Por Eliana Maria
(Ir. Gabriela, Obl. OSB)
‘Estimado leitor da Revista Ave Maria,
começo nossa reflexão mensal de maio a partir do pensamento do Papa Bento XVI
em relação à visão antropológica do homem e suas relações afetivas. Pensar
sobre a humanidade contemporânea será sempre um desafio, sobretudo a partir das
categorias que compõem a sociedade.
O homem contemporâneo
para Ratzinger é aquele que vive no mundo secularizado, pós-metafísico,
edificado substancialmente sobre a interpretação científico-matemática da
realidade; aquilo que aparece dotado de valor é unicamente o ‘fato’, alcançado
pelos métodos da ciência natural e que pode ser, em consequência, constatável,
dominável, transformado pela intervenção do homem. O factum torna-se,
assim, imediatamente faciendum, isto é, aquilo que pode ser
programado e criado pelo homem e que o projeta para o futuro. O saber torna-se
poder. Os processos são assim submetidos à única autoridade comumente
reconhecida : a ratio técnica (razão técnica).
Os outros tipos de
conhecimento não experimentável, não exprimível em termos científico-positivos,
perdem o próprio direito de cidadania no reino do legitimamente comunicável e
são confinados ao âmbito do privado, do subjetivo, ao domínio da opinião. Diz
ele : ‘A verdade que ao homem cumpre manipular não é nem a verdade do ser, nem
em última análise a dos seres realizados, feitos; mas a verdade da alteração do
mundo – uma verdade dirigida para o futuro e para a ação’. Isso é chamado por
Ratzinger predomínio do ‘saber-fazer’. Essa redução da natureza a dados de
fatos exaurivelmente penetráveis, e com isso também manipuláveis, tem como
consequência que nenhuma mensagem moral que provém de fora do perímetro do
nosso eu pode alcançar-nos.
O fenômeno moral,
como aquele religioso, vem considerado como pertencente à esfera da
subjetividade, não tendo cidadania alguma na dimensão da objetividade. Nesse
círculo fechado, tem-se um homem que espera a salvação de si mesmo e parece ser
incapaz de dá-la.
Sobre a crise da
filosofia moderna, a crise da metafísica, ele diz que não se pode ignorar a
pergunta metafísica da interrogação filosófica e continua ‘lá onde não se
coloca mais a questão sobre a origem e fim do real se transcura próprio àquilo
que é o mais específico da pesquisa filosófica’. Nesse cenário, qual o lugar de
Deus e do fenômeno religioso? A questão de Deus resulta dessa forma estranha ou
Deus é colocado à margem entre as coisas que são tidas como importantes para o
homem, para o conhecimento e a transformação do mundo. Joseph Ratzinger não
fala tanto de um ateísmo teórico, mas de um ateísmo prático, que poderia ser
assim enunciado : ‘Também se Deus existe, este não modifica substancialmente a
vida do homem e do mundo’. Essa lógica aprisiona o homem na sua fatualidade,
traindo a sua natureza mais profunda, tendo como consequência última e lógica e
ao mesmo tempo dramática a destruição do homem mesmo, a sua abolição. Então
Ratzinger diz que esta ignora aquela abertura constitutiva do homem ao mistério
do ser, que ele expressa e sintetiza em três aspectos característicos da
dinâmica espiritual do homem: a procura de sentido; a lei fundamental do ekstasis como
manifestação do significado da pessoa; a capacidade humana do divino.
A procura do sentido :
a natureza humana não pode ser saciada pela pura positividade dos fatos. O
texto de Mateus 4,4 oferece a Ratzinger o elemento para sublinhar o significado
global da existência. Diz ele : ‘Com efeito, o homem não vive apenas do pão da
fatualidade; com efeito, ele vive do amor, do sentido das coisas. O sentido é o
pão que lhe possibilita subsistir, em sentido próprio como homem. Sem a
palavra, sem uma finalidade, sem amor o homem chega à situação de não mais
viver, mesmo cercado de todo conforto humano’. O homem necessita de um sentido
que preencha a sua solidão : ‘Esta solidão pode ser superada não por meio da
razão, mas por meio de uma presença, de um ser que o queira bem’. O homem pode
vencer a solidão somente experimentando a existência como um ser amado.
