sábado, 13 de julho de 2019

Retorno do antissemitismo e da ignorância desafiam relações judaico-cristãs

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Lisa Palmieri,
colunista da Vatican Insider
Tradução : Ramón Lara


‘Nos últimos meses, uma série de eventos em Roma destacou o excelente estado das relações judaico-cristãs hoje, levando muitos representantes de ambos os lados a falarem que os laços nunca foram tão bons.

Para citar apenas alguns dos mais notáveis : a série de palestras organizadas ao longo do ano pelo Centro de Estudos Judaicos Cardeal Bea, da Pontifícia Universidade Gregoriana, comemorando o 50º aniversário do falecimento do cardeal Augustin Bea – o principal responsável da declaração do Vaticano II Nostra aetate e, portanto, também da silenciosa revolução nas relações interreligiosas que se seguiram; a extraordinária conferência de três dias sobre ‘Jesus e os fariseus’, organizada pelo Pontifício Instituto Bíblico, em cooperação com a Universidade Gregoriana, AJC e outros, com contribuições de estudiosos internacionais em todos os campos relacionados ao assunto; mais um encontro de três dias sobre um tema atual, ‘Pessoas, ideias e limites em movimento’, sobre o fenômeno global da migração, pelo Comitê de Relação Católico-Judaica Internacional composto por representantes da Comissão do Vaticano para Relações Religiosas com os Judeus e o Comitê Judaico Internacional de Consultas Inter-religiosas (IJCIC) – o guarda-chuva que abriga as organizações judaicas mais significativas do mundo.

O evento mais recente, celebrado dentro da principal sinagoga de Roma, foi uma comemoração de 25 anos de relações diplomáticas entre o Estado de Israel e a Santa Sé. O famoso coro da sinagoga de Roma, apresentando cantores de renome internacional trazidos para a ocasião, realizou seleções da música sacra judaica acompanhada do órgão da sinagoga (um instrumento tradicional para o judaísmo romano, embora estranho a outras comunidades judaicas ortodoxas do mundo). Altos funcionários do Vaticano e da Igreja italiana, além de líderes da comunidade judaica de Roma, como o rabino-chefe de Roma, Riccardo Di Segni, e o embaixador de Israel junto à Santa Sé, Oren David, participaram e falaram em honra da ocasião.

O cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado do Vaticano, proferiu um discurso importante no qual lembrou que os dois Estados compartilham um compromisso comum com a liberdade religiosa e o combate ao antissemitismo. ‘A Santa Sé e o Estado de Israel são chamados a unir forças para promover a liberdade religiosa – da religião e da consciência – como condição indispensável para proteger a dignidade de todo ser humano e trabalhar juntos para combater o antissemitismo’ apontou.

É inquestionável que, nos níveis mais altos, o Vaticano e outros líderes e intelectuais da Igreja Católica são sensíveis e estão empenhados em combater o antissemitismo em todas as formas e origens. Infelizmente, também é verdade que neste momento de uma onda global de antissemitismo, velhos estereótipos de ódio e preconceitos que deveriam ter desaparecido definitivamente do uso comum estão voltando mesmo dentro de contextos religiosos.

A falta de informação e o fracasso em ensinar aos paroquianos, seminaristas, educadores católicos e estudantes das escolas primárias até a faculdade sobre o conteúdo e o espírito dos documentos oficiais do Vaticano e das Conferências Episcopais que seguiram e desenvolveram os conceitos de Nostra aetate desempenham um papel importante nisso. Vestígios do antigo, equivocado e letal ‘ensino do desprezo’ ressurgem em muitas ocasiões em diferentes ambientes. Eles não chegam às manchetes nem são mencionados em discussões públicas, pois muitas vezes ocorrem em pequenos círculos, longe dos palcos.

Os resultados são tangíveis em todos os níveis, do discurso cotidiano aos círculos intelectuais e eclesiásticos. Fontes confiáveis relatam, por exemplo, que em certas igrejas paroquiais nas cidades Castelli Romani que circundam Roma, o fato óbvio, mas significativo de que Jesus, sua mãe e os apóstolos eram judeus e que Jesus jamais renegou sua identidade judaica nunca é mencionado. No entanto, isso deve ser de conhecimento comum e é essencial quando se refere ao laço importante e recorrente das nossas raízes comuns nos discursos comemorativos. Pode-se dizer que se torna ainda mais extraordinário se lembrarmos que o judaísmo de Jesus foi negado ao longo dos séculos na literatura, na arte, na teologia e no ensino religioso. Parece absurdo ter que lembrar e afirmar que ‘Jesus era judeu; ele não era cristão’, mas uma falta básica de conhecimento geralmente pode levar a essa vacuidade.

