Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
‘Os desafios
da Pastoral do Povo da Rua para promover dignidade aos excluidos’
‘A população de rua no Brasil aumenta a cada ano em
diferentes regiões do país. Em 2023, 261 mil pessoas viviam em situação de rua
no Brasil, número onze vezes maior que há dez anos. Já nos dois primeiros meses
deste ano de 2024, mais 10 mil pessoas foram para as ruas, totalizando assim
aproximadamente 272 mil pessoas em situação de rua, sendo que 70% dos moradores
de rua são negros e 87% estão na faixa etária entre 18 e 59 anos.
Os dados foram divulgados no último levantamento
feito pelo CadÚnico, o Cadastro Único para Programas Sociais do governo
federal, em março. Além disso, observa-se um crescente aumento de muitos
migrantes nas ruas, como venezuelanos, haitianos, peruanos, senegaleses,
cubanos, libaneses, entre tantos outros que se juntam a várias famílias
brasileiras em situação de rua. É notório que a população está indo cada vez
mais cedo para as ruas e permanecendo aí longos períodos. Quais seriam as
principais causas para tantas pessoas nas ruas especialmente nos grandes
centros urbanos?
É preciso observar que a violência estrutural que
acomete parte da população brasileira é muito anterior à pandemia da covid-19,
ainda que após o período pandêmico tenha havido um aumento de famílias inteiras
e de mulheres nas ruas. Especialistas apontam que as principais causas são
nesta ordem : conflitos familiares e comunitários, perda ou precarização de
moradia, perda ou precarização de trabalho e o uso prejudicial de álcool e
outras drogas são as principais causas que levam as pessoas à situação de rua
no país, o que indica que é um problema principalmente relacionado a políticas
públicas e econômicas.
Para atuar pelos direitos e necessidades dessa
parcela da sociedade, que muitas vezes representa os excluídos, a Pastoral do
Povo da Rua tem como missão criar vínculos com a população em situação de rua e
identificar os potenciais de vida desenvolvendo ações que transformem essa
exclusão em realidade de vida para todos, como reforça Ivone Maria Perassa,
coordenadora nacional da Pastoral do Povo da Rua e há onze anos nela atuando.
Ela explica que uma das principais funções da coordenação é fortalecer a
atuação dos agentes da pastoral em escala nacional e contribuir com a formação
para que os agentes consigam, de fato, junto com a rua pensar em ações transformadoras
da realidade. ‘Por muito tempo e diversas vezes, quem atua com população de rua
a vê composta por pessoas que precisam de comida, roupa, água e cobertor e aí
geralmente ficam nessas ações. Na pastoral, nós consideramos que essas são
ações emergenciais de que todo ser humano necessita, como comer, beber, dormir,
tomar banho, mas não podemos ficar somente nelas’, pondera Ivone.
Ao longo de mais de quarenta anos, a pastoral
contribui especialmente para que a população de rua se fortaleça, conheça seus
direitos, organize-se em pequenos grupos ou comunidades e consiga dar seus
passos de forma organizada na defesa dos seus direitos ou na proposição de
políticas públicas. Dentre as conquistas, vale destacar a atuação no campo da
política pública – com as criações de conselhos, comitês, portarias que
garantem os direitos da população de rua tornando-a mais visível. ‘A
visibilidade surge quando se está organizado. Essa é uma ação que a pastoral
tem focado muito : fortalecer a organização dessa população para que possa sair
dessa situação’, detalha Ivone, que explica ainda que ‘hoje a população de rua
consegue entrar e fazer debate, dialogar com o judicial, com o ministério
público, com o Executivo, com o Legislativo. Consegue ser respeitada ou ser
ouvida enquanto em tempos passados eram barrados na porta’.
Dentre os projetos encabeçados pela pastoral, o ‘Moradia
primeiro para população de rua, criado em 2019, tem como objetivo incluir
pessoas em situação crônica de rua e proporcionar uma vida digna e reestruturada.
Outro propósito é mostrar aos municípios que incluir a população na moradia é
mais econômico e com resultados eficazes’, exemplifica a coordenadora.
O alto custo de vida e o desemprego crescente
também contribuem para que a rua seja o destino de famílias inteiras : ‘A rua
virou uma opção porque é o lugar em que as pessoas optam por viver já que não
dão conta de pagar com o que recebem a comida, a moradia, o remédio e outras
despesas. Após a pandemia, muitas outras pessoas com transtornos mentais,
depressão profunda, sequelas respiratórias e que não são idosas não se sentem mais
úteis na vida’, diz Ivone. À medida que as pessoas não dão conta de viver e de
trabalhar temos um problema social e econômico. ‘Presenciamos uma crise pela
falta de programas de moradias coletivas adequadas e residências terapêuticas
para aqueles com transtornos mentais. Moradias dignas para essa população com
um custo social, ofertas de trabalho que sejam de acordo com essa realidade de
uma população que não tem um acesso tão ágil às tecnologias’, reflete
ela.
Hoje, a metade das vagas disponíveis nas moradias
públicas – sejam em abrigos, albergues, casas de acolhimento – está como
residências fixas. ‘São idosos, pessoas deficientes que estão lá porque não têm
outro local para ir. Os equipamentos públicos que deveriam ser rotativos estão
ocupados por residências coletivas fixas e precárias’, alerta Ivone.
Os municípios, de um modo geral, investem nos
chamados programas de higienização, que é a expulsão das pessoas das suas
cidades, de forma discreta, com o recolhimento de pertences e, por vezes, com
atos de violência. O problema é então transferido, já que a migração acontece
para municípios de pequeno e médio porte. ‘O grande desafio é fazer com que o
poder público invista em programas que sejam de inclusão e de estruturação
dessas vidas, focando projetos de geração de renda e inclusão na moradia.
Entendemos que é a porta de saída para essa população’, diz ela.
Uma das vozes mais atuantes e reconhecidas na luta
contra a invisibilidade do povo em situação de rua é o Padre Júlio Lancellotti,
vigário episcopal para a Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo
(SP). Muitos dos projetos desenvolvidos por ele em conjunto com a pastoral são
criticados por políticos conservadores e por uma parcela da sociedade. Ivone
frisa : ‘O Padre Júlio tem tido uma força de expressão fundamental. Ele é firme
naquilo que acredita, tem garra, resistência, consciência política, além de ser
respeitado. Essa pressão que o Padre Júlio recebe é semelhante à que grupos que
desenvolvem trabalhos diretos na rua com abordagem, entrega de alimentos, de
roupas e cobertas têm sofrido no Brasil inteiro, por isso, nossa luta maior é
por políticas públicas estruturantes’.
Os cidadãos comuns, especialmente cristãos
católicos, podem ajudar efetivamente essa corrente de solidariedade e
acolhimento dentro de suas próprias realidades, cidades, bairros onde moram. ‘Identifiquem
pessoas em sofrimento nesse grau de abandono que é a situação de rua. Não se
fechem. Conversem e ouçam o que elas têm a dizer. Se não tiverem nada mais para
ofertar, a orientação é contatar as autoridades dos municípios para avaliar as
possibilidades de casas de acolhimento e abrigos. A participação dos cristãos
no suporte emergencial, em socorro à vida, é necessária em todos os momentos’,
finaliza Ivone’.
Fonte : *Artigo na íntegra
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