Ratzinger diz que a
questão do sentido não opcional, elemento assessório a uma vida em si já
completa, mas é a condição mesma para poder viver, é aquilo que só pode
justificar a sua transmissão às futuras gerações. Enfim, o homem que busca um
sentido último e onicompreesivo percebe que esse sentido não pode vir da
ciência e nem criado do fazer e do operar, mas pode somente ser esperado e
recebido daquele que é ‘outro’de si.
A lei fundamental
do ekstasis como manifestação do significado original da
pessoa : esse é um principio que norteia toda a teologia de Ratzinger. ‘De ekstasis’,
sair de si. A história da salvação, por exemplo, vem compreendida à luz desse
princípio como um grande êxodo. Da vocação de Abraão ao seu cumprimento no
sacrifício pascal de Cristo, que permanece presente e se desenvolve no mundo
pela abertura missionária da Igreja. A profissão batismal representa um sair do
próprio ‘eu’ autônomo para entrar no ‘nós’ da comunidade eclesial. A vida
cristã é caracterizada por essa dinâmica de ‘sair de si’ sobre a base de Mateus
10,39, ‘Somente quem perde a vida a encontra’.
Para Ratzinger,
também a moderna pesquisa da antropologia filosófica consiste na própria
superação de si : a abertura, a relação com a totalidade, faz parte da essência
do Espírito, assim que somente no superar-se possui-se a si mesmo. O verdadeiro
centro da existência humana aparece assim ser ‘ex sistere’, fora de si,
somente movendo para o qual o homem pode atingir o seu ‘en si’ próprio.
Para ele, Deus é um ser dialógico, em que a essência é ser relação; somente uma
compreensão do homem como ‘pessoa’, entendido como relação e abertura ao outro,
como atuação permanente da dinâmica do êxodo, respeita a peculiaridade do
Espírito humano, criado ‘à imagem e semelhança de Deus’. Enfim, diz Ratzinger :
‘O outro, por meio do qual o Espírito torna-se a si mesmo, é aquele
completamente outro, ao qual, balbuciando, pronunciamos o nome Deus’.
A capacidade humana
do divino : se o homem é busca de significado da realidade, se o seu ser pessoa
se realiza na abertura, no ekstasis, deve-se concluir que a sua
medida é somente o infinito, o tudo, é Deus mesmo. Esse é o aspecto que
distingue o espírito humano : ‘O homem é ser capaz de pensar o totalmente
diverso, o transcendente, isto é, Deus, como quer que o chame’. Diz Ratzinger :
‘Se poderia dizer que o homem representa aquela fase da criação, aquela
criatura à qual é dada a possibilidade de ver a Deus e então de participar a
vida. (…) Devemos agora acrescentar que essa abertura não é um ‘a mais’ na
existência, a qual poderia também ser vivida independente dessa, mas que tal
abertura representa aquilo que é mais profundo no homem, ou seja, propriamente
aquilo que chamamos alma’. Essa ‘capacidade’ humana do divino vem
implicitamente, mas claramente sugerida pelo mesmo texto bíblico do Gênesis
quando descreve a criação do homem. Aqui duas afirmações são significativas :
Deus criou um ser que pode pensar e conhecer aquele que o criou; o fato de ser
criado à imagem e semelhança de Deus, diz ele, ‘A semelhança com Deus significa
‘referência’, é uma dinâmica que coloca em movimento o homem e o orienta para o
completamente outro, significa capacidade de relação, significa que o homem é
capaz de Deus. Em consequência, o homem é ‘ele mesmo’ em máxima potência quando
sai de si, quando é capaz de dizer ‘tu’ a Deus. Essa dinâmica se cumpre somente
com o Adão definitivo, aquele que é a perfeita imagem e semelhança de Deus e
que por isso revela exemplarmente que é o homem. A abertura para Deus torna-se,
de fato, orientação para Cristo, para o seu corpo ressuscitado, para o qual não
somente o homem, mas toda a realidade, tende, e na qual ambos se tornam
plenamente ‘ele mesmo’.’
Fonte : *Artigo na íntegra
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