sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Inquisição: um guia para estudá-la

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

 'Cena de uma Inquisição', de Francisco Goya

'Cena de uma Inquisição', de Francisco Goya


*Artigo de Mirticeli Dias de Medeiros,

jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras

credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé

 

‘Muitos querem saber por onde começar para estudar a Inquisição. Um tema espinhoso que requer o máximo de atenção na hora de destrinchá-lo. O famoso tribunal, que perseguiu hereges por mais de 600 anos, possui várias nuances relativas a seu processo de estruturação.

Por isso, farei uma análise sobre os erros que frequentemente cometemos ao pesquisar sobre o assunto e como criar um percurso para compreendermos melhor a questão.

A Inquisição surge na Idade Média, não no Renascimento

Este é o ponto de partida do nosso estudo : traçar uma linha do tempo para individuar cada fase da Inquisição. Os tribunais medievais possuem um método; os do Renascimento, outro. Apesar de historiadores divergirem em reconhecer o Renascimento como um período histórico, nós, historiadores eclesiásticos, reconhecemo-lo como tal. E ampliamos seus efeitos, geralmente associados somente à filosofia e à arte.

Não pensem que, no século 12 – quando foi oficialmente instituída a Santa Inquisição –, existiam o Santo Ofício ou os tribunais monárquicos. Nem afirmar que, em seus primeiros anos, a Inquisição operava ‘universalmente’. Era algo mais restrito às dioceses.

É por isso que alguns historiadores chamam esta primeira fase (1184 – 1231) de ‘inquisição episcopal’, uma vez que ficava a cargo do bispo presidir os processos, não de um inquisidor nomeado pelo pontífice romano. Em 1199, a heresia – até então, um desvio de caráter religioso – passa a ser considerada um crimen lesae majestatis, ou seja, um crime de natureza pública. A partir de então, defender o ordenamento eclesial significa defender o ordenamento civil.

O papa Lúcio III, através da bula Ad abolendam (1184), ordenou que os bispos fizessem uma espécie de ‘censo’ para identificar os focos de heresia em seus respectivos territórios, como mostra este trecho do documento :

Qualquer bispo ou arcebispo, sozinho ou através de pessoas idôneas e honestas, uma ou duas vezes ao ano, façam inspeções nas paróquias nas quais se suspeita que existam hereges; e obrigue três ou mais pessoas de boa fama, ou, se necessário, toda a comunidade, as quais, sob juramento, indiquem ao bispo ou ao arquidiácono (vigário do bispo) se conhecem algum herege, alguém que celebre reuniões secretas, se isole da vida, dos costumes ou das práticas comuns aos fiéis’.

Em 1231, o papa Gregório IX ordena que os delegados pontifícios (representantes do papa) se tornem os inquisidores permanentes. Quatro anos depois, a função passa a ser desempenhada pelos dominicanos. Mais à frente, em 1246, os franciscanos entram para o time de inquisidores.

Vale salientar que, até o século 14, a intenção era combater a heresia ‘prática’ ou publicamente manifestada, não os questionamentos restritos ao debate teológico. Na idade média, o surgimento de movimentos heréticos eram vistos como uma ameaça aos planos de universalização da Igreja romana.

Já nesta fase, os culpados começaram a ser encaminhados ao ‘braço secular’ para aplicação de penas mais rígidas. A práxis seguia a determinação da Igreja que impedia os clérigos de praticarem a ‘violência cruenta’, ou seja, de condenar alguém à morte diretamente.

Um livro bastante interessante, que elenca as principais características dessa primeira fase da Inquisição, foi escrito pelo historiador italiano Grado Giovanni Merlo, da Universidade de Milão : Inquisidores e Inquisição na Idade Média.

E as bruxas?

Sim, elas foram perseguidas e condenadas, mas não foram o foco principal da Inquisição. Essa ideia de que os tribunais, em todas as suas fases, se concentraram numa frenética caça às bruxas se deve, em parte, a uma visão reduzida de seu papel enquanto sistema repressão.

