*Artigo
da Rádio Renascença
‘No
dia em que se assinalam cinco anos desde que o autoproclamado Estado Islâmico
(Daesh) atacou e ocupou as comunidades da Planície do Nínive, no Iraque,
forçando 125 mil cristãos a fugir, o arcebispo de Erbil reconhece que o seu
povo pode estar à beira da extinção e aponta o dedo ao Islã.
Numa
entrevista marcada pela franqueza, Bashar Warda fala das preocupações de um
povo que continua a diminuir a olhos vistos, mas que não desiste de dar
testemunho do perdão cristão. O arcebispo pede aos políticos que deixem de
intervir no Médio Oriente sem o compreender e avisa que o Ocidente não está
livre do caos que submergiu o seu país.
Que lições é que
aprenderam após estes cinco anos de perseguição?
De
certa forma é muito libertador para um povo já não ter nada a perder e, desta
posição de claridade e renovada coragem, posso falar em nome do meu povo e
dizer-vos a verdade. Gostaria de dizer que somos um povo que suportou a
perseguição de forma paciente e com fé durante 1,4 mil anos, confrontando uma
luta existencial, a nossa luta final no Iraque. A causa mais imediata foi o
ataque do Estado Islâmico, que levou à deslocação de mais de 125 mil cristãos
das suas terras ancestrais e que nos deixou, numa só noite, sem abrigo e sem
refúgio, sem trabalho e sem propriedades, sem igrejas e sem mosteiros, sem a
capacidade de participar em qualquer das coisas normais da vida que dão
dignidade; visitas familiares, celebrações de casamentos e nascimentos, partilha
de tristezas. Os nossos algozes roubaram-nos o presente enquanto procuravam
apagar a nossa história e destruir o nosso futuro. Esta foi uma situação
excepcional, mas não isolada. Faz parte de um ciclo de violência recorrente no
Médio Oriente com mais de 1,4 mil anos.
Então a invasão do
Daesh foi só a ponta do icebergue?
Com
cada novo ciclo o número de cristãos vai diminuindo, até ao ponto em que
estamos à beira da extinção. Pode-se argumentar o quanto se quiser, mas a
extinção está iminente, e depois o que é que as pessoas vão dizer? Que foi um
desastre natural, ou migração suave? Que os ataques do Estado Islâmico foram
inesperados e que fomos apanhados de surpresa? É isso que dirá a mídia. Ou será
que depois de desaparecermos a verdade virá ao de cima? Que fomos sendo
eliminados de forma persistente ao longo de 1,4 mil anos por um sistema de
crenças que permitiu ciclos de violência recorrentes e regulares contra nós,
como o genocídio otomano de 1916-1922?
Mas durante estes 1,4
mil anos de opressão cristã não houve períodos de tolerância islâmica, em
alternativa à violência e perseguição?
Não
se pode negar que houve períodos de relativa tolerância. No tempo de Al-Rashid
foi fundada em Bagdad a Casa da Sabedoria, a grande biblioteca. Houve um
período de relativa prosperidade em que o conhecimento judaico e cristão era
valorizado e o florescimento da ciência, da matemática e da medicina foi
tornado possível pelos acadêmicos cristãos nestorianos que traduziram textos
gregos, que já eram antigos no século IX.
Os
nossos antepassados cristãos partilharam com os árabes muçulmanos uma tradição
profunda de pensamento e filosofia e entraram em diálogo respeitoso com eles a
partir do século VIII. A ‘Era Dourada Árabe’ foi, como disse o
historiador Philip Jenkins, construída sob o conhecimento caldeu e siríaco.
Conhecimento cristão. A imposição da shari’a (lei islâmica) levou ao declínio
desta grande aprendizagem e ao fim da ‘Era Dourada’ da cultura árabe.
Tinha-se desenvolvido um estilo de diálogo escolástico que só foi possível
porque uma sucessão de califas tolerou as minorias. Quando essa tolerância
terminou, a cultura e a riqueza que dela advinham terminou também.
Diria, então, que a
coexistência é possível e que a tolerância é a chave para o desenvolvimento dos
povos?
Precisamente.
Mas esses momentos de tolerância têm sido uma via de sentido único : os líderes
muçulmanos decidem, com base no seu próprio juízo e vontade, se os cristãos e
outros não-muçulmanos devem ser tolerados e em que grau. Não é, nem nunca foi,
uma questão de igualdade. Fundamentalmente, aos olhos do Islã, os cristãos não
são iguais. Não devemos ser tratados como iguais; apenas podemos ser tolerados
ou não, conforme a intensidade do espírito jihadista prevalecente. Sim, a raiz
de tudo isto são os ensinamentos da jihad, a justificação pelos atos de
violência.
Os cristãos iraquianos
estão regressando às suas aldeias. A situação está melhorando? Como é a vida
para os cristãos e outras minorias?
