Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo
de Miguel Oliveira Panão,
professor
‘Qual o contributo do discurso
teológico para a compreensão do momento de pandemia que vivemos? Nem sempre é
fácil ler um discurso teológico por conter traços filosóficos. E a beleza da
liguagem da filosofia está em alguma da sua complexidade. Talvez por isso,
sintamos que o discurso teológico elaborado filosoficamente pretende ajudar-nos
a pensar estes difíceis tempos, mas não consegue. E daí a dúvida : haverá lugar
para o discurso teológico num mundo profundamente afetado por um evento
biológico?
Ao ler o excelente artigo de João Paulo Costa, presbítero da Arquidiocese de Braga, fiquei
intrigado com uma passagem que faz do filósofo germano-coreano Byung-Chul Han
no seu livro ‘A Sociedade Paliativa’, por espelhar o modo como vi alguns
amigos cristãos a enfrentar esta pandemia. Isto é, com um olhar mais
reducionista que se recusa a aceitar o fato de não vivermos mais no mundo antes
da Covid-19, e de que, talvez, isso não seja mau de todo.
Byung-Chul Han começa por dizer na
passagem que me intrigou que «Em face da pandemia, a sociedade da
sobrevivência proíbe serviços religiosos mesmo na Páscoa. Os padres também
praticam o ‘distanciamento social’ e usam máscaras. Sacrificam totalmente a
crença à sobrevivência sanitária. Paradoxalmente, o amor do próximo
manifesta-se como distanciamento. O próximo é um portador de vírus potencial. A
virologia desautoriza a teologia. Todos estão atentos ao que dizem os
virologistas, que alcançam uma supremacia de exegese absoluta. A narrativa da
ressurreição cede por completo o passo à ideologia da saúde e da
sobrevivência.»
A crença sacrificada, e a
desautorização da teologia, causadas por um acontecimento virológico, são uma
visão reduzida do interlaçar entre a física e a metafísica que fazem parte do
viver humano. Reconhecendo os efeitos que a pandemia teve sobre os ritmos da
nossa vida espiritual, poderia, antes, dizer, que a sobrevivência sanitária
desafiou a superficialidade da nossa crença, e que a virologia desafia a
complexidade frequente do discurso teológico. Não estou tão certo que o
discurso dos virologistas seja acolhido por nós como uma verdade absoluta que
nos impeça de viver a narrativa da ressurreição. Muito pelo contrário, nunca
como antes essa narrativa foi tão importante para aproximar o infinito do
finito, o incompreensível do vivível, ajudando a procurar sentido naquilo que
parece não ter. A narrativa da ressurreição é uma narrativa de esperança, e não
é a esperança uma fonte de vida?
Na verdade, o discurso teológico é
semelhante ao discurso científico. Por exemplo, se o leitor começar a ler um
artigo sobre os conjuntos de sondas primárias acessíveis para detectar
potenciais variantes do coronavírus SARS-CoV-2 ficará tão desinteressado como
se lesse um artigo teológico sobre a ontologia cristã da dimensão do humanum perante
a visão teodiceica desta pandemia, certo? Porém, os divulgadores de ciência
procuram explicar conceitos científicos complexos com metáforas, ou seja,
imagens de proximidade à experiência de vida quotidiana que uma pessoa sem
formação científica possa entender. Logo, os teólogos e filósofos
poderiam/deveriam fazer o mesmo.
Byung-Chul Han diz ainda que «Perante
o vírus, a fé degenera e transforma-se numa farsa. Ela é substituída por
unidades de cuidados intensivos e por ventiladores. Contam-se os mortos
diariamente. A morte domina por completo a vida e esvazia-se em nome da
sobrevivência. A histeria da sobrevivência torna a vida radicalmente
transitória. Ela é reduzida a um processo biológico, que precisa de ser otimizado.
Perde toda a dimensão meta-física […]. A vida é despojada de qualquer narrativa
com sentido. Ela deixa de ser narrável e passa a ser mensurável e contável.»
E, por este motivo, proliferam no
mundo cristão as ideias de que não há pandemia, de reserva em relação à vacina,
e que as máscaras não protegem, logo, por que razão as devemos usar ou
prescindir das celebrações? A fé só degenera se estiver assente em solo
infértil e equivocado. Não me parece que os cuidados intensivos, e os
ventiladores, sejam imagem do domínio da morte, mas, pelo contrário, do domínio
da vida por representarem o esforço de salvar as pessoas dos efeitos sérios e
graves desta pandemia. A vida é, realmente, transitória, mas não se
reduz a essa condição. A vida, em todas as suas fases, está orientada para a
ressurreição. E a ligação entre a vida da materialidade e da eternidade faz-se
na profundidade.
Medir e contar é, para um cientista, a
base para a compreensão dos fenômenos físicos, mas não é o fim último da sua
investigação. Por isso, a contagem dos infectados e dos que morrem pode,
também, servir de base para a procura de uma vida mais profunda e enraizada num
Ideal que não passa : Deus.
A única coisa que gostaria de ver
presente num discurso teológico, vai para além da compreensão de Deus, mas, com
um tom de divulgação teológica (à semelhança da científica), através de imagens
e testemunhos, inspirar a vida quotidiana a fazer de cada momento, um momento
de Deus.’
Fonte : *Artigo na íntegra https://www.combonianos.pt/alem-mar/opiniao/4/479/ha-lugar-para-o-discurso-teologico-perante-tanto-discurso-virologico/
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