A teologia da substituição também ressurge com frequência. Na mesma cidade onde as raízes judaicas de Jesus nunca são mencionadas, um padre da paróquia, durante um ensino sobre a Aliança, perguntou às crianças o que, na opinião delas, acontece sempre que alguém faz um contrato com outra pessoa que então não age de acordo com o contrato. Todos concordaram com a resposta do padre de que ‘se um dos parceiros quebra esse contrato, ele não é mais válido no contrato. E assim Deus tem que procurar outro parceiro para o seu contrato, para substituir aquele que o quebrou. Os judeus não reconheceram o Messias-Cristo, então nós cristãos somos agora o Novo Israel!’. Todas essas declarações do sacerdote são, evidentemente, contradições flagrantes de Romanos 11,29 : ‘Porque os dons e a vocação de Deus são sem arrependimento’, essa é uma frase famosa, que também é o título do mais recente documento oficial emitido pela Pontifícia Comissão para as Relações Religiosas com os Judeus, publicado em 2015.

Outro funcionário da paróquia mencionada, relatou : um colaborador da Rádio do Vaticano disse a um casal envolvido em um diálogo cristão-judaico : ‘você deve ter cuidado com seu trabalho. Você sabe que os judeus mataram Cristo!’. Assim, a acusação ‘deicida’ totalmente absurda, mas venenosa, foi colocada na base do ‘ensino do desprezo’ denunciada por Jules Isaac ao papa João XXIII e posteriormente elaborada no documento Nostra aetate, e persiste em círculos surpreendentes, nos quais sua sobrevivência nunca se suspeitaria.

Mesmo em níveis mais elevados, a falta de conhecimento sobre os judeus e o judaísmo é frequentemente evidente. Por exemplo, o bispo auxiliar da Arquidiocese de Santiago do Chile, frei Carlos Eugenio Irarrazival Errazuriz, foi recentemente destituído de seu posto depois de declarar publicamente que a sociedade judaica até hoje é dominada pelos homens, e ‘quando um casal caminha pela rua a mulher deve andar 10 passos atrás do homem’ – obviamente uma descrição falsa e negativa nascida de uma ignorância em relação às realidades da vida e da tradição judaica, bem como em completo conflito com os ensinamentos do magistério.

Os falsos argumentos antissemitas mais feios estão novamente voltando e se tornando comuns em todo o mundo na linguagem cotidiana. Para combater esses sinais perigosos e degenerativos, seria muito útil que os educadores católicos se conscientizassem das consequências negativas das omissões e distorções nos programas escolares de todos os tipos e em todos os níveis, bem como durante o ensino das crianças nas paróquias.

Espero que, por exemplo, as descobertas e conclusões da recente conferência sobre ‘Jesus e os fariseus’ comecem a circular mais amplamente, de modo que o termo ‘fariseus’ (frequentemente usado como sinônimo de ‘judeus’) não continue a ser interpretado como uma forma de legalismo hipócrita e vazio, e o mundo judaico no qual Jesus viveu comece a ser entendido em termos de sua rica complexidade histórica.

Sobreviventes da Shoah (Holocausto) estão quase extintos, e ficarão completamente suprimidos em mais alguns anos. As novas gerações não poderão mais se beneficiar de relatos de primeira mão dos maiores horrores do século 20, mas ficarão com aniversários, comemorações, registros, literatura multimídia e arte que, por mais bem-feitos que sejam, não impedirão o retorno do ódio antissemita, a menos que a guarda e vigilância sejam mantidas. A instrução religiosa pode ser um dos baluartes mais eficazes e poderosos, e talvez o método mais importante possível seja aquele que incorpora o contexto histórico como um pano de fundo para a compreensão das Sagradas Escrituras.

É reconfortante saber que o aprofundamento da confiança mútua e da amizade entre as religiões irmãs está cada vez mais levando a preocupações com uma melhora recíproca dos ensinamentos e do conhecimento do outro.


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