Existem
ainda grupos extremistas, cada vez mais, que dizem que matar cristãos e yazidis
ajuda a espalhar o Islã. Aderindo rigorosamente ao ensinamento corânico,
atribuem às minorias o estatuto de Dhimmi (cidadãos de segunda), permitindo
assim que lhes seja confiscada a propriedade e tenham de pagar o imposto
islâmico da jizya. Mas vai mais longe. Se fosse um cristão no Iraque ou em
qualquer outra parte do Médio Oriente, jamais aceitaria viver sob a sombra em
que nós vivemos – e debaixo da qual vivemos há séculos. Segundo a Constituição
do meu país somos cidadãos menores, vivemos segundo a vontade dos nossos
autoproclamados superiores. A nossa humanidade não nos dá direitos.
Nos
países ocidentais vocês são iguais perante a lei. O princípio básico da vida
europeia ou americana é uma fundação de ordem cívica cristã, em que somos todos
filhos de um Deus que nos ama, criados à Sua imagem e semelhança, que nos dá a
todos dignidade e nos encoraja a respeitarmo-nos mutuamente. A segurança cívica
nasce de uma visão que dá valor a todos os seres humanos, não pela sua posição
ou função, mas simplesmente porque são humanos. Esta visão tem sido um grande
dom para a tradição judaico-cristã. Reconstruir a sociedade civil significa
reconstruí-la para todos. Toda a gente tem o seu lugar e toda a gente tem
oportunidade para prosperar.
A
verdade é que existe uma crise fundacional no interior do próprio Islã, e se
essa crise não for reconhecida, abordada e corrigida então não haverá futuro
para a sociedade civil no Oriente Médio ou sequer em qualquer país em que o Islã
se imponha.
Alguns dizem que a
brutalidade e a violência do Estado Islâmico também mudaram o mundo islâmico. O
que lhe parece?
O
Estado Islâmico chocou claramente a consciência do mundo e chocou a consciência
do mundo islâmico também. A questão agora é saber se o Islã vai manter-se numa
trajetória política em que a shari’a forma a base para a lei civil e quase
todos os aspetos da vida são controlados pela religião, ou se vai surgir um
movimento mais civil e tolerante.
A
derrota do Estado Islâmico não significou a derrota da ideia da restauração do
Califado. Esta despertou e está agora firmemente implantada nas mentes em todo
o mundo muçulmano. E com esta ideia do Califado vem todo o gênero de estruturas
históricas de desigualdade intencional e de discriminação contra não-muçulmanos.
Não estou falando só do Iraque. Vemos outros líderes de outros países do
Oriente Médio agindo de uma forma que é consistente com o restabelecimento do
Califado.
Como é que acha que o
Ocidente vai reagir a isto?
Essa
é a questão crucial e as minorias religiosas do Oriente Médio querem saber a
resposta. Vão continuar a aprovar esta perseguição organizada e incessante a
que estamos sujeitos? Quando formos atingidos pela próxima vaga de violência
veremos os vossos universitários a fazer manifestações e a ostentar cartazes a
dizer ‘Somos todos cristãos’? E sim, digo mesmo ‘a próxima vaga de
violência’, porque isto é simplesmente o resultado natural de um sistema
regente que prega a desigualdade e justifica a perseguição.
As
contas não são difíceis de fazer : um grupo aprende que é superior e que tem
direito legal a tratar outros seres humanos como inferiores unicamente por
causa da sua fé e das suas práticas religiosas. Isto conduz inevitavelmente à
violência contra quaisquer ‘inferiores’ que se recusem a mudar a sua
religião. E aí está – a história dos cristãos no Oriente Médio ao longo dos
últimos 1,4 mil anos.
Mas qual é a solução?
Como é que podemos construir um futuro melhor?
A
mudança depende de um esforço consciente por parte do próprio mundo muçulmano.
Já vimos pequenos sinais, talvez, desta consciência no Egito, na Jordânia, na
Ásia e até na Arábia Saudita. Certamente que falta ver se estes sinais são
sinceros.
O Cristianismo no
Médio Oriente tem uma missão profética?
O
meu trabalho é missionário : dar testemunho diariamente dos ensinamentos de
Cristo, mostrar a verdade de Cristo e ser um exemplo vivo para os nossos
vizinhos muçulmanos do caminho para um mundo de perdão, de humildade, de amor,
de paz. Para que não haja confusão, não estou falando de conversão. Antes,
estou falando da verdade fundamental do perdão que nós, os cristãos do Iraque,
podemos partilhar, e partilhar de uma posição de claridade moral historicamente
singular.
