domingo, 19 de fevereiro de 2023

Além dos pássaros e das chamas: o Espírito Santo e o jazz

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo do Padre Daniel P.Horan, OFM

Tradução : Ramón Lara


Um pássaro ou uma chama. Tradicionalmente, essas são as imagens mais comuns usadas como metáforas do Espírito Santo.

A metáfora ornitológica geralmente remonta a Lucas 3,22 quando, no batismo de Jesus por João no Jordão, somos informados de que ‘o Espírito Santo desceu sobre ele em forma de pomba’. A última metáfora, mais pirotécnica, remonta à sequência do Novo Testamento de Lucas, os Atos dos Apóstolos e seu relato do Pentecostes. Junto com um ‘vento forte’, como está escrito, os apóstolos estavam em uma sala trancada quando ‘apareceram-lhes línguas como de fogo, que se separaram e pousaram sobre cada um deles’ (Atos 2,3).

E com essas duas metáforas bíblicas nasceu a prática de retratar o Espírito dessa maneira em uma variedade de formas de arte, desde candidatos à confirmação fazendo pôsteres e faixas adornadas com pombas brancas e chamas flutuantes de fogo até a famosa representação em vitral de uma pomba atrás o santuário na Basílica de São Pedro em Roma.

Apesar da aparente hegemonia dos pássaros e das chamas, uma ampla gama de metáforas foi usada para o Espírito Santo ao longo dos séculos cristãos. Uma vez que não há reivindicação doutrinária sobre como exatamente o Espírito deve ser representado, os cristãos têm ampla margem de manobra para recorrer à experiência e às imagens para ajudá-los a atender, pensar e orar ao Espírito Santo.

Essa variedade se reflete nas várias metáforas usadas por alguns dos santos e místicos mais famosos do cristianismo. Em seu excelente estudo, Holy Power, Holy Presence : Rediscovering Medieval Metaphors for the Holy Spirit, a teóloga histórica Elizabeth Dreyer examina alguns dos clássicos medievais.

Por exemplo, somos lembrados da metáfora profundamente encarnada e física de São Bernardo de Clairvaux do Espírito Santo como beijo; a descrição de São Boaventura do Espírito como água corrente, como transformador dos afetos e da abundância divina; e a imagem do Espírito de Santa Catarina de Siena como misericórdia e garçom. Esta segunda imagem de Catarina é particularmente comovente. Ela imagina a Santíssima Trindade como ‘mesa, comida e garçom’, na qual o Espírito é quem nos serve a Palavra que é nossa comida – uma grande imagem eucarística.

Uma das dádivas do estudo de Dreyer é que ajuda a abrir nossa imaginação e as maneiras pelas quais o Espírito Santo se revela a nós em nossos vários contextos. Uma das minhas metáforas favoritas para o Espírito Santo é a de um músico. Encontramos isso expresso pela grande mística e compositora Hildegard de Bingen. Em seu ‘Hino ao Espírito Santo’, ela escreve :

Louvor a você

Espírito de fogo!

Para você, todo o som da lira

e a trombeta.

Sua música define nossas mentes

em chamas! A força de nossas almas

espera sua vinda

na tenda da comunidade.

Além disso, em uma de suas cartas a uma prioresa beneditina, Hildegard imagina o céu como ‘uma sinfonia do Espírito Santo’, capturando ainda mais a musicalidade do movimento dinâmico de Deus como Espírito.

Eu amo esta imagem. Como alguém que é reconhecidamente um músico bastante medíocre que tocou em ambientes litúrgicos como acompanhante ou membro de um conjunto, tenho uma apreciação básica da maneira como a música funciona não apenas como entretenimento, mas também como oração.

Para quem sabe tocar um instrumento e tem o privilégio de tocar em banda, orquestra ou algum outro grupo, também conhece a sensação de estar conectado a outras pessoas de formas que transcendem a descrição e que só podem ser vivenciadas. Isso é especialmente verdadeiro quando os músicos improvisam juntos.

Sim, existem estruturas fundamentais como tempo, andamento, métrica e tom que fornecem uma paisagem dentro da qual a exploração e a expressão podem ocorrer, mas em tais configurações muitas vezes não há partituras estritamente escritas, melodias predeterminadas ou acordes prescritos que o solista deve seguir durante sua execução e o tempo improvisando contra e com o pano de fundo dos outros músicos que seguram a base. Mesmo saber quando a vez de alguém como solista começou ou terminou é mais frequentemente sentido do que explicitamente planejado.

