Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo de Susana Vilas
Boas, LMC
‘Certo dia, enquanto passeava pela cidade, vi numa parede pintada
a seguinte frase : «As árvores não comem os próprios frutos, os rios não
bebem as próprias águas. A riqueza dos dons é sempre para benefício dos outros.»
Desconheço o autor do grafite e o autor da frase. Contudo, esta tem sido usada
variadíssimas vezes pelo Papa Francisco. Coincidência ou não, esta frase – seja
ela originariamente pensada num sentido cristão ou não – remete-me para uma
reflexão mais profunda sobre a vocação : desde o início do discernimento
vocacional até à sua vivência quotidiana.
Muitas vezes, somos tentados
a olhar para a nossa vida, presente e futura, apenas numa perspectiva pessoal,
quase independente do mundo à nossa volta, num maranhado de frases/perguntas
onde o ‘eu’ se encontra sempre no centro : «O que eu quero fazer com
a minha vida?»; «Que futuro é que eu quero para mim?»; «Eu
quero ser feliz!»; «Eu quero realizar-me». Nada há de errado no
desejo pessoal de felicidade e auto-realização, o problema surge quando, pouco
a pouco, à força de repetirmos estas frases e de as pensarmos/sentirmos tão
centradas no ‘eu’, começamos a pensar a vocação e a vida de um ponto de
vista egoísta, como se fosse possível viver plenamente sem que isso constitua,
por um lado, um esforço pessoal e, por outro lado, um dom para os outros. Ao
querermos ser os primeiros beneficiários dos dons da nossa vocação, partimos,
mesmo sem nos darmos conta, para o discernimento vocacional já tendo em vista
vocações que nos possam ‘satisfazer’, numa perspectiva autocentrada que
nos faz olhar a vocação como ‘uma loteria’ que vamos ganhar, e não como
um dom que recebido nos coloca ao serviço em favor da humanidade que nos
rodeia.
A missionariedade como
distintivo cristão
O Papa Francisco alerta para
esta problemática, não deixando, porém, de advertir que a vivência vocacional
também não pode ser entendida como um estandarte que elevamos para que todos
vejam e usufruam. Ela – enquanto vivência do Evangelho – é como uma brisa
suave que, de um modo discreto, acaricia, refresca, acalma, à sua
passagem. A sua ação não é nem exibida nem autocentrada, é discreta, mas atuante.
Por isso mesmo, o papa recorda as palavras de Santo Alberto Hurtado, que
afirmava que «ser apóstolo não significa usar um distintivo na lapela do casaco;
não significa falar da verdade, mas vivê-la, encarnar-se nela. [...] O
Evangelho [...], mais do que uma lição, é um exemplo. A mensagem transformada
em vida vivida» (Cristo Vive, n.º 175).
Como no grafite que
encontrei, em que os dons implicam esforço, generosidade e renúncia (a árvore
tem de ser fecunda, tem de dar fruto e tem de renunciar a eles para que outros
deles beneficiem, se fortaleçam e, por sua vez, também frutifiquem para
outros), na vocação a dimensão missionária está sempre presente. Aliás, se
pensarmos bem, como seria uma vida plena se fôssemos completamente isolados do
mundo que nos rodeia? Que felicidade, se só vivêssemos para nós mesmos? Todos
temos experiências de boas notícias – um bom resultado num exame, a entrada
para a faculdade, uma oferta ou uma boa apreciação de alguém que não
contávamos, etc. – e, o que desejamos fazer – o que fazemos, de fato – quando
isto acontece? Ficamos a deliciar-nos sozinhos com o momento? Não! Telefonamos
logo a alguém a contar o sucedido. Muitas vezes, nem aguentamos conter a
alegria até chegar presencialmente junto dos nossos amigos ou familiares para
partilhar a alegria que estamos a sentir. Quão triste seria não ter ninguém com
quem o fazer! Quão redutor da nossa felicidade seria constatar a nossa solidão
nestes momentos! Com a vocação acontece o mesmo. Ela é algo maior do que nós e,
à medida que vamos vivendo a sua realização (desde o próprio discernimento),
ela vai crescendo e ‘saindo-nos do peito’, numa alegria e num desafio
maior do que nós mesmos, tornando-se aí, necessariamente, missionária e dom
para os outros. Ela deixa de ser prêmio, para converter-se em alegre serviço –
dom verdadeiro – para todos os que amamos, para os que nos rodeiam e até para
aqueles que nem conhecemos pessoalmente.