Nós
perdoamos aqueles que nos assassinaram, que nos torturaram, que nos violaram,
que procuraram destruir tudo o que somos. Perdoamos-lhes. Em nome de Cristo,
perdoamos-lhes. E por isso dizemos aos nossos vizinhos muçulmanos, aprendam
isto conosco. Deixem-nos ajudar-vos a sarar. As vossas feridas são tão
profundas como as nossas. Sabemo-lo. Rezamos pela vossa cura. Deixem-nos curar
juntos o nosso país torturado e ferido.
E na sua opinião, que
papel é que a sociedade ocidental secular tem a desempenhar?
Pedimos
que considerem a nossa situação com verdade, como uma coisa que existe de fato,
e não com tentativas forçadas de relativismo histórico, que menoriza ou, melhor
dizendo, insulta a realidade do nosso sofrimento e assim nos rouba até a
dignidade da nossa fé persistente. O coração deste esforço está em compreender
a natureza da batalha.
Perguntem
a vocês mesmos : quanto tempo é que uma sociedade moderada e decente consegue
sobreviver sem a influência de instituições cristãs? Quanto tempo é que a
tradição sobrevive depois de morrer a fé? O que é que preencherá o vazio?
O
papel que as comunidades cristãs desempenham, ou têm desempenhado, nas
sociedades islâmicas tem sido ignorado. É uma parte importante da formação de
sociedade civil na maior parte do mundo. Deve ser sublinhado porque a situação
no Iraque tem sido dramaticamente mal lida pelos decisores ocidentais. Não há
qualquer razão para crer que não lerão erradamente os sinais e os indícios nos
seus próprios países. Pensam que estão longe do caos do Iraque? Garanto-vos,
estão apenas a seis horas de distância.
Por falar em
decisores, qual o papel dos políticos?
Pedimos
que eles apoiem os esforços para que todas as minorias no Iraque, e noutros
lugares, tenham igualdade. Rezamos para que tenham a humildade de compreender
que as suas teorias, que ao longo das últimas décadas se tornaram a nossa atroz
realidade, têm sido quase universalmente erradas, baseadas em leituras
fundamentalmente defeituosas do povo iraquiano e da sua situação. E essas
políticas erradas, traçadas de longe e em segurança, abordadas na mídia como
pontos de discussão políticos, conduziram à morte de centenas de milhares de
pessoas inocentes.
Um
país inteiro foi destroçado e lançado aos cães. Todo este horror começou com
políticas e suplicamos a todos os que continuam a influenciar as políticas dos
vossos países para se recordarem, todos os dias, de que as vossas decisões e as
dos vossos aliados têm consequências de vida e de morte.
Por
favor, caminhem com humildade e assegurem-se que compreendem os povos sobre os
quais lançam sentenças. Compreender o que aconteceu no Iraque significa ser
verdadeiro sobre a natureza e o propósito da ordem civil cristã. Significa ser
verdadeiro sobre a natureza e o propósito das leis do Islã. Significa ser verdadeiro
sobre o que acontece quando estas duas realidades se juntam no mesmo lugar. Eu
compreendo que isto possa ser um assunto desconfortável para discutir no
conforto de um país pacífico. Mas para os cristãos do Iraque isto não é um
assunto abstrato.
E a pergunta mais
dolorosa : estamos perante o fim do Cristianismo no Iraque?
Pode
bem ser. Reconhecemos que sim. O Cristianismo no Iraque, uma das Igrejas mais
antigas, está perigosamente próximo da extinção. Antes de 2003 chegávamos ao
milhão e meio, 6% da população do Iraque. Hoje talvez já nem cheguemos aos 250
mil. Talvez menos. Os que permanecem têm de estar prontos a enfrentar o
martírio.
No
final das contas, todo o mundo enfrenta um momento de verdade. Poderá um povo
inocente e pacífico ser perseguido e eliminado por causa da sua religião? E o
mundo será cúmplice da nossa eliminação por não querer dizer a verdade aos
nossos perseguidores?
O
mundo deve compreender que neste nosso caminho rumo à extinção já não estamos
dispostos a ir em silêncio. A partir de agora diremos a verdade e viveremos em
verdade, abraçando inteiramente o nosso testemunho e missão cristãos, para que
se algum dia desaparecermos ninguém possa dizer : como é que isto aconteceu?
Nós, cristãos, somos um povo de esperança. Mas estar diante do fim também nos
traz claridade, e com ela a coragem para finalmente dizer a verdade.
A
nossa esperança de poder permanecer nas nossas terras ancestrais depende agora
da capacidade de nós, os nossos opressores e o mundo reconhecermos estas
verdades. A violência e a discriminação contra os inocentes tem de terminar.
Quem o promove tem de parar. Nós, os cristãos do Iraque, que enfrentamos 1,4
mil anos de perseguição, violência e genocídio, estamos preparados para falar e
dar testemunho aos nossos opressores e a todo o mundo, sejam quais forem as
consequências.’
Fonte
:
* Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1378505/2019/08/cristaos-caminham-para-a-extincao-no-iraque/
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