Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo do Padre Alfredo J. Gonçalves, CS,
vice-presidente do Serviço de
Proteção ao Migrante (SPM)
‘Um ano de pandemia. Um ano de intenso
combate a esse inimigo silencioso, invisível e letal. Um ano em que um exército
inumerável de profissionais de saúde teve que tomar decisões que deixaram esses
soldados, a si próprios, com feridas abertas talvez para o resto de suas vidas.
Um ano de convívio diário e impactante com o fim trágico de parentes e amigos.
Um ano marcado por mais de 300 mil vítimas fatais. No fundo, uma batalha tão
mortífera como poucas o têm sido ao longo da história humana.
Silêncio de uma ausência, de um espaço
vazio, de um vácuo sem fundo, de um nome e de um rosto que para sempre
partiram, de uma história brutal e precocemente interrompida. Silêncio
dolorosamente estridente, quase ensurdecedor, como nos faz recordar a canção em
homenagem a Jacob do Bandolim, composta pelo poeta Sérgio Bittencourt e
imortalizada na voz de Nelson Gonçalves: ‘Naquela mesa ele sentava sempre / E
me dizia sempre o que é viver melhor / Naquela mesa ele contava histórias / Que
hoje na memória eu guardo e sei de cor / Naquela mesa ele juntava gente / E
contava contente o que fez de manhã / E nos seus olhos era tanto brilho / Que
mais que seu filho / Eu fiquei seu fã /Eu não sabia que doía tanto / Uma mesa
num canto, uma casa e um jardim / Se eu soubesse o quanto dói a vida / Essa dor
tão doída não doía assim / Agora resta uma mesa na sala /E hoje ninguém mais
fala do seu bandolim / Naquela mesa 'tá faltando ele / E a saudade dele 'tá
doendo em mim’.
Passado mais de um ano desde que o
novo coronavírus desembarcou em território brasileiro, quantas ‘casas e
jardins’ desertos, quantas ‘mesas num canto’, quantos sofás órfãos
na sala, quantos ‘bandolins’ abandonados, quanta dor ‘tão doída’,
quantas saudades sem fim? E que falta fazem aquelas histórias contadas e
recontadas na roda íntima da família – gratuitamente, sabiamente, calorosamente
– sobretudo quando restou apenas o eco sombrio e desolado das palavras
silenciadas! Por que se apagou a luz e o brilho que ‘nos seus olhos era
tanto’, deixando espalhadas ao vento as cinzas invisíveis de uma
catástrofe? É como se até mesmo a memória se desvanecesse com a separação do
ente querido. Nem sequer tivemos o conforto de contar com um velório decente e
uma despedida digna. Partiu solitário, dividindo a tristeza e a solidão com os membros
da família enlutada e destroçada.
Um golpe mortal os separou para sempre, povoando os cemitérios com
os cenários mais macabros
Guerra que mata e mutila de forma
aleatória e descontrolada, mas em particular abrevia a vida de não poucos
anciãos ou enfermos mais vulneráveis. Assim se foram Fulano, Sicrano, Beltrano
– nomes que simbolizam a tantos que riram, choraram, trabalharam, lutaram e
sonharam nos mesmos caminhos que juntos trilhamos, mas que perderam o combate
para o Covid-19. Assim permaneceram as famílias a quem os falecidos pertenciam.
Um golpe mortal os separou para sempre, povoando os cemitérios com os cenários
mais macabros, onde reina o silêncio retumbante dos enterrados.
Junto a esse silêncio – de ausência,
vazio e solidão – cresce também uma voz surda e muda, mas nem por isso menos
crítica e consciente do desgoverno das autoridades brasileiras. Desgoverno que
não se refere somente à área da saúde. Ao contrário, reflete-se no desmonte
sistemático e não raro irreversível de políticas públicas construídas a custo
nas últimas décadas. Nesse desmonte, não seria difícil elencar, por exemplo, a
questão do meio ambiente, das relações exteriores, da segurança dos cidadãos,
da educação básica e superior, da ciência, cultura e pesquisa. Daí a ira viva,
ativa e subterrânea que vai estendendo suas raízes pelo tecido esgarçado de uma
sociedade dividida e fragmentada. Parafraseando o escritor estadunidense John
Steinbeck, prêmio Nobel da literatura (1962), na escuridão úmida do solo, a
revolta faz florescer e amadurecer com força ‘as vinhas da ira’, prontas
para a vindima. Não importa quando virá a colheita, mas lentamente os brotos
vão rebentando e se abrindo para o ar livre, o céu azul e a luz do sol.
Se é verdade que as derradeiras
décadas do século XX representaram uma época de colheita, e se é verdade que
uma geração dificilmente é premiada com mais de uma safra, também é certo que a
semeadura prossegue laboriosa e conscientemente.’
Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/periscopio/2308/2021/03/o-silencio-dos-enterrados/
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