Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo
de Daniel P. Horan,
professor
‘Uma
das melhores definições de heresia que ouvi ao longo dos anos é a descrição da
experiência de confundir parte da verdade com toda a verdade em uma questão de
fé ou de doutrina. Essa descrição revela claramente o que há de tão atraente
nas heresias e por que tantos cristãos inevitavelmente se apaixonam por elas.
As heresias são sempre parcialmente corretas, mas na ausência de perspectivas,
de reflexão e das complexidades necessárias que a teologia cristã requer, um
herege inconscientemente falha em aceitar a totalidade da posição ortodoxa.
A
maioria das heresias cristãs clássicas condenadas pelos concílios da Igreja
seguem esse tipo de padrão. Em cada caso, cristãos bem-intencionados e fiéis
debatem a definição de crenças, procurando entender melhor sua fé.
Eventualmente, alguns campos ideológicos se formam e a história revela que
muitas vezes é o lado ultra simplificado e reducionista aquele que cai no erro.
O pelagianismo é
herético não porque entende de maneira errada a liberdade humana, mas porque
falha em considerar adequadamente a realidade e a consequência do pecado
original que afeta de forma perniciosa o exercício da liberdade humana. Várias
formas de gnosticismo são heréticas, não porque a fé cristã não tem nada a ver
com o intelecto ou com o conhecimento, mas porque falham em reconhecer que o
cristianismo autêntico não é redutível ao conhecimento – muito menos ao ‘conhecimento
secreto’ reservado para poucos escolhidos – e em reconhecer que o mundo
criado é realmente bom e foi amorosamente trazido à existência pelo único Deus.
Como
o papa Francisco observou no segundo capítulo de sua exortação apostólica Gaudete
et Exsultate, ‘sobre o chamado à santidade no mundo de hoje’, os
fantasmas do pelagianismo e do gnosticismo continuam
assombrando a Igreja hoje, embora de formas renovadas. Mas mesmo sem os rótulos
de erros antigos, a predisposição geral e o desejo subjacente de simplicidade,
de um enquadramento binário e de um pensamento em preto e branco, continua
ameaçando a crença ortodoxa para os cristãos modernos.
É
compreensível que as pessoas ao longo da história tenham buscado respostas
fáceis e estruturas simples em um esforço para dar sentido a um mundo em
mudança e, às vezes, inexplicável. Especialmente durante períodos de
turbulência e adaptação social e cultural acelerada, muitas pessoas olham para
a religião como uma âncora de significado e uma fonte de segurança. E, de fato,
deveriam.
O
princípio mais central do cristianismo é que Deus amou o mundo de tal maneira
que se encarnou nesse mundo como um de nós para revelar totalmente quem ele é e
quem somos nós. Essa crença fundamental sobre o amor incompreensivelmente
generoso e incondicional de Deus deve ser reconfortante e fonte de sentido.
O
problema não está na atração pela religião em geral e pelo cristianismo em
particular como âncora no mar tempestuoso da modernidade. A questão é que
muitas pessoas remodelam o Cristianismo – seus ensinamentos doutrinários e
orientação moral – em ídolos de sua própria criação, a fim de compreender uma
mensagem equivocadamente simples e falsamente clara.
Normalmente,
essas pessoas caem involuntariamente em uma espécie de heresia porque se
apropriam de ideias, proposições, perspectivas e elementos da fé cristã apenas
em parte e só na medida em que atende a sua visão de mundo, em uma tentativa de
amenizar sua ansiedade sobre as complexidades da vida. Ironicamente, esses
hereges desconhecidos pretendem ser ‘tradicionais’ ou ‘ortodoxos’,
promovendo uma linha absolutista de sua visão de mundo proposicional à sua
conveniência e que, por sua vez, rejeita a ampla gama de perspectivas cristãs
legítimas e o desenvolvimento da doutrina.
Podemos
ver isso em muitas discussões contemporâneas sobre a fé e a moral cristã.
Vemos
isso na maneira como alguns católicos ficam obcecados com a presença real de
Cristo na Eucaristia, mas com exclusão das três outras maneiras como a Igreja
ensina que Cristo se torna presente na celebração da liturgia. E como as
espécies eucarísticas de pão e vinho consagrados se tornam as armas em batalhas
sectárias, em vez de representarem o meio pelo qual a verdadeira presença
sacramental de Cristo é comunicada à Igreja, que também é o corpo de Cristo.
