Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
‘Desde há algum tempo
que existem ondas progressistas e conservadoras quanto à vida da Igreja e a sua
relação com o mundo. Uma vez, ouvi que éramos conservadores porque temos um
tesouro e queremos conservá-lo. Mas será que a tradição é uma ‘coisa’ estática?
O caminho que estamos a fazer no âmbito da sinodalidade não pode levar-nos a
andar para trás, negando o que vivemos no presente. O Papa Francisco até
inventou uma palavra para quem acha que o melhor seria voltar para trás :
um ’retrocedismo’.
A 1
de Junho de 2022, o Papa Francisco disse no
discurso que fez aos participantes do Congresso dedicado às ‘Linhas de
Desenvolvimento do Pacto Educativo Global’ que «há a moda – em
todos os séculos, mas neste século vejo-a como um perigo na vida da Igreja –
que em vez de beber das raízes para ir em frente – aquele sentido das bonitas
tradições – há um ‘retrocedismo’, não ‘para baixo e para cima’, mas para trás.
Este ‘retrocedismo’ que nos faz seita, que nos fecha, que nos tira
os horizontes : denomina-se guardiães de tradições, mas de tradições mortas.»
Tomáš
Halík, na introdução que fez em Praga na Assembleia Sinodal Continental
Europeia, diz que «Se a Igreja pretende contribuir para a transformação do
mundo, deve estar permanentemente em transformação.» E essa transformação
do mundo faz-se através da Evangelização, que é a sua principal missão. Uma
Evangelização que produza fruto por inculturação. Halík nota como o mundo,
hoje, está mais conectado do que nunca, e ao mesmo tempo, está mais polarizado
do que nunca.
Segundo
um grupo de investigadores liderado por Shanto Iyengar, que publicou uma síntese para
a Annual Review of Political Science, existe um tipo de polarização
nos Estados Unidos que é muito emocional, a polarização afectiva.
Significa que produz comportamentos polarizados entre as pessoas, muito para
além do lado político em que se encontram. Isto é, tanto esquerda como direita
podem ter a mesma ideia política, mas isso não diminui a polarização afetiva
entre as partes. Soube de um episódio, há algum tempo, de uma diocese que
organizou uma ação de formação sobre a procriação medicamente assistida, para
informar as pessoas e reflectir seriamente sobre o assunto. Porém, um grupo de
católicos interpretou que falar sobre o assunto seria concordar e promover a
PMA, quando o propósito não era concordar ou discordar, mas refletir e formar.
A ação acabou por não se realizar porque se previa uma manifestação sem
sentido. Aquele grupo de católicos havia cedido ao ‘retrocedismo’. Precisamos
de sair do ‘retrocedismo’.
Meses
depois, no dia 1 de Setembro, o Papa Francisco volta a falar do
assunto aos membros da Associação Italiana de Professores e Cultores de
Liturgia : «Há um espírito que não é o da verdadeira tradição : o espírito
mundano do ‘retrocedismo’, hoje na moda : pensar que ir às raízes significa
retroceder. Não, são coisas diferentes. Se fores às raízes, as raízes levam-te
para cima, sempre. Como a árvore, que cresce a partir do que lhe chega das
raízes. E a tradição consiste precisamente em ir às raízes, porque é a garantia
do futuro, como dizia Mahler. Ao contrário, o ‘retrocedismo’ é recuar dois
passos porque é melhor e ‘sempre se fez assim’. É uma tentação na vida da
Igreja que te leva a um restauracionismo mundano, disfarçado de liturgia e
teologia, mas é mundano. E o ‘retrocedismo’ é sempre mundanidade : por isso, o
autor da Carta aos Hebreus diz : ‘Não somos pessoas que andam para trás’. Não,
vais em frente, de acordo com a linha que a tradição te dá. Voltar para trás é
ir contra a verdade e também contra o Espírito. Fazei bem esta distinção.»
Quando
os mais ‘retrocedistas’ ouvem o Papa Francisco falar deste modo, poderão pensar
que ele é ‘progressista’ e que a Igreja está a ficar uma confusão de ideias e a
perder alguma da sua identidade relativamente a valores relacionados com
situações de clivagem social como o aborto, a homossexualidade ou a eutanásia.
Parece-lhes que diante daquele que sofre, o papa quebra os ideais de há
séculos, para minar a tradição com tendências culturais hodiernas, onde tudo é
relativo, permitido, desde que amemos, levando a uma ruptura com valores
fundamentais. O que queria então dizer Santo Agostinho com ‘ama e faz o que
quiseres’? Por outro lado, se uma pessoa vestir uma roupa diferente, passa a
ser uma outra pessoa? Pensar numa polarização afetiva entre conservadores e
progressistas é continuar a mentira que esta divisão reflete.
A
revolução da sinodalidade consiste na ruptura que está a fazer com os grilhões
das polarizações afetivas que temos nos pés e que nos impedem de avançar no
caminho da modernização da espiritualidade, não pela alteração da Tradição, mas
pelo seu aprofundamento. Qualquer aprofundamento do conteúdo exige uma reforma
na forma. Teilhard de Chardin acreditava haver uma só força que unia sem
destruir : o amor. Assim como Halík, também eu acredito que a transformação da
Igreja está a acontecer por estarmos a tornarmo-nos numa comunidade dinâmica de
peregrinos. Quem sabe se nesta peregrinação pelo mundo contemporâneo, um
pequeno, mas importante passo, não seja começar por sair do ‘retrocedismo’.’
Fonte : *Artigo na íntegra
https://www.combonianos.pt/alem-mar/opiniao/4/907/sair-do-retrocedismo/
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