De acordo com dados levantados pelo livro Witchcraft and magic in Europe (Bruxaria e magia na Europa) 40 mil pessoas – e não milhões, como dizem!  –, foram queimadas vivas após terem sido acusadas de pacto com o diabo. A Igreja Católica amplia o número de condenações à fogueira para 104 mil, dentre as quais, segundo levantamento feito em 2004, 100 contaram com sua participação na promulgação do veredito.

Muitas dessas pessoas sequer praticavam o ocultismo, mas eram simples camponeses que propagavam algum tipo de superstição popular ou curandeirismos, como muitas das nossas avós hoje em dia.

O auge da perseguição acontece entre os séculos 15 e 17. Um dos maiores especialistas no assunto, o historiador Brian Levack, diz que ‘a descoberta e a eliminação das bruxas – da denúncia à punição – se desenvolvia em âmbito jurídico’ para conter as tensões sociais, não somente para combater a heresia.

A fase mais famosa da Inquisição

A Inquisição Espanhola, a mais sanguinária de todas, não estava sob a jurisdição direta da Santa Sé, ao contrário do que se pensa. Apesar de o papa Sisto IV ter autorizado seu funcionamento a pedido de Isabel de Castela e Fernando II de Aragão, em 1478, era um tribunal autônomo. Ele foi instalado inicialmente em algumas cidades do reino de Castela, e não dependia do aval da Igreja para a execução de seus processos. Os reis podiam nomear seus próprios inquisidores, inclusive.

O papa chegou a denunciar os excessos deste tribunal, mas acabou não fazendo nada para conter sua expansão devido às pressões de Fernando de Aragão. O monarca ameaçou retirar o apoio militar à Igreja caso a bula para a criação de tribunais em outros territórios da coroa não fosse promulgada. Após esse embate, o rei acabou conseguindo o que queria, em 1483.

A intenção do casal de monarcas era atacar as minorias étnicas e religiosas (muçulmanos e judeus), vistas como empecilho em meio ao processo de coesão nacional. Os soberanos foram responsáveis pela conclusão da Reconquista, movimento que pôs um fim ao domínio muçulmano no território. A unificação dos reinos de Aragão e Castela pôs as bases para a formação da Espanha, enquanto reino unificado. Um dos maiores especialistas em Inquisição Espanhola da atualidade é o historiador Henry Kamen. Vale a pena explorar o tema com ele.

Em 1530, o papa também autorizou a criação da Inquisição Portuguesa, cuja linha de atuação era muito parecida com a Espanhola. Também posta sob a autoridade direta do rei, este tribunal nomeava seus inquisidores e também perseguia ‘falsos convertidos’, ou seja, judeus que, apesar de se professarem cristãos, praticavam a religião de origem em segredo. O tribunal português também atuou no Brasil, na Índia e em Cabo Verde. Sobre este tribunal, o historiador português José Pedro Paiva, pesquisador da Universidade de Coimbra, lançou uma obra chamada História da Inquisição Portuguesa, e é uma das maiores autoridades no assunto.

A Inquisição Romana

A Sagrada Congregação do Santo Ofício, ou Inquisição Romana, propriamente dita, foi instituída por Paulo III em 1542, com o objetivo de conter ‘a ameaça protestante’. Foi o tribunal que assumiu, diretamente, a manutenção da ordem no processo da Contrarreforma.

Segundo fontes oficiais, foi uma das menos sanguinárias. Os registros apontam que somente 50 pessoas foram encaminhadas ‘ao braço secular’ para a aplicação da pena de morte, em meados do século 17. Após esta fase, o tribunal se restringiu sobretudo às publicações, proibindo a propagação de textos que não se alinhavam à doutrina católica. O historiador John Tedeschi publicou as maiores obras de referência relacionadas à Inquisição Romana.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1465475/2020/08/inquisicao-um-guia-para-estuda-la/

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