Vemos
isso na forma como alguns católicos reduzem os ricos e matizados ensinamentos
morais da Igreja para se concentrar exclusivamente no aborto, excluindo outros
pecados sociais igualmente graves ou maiores, como pena de morte, tortura,
desigualdade econômica, eutanásia, injustiça racial, entre outros. E como esse
reducionismo distorcido focado em uma questão única é implantado contra aqueles
que são percebidos como inimigos políticos.
Vemos
isso na maneira como alguns católicos tratam a Sagrada Escritura com zelo
fundamentalista, alegando que certas coisas são imutáveis ou pelo menos
incontestáveis de acordo com sua hermenêutica biblicista, apesar da proibição
clara da Igreja Católica de uma interpretação literal das Escrituras. A
Escritura deve ser interpretada, contextualizada e compreendida por seu público
em seu próprio tempo e contexto, a fim de compreender como o Espírito Santo
fala conosco em nosso tempo.
A
verdade é que o Cristianismo não é uma religião para aqueles que buscam
respostas fáceis ou pensamento em preto e branco. Enquanto esse falso
cristianismo promove abordagens ‘absolutas’ da fé e da moral, o
verdadeiro cristianismo sempre foi uma tradição do ‘tanto quanto’. A
encarnação não pode ser reduzida nem à divindade nem à humanidade, mas sempre a
Deus e ao homem. A tradição moral também não pode ser reduzida à preocupação
com uma questão de vida, mas ela só faz sentido na promoção de uma ética de
vida consistente que inclua todas as populações.
Enquanto
a temporada política deste ano nos Estados Unidos se encaminha para a reta
final, antes de uma histórica eleição presidencial, durante uma pandemia global
histórica, muitos debates públicos e comentários sobre o que constitui o
catolicismo ‘genuíno’ ou ‘verdadeiro’ ou ‘ortodoxo’ têm e
continuarão afetando o palco a nível nacional. Com o ex-vice-presidente Joe
Biden, católico devoto, como candidato democrata à presidência, essas
discussões e debates estão fadados a se tornarem mais acalorados e
contenciosos, à medida que os políticos procuram aproveitar um cristianismo
simplificado demais para promoverem seus objetivos eleitorais.
Já
vimos como alguns clérigos guerreiros da cultura, incluindo bispos, rejeitaram
a catolicidade de Biden de acordo com esse tipo de lógica. A ideia é que, por
causa da filiação a partidos políticos ou apoio legislativo para políticas em
conflito com o ensino católico (uma realidade que afeta igualmente as
plataformas republicana e democrática, nenhuma das quais está totalmente
alinhada com o ensino da Igreja), um cristão católico individual é
indevidamente demitido ou rejeitado como ilegitimamente ou insuficientemente
católico. A heresia aqui é a redução do Cristianismo a uma única questão –
geralmente uma questão de preferência ou escolha pessoal de alguém – como o
único padrão para julgamento sem qualquer consideração necessária de avaliação
prudente ou consciente.
Mas
também é importante perceber que aquilo que começa como heresia na fé leva à
hipocrisia em ação. Esses guerreiros culturais que pintam o cristianismo em
geral e o catolicismo em particular como redutíveis a uma única questão não
consideram a si próprios ou seus partidos políticos e líderes preferidos com os
mesmos padrões. Lembro-me de Jesus dizendo algo sobre esse tipo de
comportamento em relação ao cisco e traves no olho (Mateus 7,5). O que os
reducionistas proclamam como ortodoxia é, na verdade, uma heresia, porque é
apenas uma parte de todo o quadro; o que eles fazem na prática é na verdade
hipocrisia, porque são culpados das mesmas coisas que acusam dos outros em
termos de heterodoxia.
A
maneira de evitar cair nesse tipo de heresia involuntária é evitar simplificar
demais o Cristianismo e aceitar a tradição maravilhosamente diversa e
maravilhosamente complexa que nos foi transmitida. Pode ser desconcertante para
alguns que a doutrina não pode ser justificadamente reduzida a afirmações
proposicionais ou que as Escrituras nem sempre podem ser lidas meramente pelo
seu valor literal ou que dilemas morais não podem ser resolvidos pela
memorização de uma lista de regras.
No
entanto, vamos nos confortar no fato de que o Espírito Santo está vivo e ativo
no desenvolvimento da doutrina, na interpretação da Escritura e na formação de
nossas consciências. Abraçar esta verdade fundamental sobre a complexidade e
alcance inevitáveis da tradição é o início de uma fé cristã autêntica e madura.’
Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1467228/2020/08/a-heresia-do-cristianismo-simplista-e-simplificado/
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