deus, ‘estavas dentro de
mim mais que o meu íntimo e acima da minha parte mais alta’, interior intimo meo et superior summo meo;
a ponto que acrescenta noutro trecho recordando o tempo que precedeu a
conversão : ‘Tu estavas diante de mim; e
eu, ao contrário, tinha-me afastado de mim mesmo, e não me reencontrava; e
muito menos te encontrava a ti.’ (Confessiones,
V, 2,2) Precisamente porque Agostinho viveu na primeira pessoa este percurso
intelectual e espiritual, soube transmiti-lo nas suas obras com tanta prontidão,
profundidade e sabedoria, reconhecendo em dois outros célebres trechos das Confessiones (IV, 4,9 e 14,22) que o
homem é ‘um grande enigma’ (magna quaestio) e ‘um grande abismo’ (grande
profundum), enigma e abismo que só Cristo ilumina e salva. Isto é
importante : um homem que está distante de Deus está também afastado de si
mesmo, alienado de si próprio, e só se pode reencontrar encontrando-se com
Deus. Assim chega também a si, ao seu verdadeiro eu, à sua verdadeira
identidade.
O ser humano, ressalta depois Agostinho no De civitate Dei (XII, 27), é social por
natureza mas antissocial por vício, e é salvo por Cristo, único mediador entre
Deus e a humanidade ‘caminho universal da
liberdade e da salvação’, como repetiu o meu predecessor João Paulo II (Augustinum Hipponensem, 21) : fora deste
caminho, que nunca faltou ao gênero humano, afirma ainda Santo Agostinho na
mesma obra, ‘ninguém jamais foi
libertado, ninguém é libertado e ninguém será libertado’ (De civitate Dei, X, 32,2). Enquanto
único mediador da salvação, Cristo é a cabeça da Igreja e a ela está
misticamente unido a ponto que Agostinho pode afirmar : ‘Tornamo-nos Cristo. De fato, se Ele é a cabeça, nós somos os Seus membros,
o homem total é Ele e nós.’ (In
Iohannis evangelium tractatus, 21,8)
Povo de Deus e casa de Deus, a Igreja na visão agostiniana
está, portanto, estreitamente relacionada com o conceito de Corpo de Cristo,
fundada na releitura cristológica do Antigo Testamento e na vida sacramental centrada
na Eucaristia, na qual o Senhor nos dá o Seu Corpo e nos transforma em Seu
Corpo. Então, é fundamental que Igreja,
povo de Deus em sentido cristológico e não em sentido sociológico, esteja
verdadeiramente inserida em Cristo, o qual, afirma Agostinho numa lindíssima
página, ‘reza por nós, reza em nós, é
rezado por nós; reza por nós como nosso sacerdote, reza em nós como nossa cabeça,
é rezado por nós como nosso Deus : reconhecemos portanto n’Ele a nossa voz e em
nós a Sua’ (Enarrationes in Psalmos,
85,1).
Na conclusão da Carta Apostólica Augustinum Hipponensem, João Paulo II quis perguntar ao próprio
santo o que tem para dizer aos homens de hoje e responde antes de tudo com as
palavras que Agostinho escreveu numa carta ditada pouco antes da sua conversão
: ‘Parece-me que se deve reconduzir os
homens à esperança de encontrar a verdade’
(Epistulae, 1,1); aquela verdade que é
o próprio Cristo, Deus verdadeiro, ao qual é dirigida uma das orações mais
bonitas e mais famosas das Confessiones (X, 27,38) : ‘Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei! Estáveis
dentro de mim e eu estava fora, e aí Vos procurava; e disforme como era, lançava-me
sobre estas coisas formosas que criastes. Estáveis comigo e eu não estava
Convosco. Retinha-me longe de Vós aquilo que não existiria se não existisse em
Vós. Mas Vós me chamastes, clamastes e rompestes a minha surdez. Brilhastes,
resplandecestes e curastes a minha cegueira. Exalastes o Vosso perfume :
respirei-o e agora suspiro por Vós. Saboreei-Vos, e agora tenho fome e sede de
Vós. Tocastes-me, e comecei a desejar ardentemente a Vossa paz.’
Eis que Agostinho encontrou Deus e durante toda a sua
vida fez experiência d’Ele a ponto de esta realidade, que é antes de tudo
encontro com uma Pessoa, Jesus, mudou a Sua vida, assim como muda a de quantos,
mulheres e homens, em todo9s os tempos têm a graça de O encontrar. Rezemos para
que o Senhor nos conceda esta graça e nos faça encontrar assim a Sua paz.
(30 de janeiro de 2008)
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