É comum buscar em Deus as repostas para uma pandemia, mas é preciso cuidado com as afirmações que fazemos em tempos de crise
*Artigo de Tânia da Silva Mayer,
teóloga
‘A pandemia de Covid-19 isolou as pessoas umas das outras. A interrupção abrupta dos trabalhos e atividades e o confinamento amplamente orientado, não há dúvidas, já nos faz experimentar uma realidade que não estávamos acostumados, porque é realmente nova. E nunca mais seremos as mesmas pessoas depois que o vírus passar deixando à memória os estragos causados por todas as partes.
Enquanto nos refugiamos perplexos em nossas residências – os que as temos – corremos sérios riscos de receber e compartilhar informações equivocadas e falsas que em nada nos ajudam nesse momento de crise. Hoje, há uma infinidade de pessoas empenhadas em explicar a origem do mal que estamos vivendo. Logicamente, em um país que se confessa majoritariamente cristão, tais explicações viajam ao universo bíblico numa tentativa frustrada de comprovar a crise presente com base em narrativas de outras situações e contextos, como se ela tivesse sido prevista em tempos antigos.
Esse movimento, além de colocar o texto bíblico em chave anacrônica, o que por si só é extremamente comprometedor e prejudicial, visto que fora do contexto o texto pode servir de arma para diversas perversidades, ainda provoca um distanciamento dos crentes daquilo que fundamenta e alimenta a experiência do Deus de Jesus Cristo. Ao afirmarem que ‘a pandemia de coronavírus está embasada na bíblia’, muitos a colocam em face dos questionamentos sobre a origem do mal, atribuindo-o, necessariamente, a Deus. Nessa perspectiva, o mal expressa o desejo divino de punir a humanidade por seus muitos pecados. Nesse sentido, Deus não passa de um sádico, que se alegra com o sofrimento humano.
Se olharmos para Jesus, ele que nos abre as cortinas para o mistério divino, fazendo-nos conhecer e experimentar a graça de sermos também amados por Deus, veremos que justificar a pandemia com argumentos bíblicos é uma atitude irresponsável. O que podemos aprender com os textos bíblicos não é tanto sobre a origem do mal, mas o fato de que a humanidade foi concebida numa teia de fragilidade que, de tempos em tempos, a vida é ameaçada por razões externas ou mesmo por outras provocadas pelo próprio ser humano. Ademais, os textos bíblicos também iluminam nossa experiência atual ao nos mostrar que a indiferença perante o sofrimento, a dor e a morte não é a atitude desejável por parte dos crentes.
Por esse motivo, veremos que Jesus sempre se colocou em ação diante das pessoas que sofrem. Precisamente, diz-se do Nazareno que ele agia movido por compaixão e misericórdia, sempre no sentido de restabelecer a ordem na qual todos os sofredores e oprimidos gozassem de vida digna e feliz. Não é preciso ir longe nos exemplos bíblicos, basta-nos lembrar a figura do samaritano compadecido que socorre um homem violentado à beira do caminho, e que serviu de inspiração para a Campanha da Fraternidade deste ano. À luz deste samaritano, compreendemos mais da práxis de Jesus diante do mal que assola as pessoas e que as priva da vida sociorreligiosa do tempo bíblico.
A ação de Jesus é, num primeiro momento, fruto da misericórdia, tal como a do próprio Deus, o pai das misericórdias, que sempre se mostrou envolvido com seu povo nos momentos de tristeza e penúria, a fim de oferecer-lhe a possibilidade de uma vida melhor. Por isso mesmo, os cristãos e as cristãos nunca deixaram de atribuir à Jesus a face amorosa do pastor que cuida de todas as suas ovelhas e as carrega em seus ombros. Nessa esteira, Paulo ensina aos romanos e a todos nós que nada é capaz de nos apartar do amor de Deus, porque fomos reconhecidos em nossas fragilidades no corpo entregue à morte de Jesus e incluídos na dinâmica de vida nova que o Pai concedeu ao Filho na cruz.
Além disso, é preciso também anunciar o amor e misericórdia de Deus que se dispõem a erradicar da realidade o mal e a morte. Por isso mesmo, Jesus não pode ser somente anunciado como aquele que está sempre agindo compassivamente frente aos sofrimentos dos povos. Ao passar fazendo o bem, o Nazareno não deixou de denunciar as instâncias promotoras da dor e das injustiças praticadas sobre muitos. Por essa razão, os poderes religiosos, sociais, políticos e econômicos encontram-se denunciados porquanto fazem perdurar o mal sobre os pequenos e sofredores. Nesse sentido, diante da pandemia que vivemos, a catequese que devemos propagar é precisamente esta que ensina que Deus não quer o nosso mal e nem o nosso sofrimento e que nos dá, por seu amor e sua misericórdia, a esperança pela terra sem males, por um novo céu e uma nova terra, que hão de vir, embora não saibamos quando.’
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