Não é preciso ser um músico formado ou mesmo amador para apreciar o poder criativo e o dinamismo dessa música executada em grupo. Você não precisa conhecer teoria musical ou os detalhes técnicos da execução musical para desfrutar e se emocionar e se emocionar espiritualmente. Há algo profundo na profundidade da conexão que é compartilhada entre improvisadores musicais e o público ouvinte que é atraído pela beleza da música ao vivo que se desenrola diante deles e ao seu redor.

O que une os músicos nessa experiência pré-verbal, não planejada, criativa e dinâmica da co-criação divina? Como algo tão original e harmonioso é possível em tempo real?

Lembro-me de estar em um clube de jazz em Boston com um amigo cerca de uma década atrás. O espaço da performance era pequeno, com poucos lugares sentados e a proximidade do palco reforçava a sensação de intimidade musical vivida por todos ali reunidos. Como costuma acontecer em clubes de jazz, o trio ou quarteto (ou, em alguns casos raros, conjuntos maiores) executa uma variedade de peças clássicas e originais, cada uma das quais normalmente inclui tempo para improvisação.

Algumas peças da performance, durante uma série particularmente comovente de solos instrumentais, lembro-me de me virar para meu amigo e dizer : ‘É assim que o Espírito Santo parece!’

Foi uma resposta improvisada de apreciação e admiração pelo que esse pequeno grupo de músicos talentosos foi capaz de tornar possível. Cada instrumentista era extraordinariamente talentoso e, ainda assim, a experiência total de sua colaboração musical excedia a soma de suas partes. Foi inspirado e inspirador, uma experiência de transcendência.

Por mais extemporâneo que tenha sido meu comentário, passei anos refletindo sobre sua veracidade. Toda vez que vou a um clube de jazz, seja em Boston, Chicago ou Indianápolis, essa mesma exclamação inevitavelmente me vem à mente. O que une os músicos nessa experiência pré-verbal, não planejada, criativa e dinâmica da co-criação divina? Como algo tão original e harmonioso é possível em tempo real? De fato, é o Espírito Santo.

Quando penso no Espírito Santo, penso naquela conexão invisível entre músicos improvisadores, que experimentei em primeira mão ao longo dos anos como pianista e percussionista, mas também experimentei como membro da plateia testemunhando o nascimento de um momento original de criação musical que não pode ser previsto e não é controlado individualmente.

É assim que o Espírito trabalha. Movendo-se de forma imprevisível, criativa, vigorosa, o Espírito Santo é de fato o ‘doador da vida’, mas é também aquele que, como nos lembra a Lumen Gentium, torna possível o fato de que ‘todos os fiéis, embora dispersos pelo mundo, estão em comunhão uns com os outros.’

A comunhão que o Espírito torna possível é muitas vezes difícil de entender. Como a imprecisão tipicamente associada ao Espírito Santo que resultou em metáforas tão limitadas (e limitantes) como pássaros e fogo, que estamos todos unidos uns aos outros e Cristo por meio do batismo e do Espírito é difícil de conceituar. Isto é, a menos que você considere a forma como os músicos de jazz estão em comunhão uns com os outros.

Enquanto continuo a pensar no Espírito Santo como jazz, me pego refletindo sobre como é difícil para algumas pessoas aceitar a existência prática e a presença do Espírito Santo em nossas vidas e no mundo.

Para ser um bom músico de jazz, você deve estar aberto para onde a música e seus companheiros de banda o levarem. Você conhece a estrutura, mas não os detalhes. Você não pode controlar a experiência nem predeterminar cada detalhe.

E para aqueles que são obcecados por controle e segurança, a ideia de Deus como Espírito, que se move onde quer, é ameaçadora ou pelo menos desconcertante. Para essas pessoas, a tentação do ‘ateísmo do Espírito Santo’ é grande.

Então, da próxima vez que você ouvir música ao vivo ou tocar com seus amigos ou colegas de banda, pergunte-se qual é a condição da possibilidade de tal experiência em primeiro lugar. Talvez então você possa se consolar ao lembrar da presença criativa de Deus entre vocês e na criação. Esta é a presença do Espírito Santo como jazz.’

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticias/?id=1600929

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