A vocação para lá do
próprio umbigo
O ideal de uma felicidade
fácil que, muitas vezes, a sociedade, os meios de comunicação social e mesmo o
nosso círculo de amigos, parecem querer ‘vender’, está longe de ser
possível. A virtualização da felicidade leva-nos a um afunilamento e redução
drástica da existência e do próprio sentido da vida. Se pensarmos bem, por
exemplo, nos grandes nomes da História, naqueles que são para nós exemplos de
vida, verificamos que estas são pessoas que abdicaram de muito, renunciaram a
muito e só na medida em que viveram em coerência com a sua vocação e na dádiva
dos dons que foram frutificando nas suas vidas, é que marcaram a diferença, é
que se realizaram e, consequentemente, é que transformaram o mundo de maneira
que, até hoje, o mundo não deixa de recordar os seus nomes. Claro que não temos
de ‘ficar todos para a História’, mas podemos negar-nos a fazer parte
dela?
Certamente que pessoas como
Daniel Comboni, ou o próprio Jesus Cristo, continuam a marcar-nos, mas terão
sido as suas vidas fáceis ou vividas de um modo autocentrado? Sabemos bem que
não! Quanta renúncia e a quantos sacrifícios foram sujeitos. Todavia, se
pensamos em vidas vividas em plenitude, estes são nomes que nos vêm logo à
mente. Quando pensamos em vidas coerentes e realizadas, é neles que também
pensamos. Consequentemente, e apesar das tantas provações, dificuldades e
obstáculos que tiveram de travar, estas foram vidas felizes. Não porque foram
vividas no meio de gargalhadas e de muita riqueza financeira, mas porque cada
lágrima, cada dor, cada momento de sofrimento foi vivido por um bem maior (não
para si mesmo, mas em favor de outros) e, no fim de tudo (porque Deus nunca
abandona aqueles que O amam), todos estes momentos dolorosos converteram-se em
triunfo, em alegria e em vida verdadeira. Não seria isso que todos desejamos?
Não será, precisamente, uma vida que, apesar das dificuldades, seja fecunda,
sinal de esperança e geradora de uma alegria maior, aquela que todos ansiamos?
O desafio da vocação,
enquanto impulso missionário
A vida não se compraz com
facilitismos nem com o adiamento da existência. Ela acontece a cada momento e
não podemos fechar os olhos, não podemos enterrar a cabeça na areia como a
avestruz, temos de ousar vivê-la apesar dos nossos medos e anseios mais
egoístas. Há quem fale do ‘amanhã dos jovens de hoje’. Quando se trata
de encarar a vida e a vocação de um ponto de vista cristão, esta frase não faz
sentido. O hoje é o tempo de Deus, o tempo em que Ele age e nos acompanha no
nosso agir. Por isso mesmo, o Papa Francisco não se cansa de nos alertar e
exortar a uma ação no aqui e agora da nossa vida : «Não se pode esperar que
a missão seja fácil e cômoda. [...] Amigos, não espereis pelo dia de amanhã
para colaborar na transformação do mundo com a
vossa energia, audácia e criatividade.
A vossa vida não é ‘entretanto’; vós sois o agora de Deus, que vos quer
fecundos» (Cristo Vive,
n.º 178).’
Fonte :
* Artigo na íntegra
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