Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo
de Dom Henrique Soares da Costa,
Bispo de Palmares, PE
‘Quando
meditamos sobre o precioso Livro do Apocalipse, constatamos, edificados na
convicção dos cristãos, de que há um Senhor nos Céus e, portanto, há um rumo e
um sentido para a história e a vida do mundo; em última análise, há um sentido
e um rumo para a minha existência pessoal.
No
capítulo 13 deste último livro da Escritura Santa, há uma imagem inquietante e
atual, a ser interpretada com profundidade e lucidez : João vê uma besta (cf.
13,1) de dez chifres (símbolo de força, de poder militar e agressividade), dez
diademas (símbolo da realeza, do poder político) e sobre as cabeças, um nome
blasfemo (porque essa besta quer assumir o poder e o papel de Deus). A besta
tinha poder, trono e grande autoridade; possuía até uma ferida mortal, que foi
curada. E o mundo, cheio de admiração, seguiu a besta, pois dizia; ‘Quem
é como a besta?’ E a adorou dizendo : ‘Quem pode lutar contra
ela?’ Essa besta recebeu poder de guerrear contra os cristãos e
vencê-los, bem como autoridade sobre toda a humanidade. Havia ainda uma outra
besta (cf. 13,11)…
A
linguagem, claro, é simbólica e mítica. Mas, o significado é contundente, atual
e de um realismo perturbador. Basta ver as perseguições explícitas ou veladas
em relação aos cristãos; basta constatar o ridículo a que a nossa santa
fé e os verdadeiros e simples discípulos do Senhor são submetidos…
Quem
são essas bestas? São tudo aquilo que no mundo pretende fazer passar-se por
Deus, toda instituição, ideologia, moda ou projeto humano que pense poder
assenhorear-se do mundo, da Igreja, das consciências, do destino das pessoas;
são toda ideologia que pretenda abarcar a totalidade da realidade e da
existência, impondo-se de modo arbitrário. As bestas são todos os tiranos e
tiranias da história. Podem ser o racionalismo, o nazismo, o fascismo, o
socialismo, com sua ânsia de reduzir a pessoa a engrenagem de um estado
divinizado, chegando a perseguir, a matar, a violentar as consciências em nome
de uma pretensa justiça social, o capitalismo quando selvagem e sem critérios
morais, que dá à luz o monstro de uma sociedade consumista, hedonista e rasa de
valores; as bestas podem ser uma certa globalização, quando conduzida
simplesmente com base no consumo e no politicamente correto. As bestas podem
ser os meios de comunicação, com sua tirania, sua mentira, seu serviço à
desinformação, plasmando uma opinião mundial fechada aos valores religiosos e à
transcendência.
A
besta é um triste arremedo do verdadeiro Deus. O poder dela, sua grandeza e
força, são ilusórios. Mas, que ela engana, engana! As pessoas, admiradas, se
perguntam: ‘Quem é como a besta?’ – Trata-se, aqui, de um
arremedo do nome bíblico Miguel, que significa ‘quem é como Deus?’ Nesse
capítulo 13 do Apocalipse, ela parece forte e imbatível: estava ferida
mortalmente e foi curada. Ela parece eterna…
E,
no entanto, o número da besta é um número de homem : 666! A ironia é gritante!
Na Bíblia, 6 significa aquilo que não é pleno, que é passageiro, pois é 7
(perfeição, completude) menos 1. Lembremo-nos que o homem foi criado no sexto
dia. Ele não é Deus, ele não é pleno em si mesmo, ele não é o senhor absoluto
dos planos e dos sonhos; é livre, mas sua vida está nas benditas mãos do
Eterno! Como exclamava o Profeta Jeremias : ‘Eu sei, Senhor, que não
pertence ao homem o seu caminho, que não é dado ao homem que caminha dirigir
seus passos’ (10,23).
O
homem não é homem simplesmente porque é racional; ele é homem e é humano porque
é o único ser capaz de um diálogo com o seu Criador. É o único ser que sabe que
existe, que sabe apreciar o dom de viver e que sabe que caminha para a morte; e
deve enfrentá-la como entrada numa plenitude ou mergulho num nada absurdo. O
número do homem é 6 : perto da plenitude, somente abrindo-se para o Infinito
pode chegar à plenitude!
O
número da besta é 666. Três vezes 6, três vezes incompleta, três vezes humana…
Absolutamente incompleta, falível, frágil, humana, por mais que deseje parecer
eterna, forte e divina! Com ironia finíssima, o Autor do Apocalipse diz : ‘Aqui
é preciso discernimento! Quem é inteligente calcule o número da besta, pois é
um número de homem!’ A besta de plantão da época era o Império Romano,
com seu imperador Domiciano, perseguidor maior dos cristãos. E a besta
hoje? ‘Quem é inteligente, calcule o número da besta!’
Mas,
além da imagem da besta (e das bestas), há um outro animal : um Cordeiro (cf.
14,1). É imagem do Cristo. O Leão da tribo de Judá é apresentado manso e
humilde, frágil e indefeso, como um Cordeiro imolado (cf. 5,6). É uma imagem
fascinante! O que pode um cordeiro contra um animal como a besta, com corpo de
leopardo, patas de urso e boca de leão? O que pode um Cordeiro imolado, cujo
lado estará continuamente ferido, aberto, contra um animal que, ferido
mortalmente, volta a viver, como que ressuscitando sempre? O que pode a fé num
Deus crucificado e impotente contra o mundo atual, com sua pretensa ciência,
sua tecnologia, seu poder de persuasão e comunicação, sua riqueza de recursos e
argumentação? O que pode a fraqueza do Evangelho contra um mundão que entra sem
pedir licença em nossas casas e nossas vidas, impregna o nosso coração e invade
famílias, destrói ideais e subverte valores?
E,
no entanto, é o Cordeiro imolado – eternamente imolado, de cujo lado saem a
água do Batismo e o sangue da Eucaristia -, que vencerá a besta que sempre
teima em curar suas feridas. É o Cordeiro imolado que estará sempre de pé,
vitorioso. Ele, que pode aquietar nossos sonhos, realizar nossos mais profundos
anseios de vida, beleza, verdade, paz, amor e eternidade. É o Cordeiro quem nos
apascentará e nos conduzirá às fontes da Vida… O Cordeiro que parece frágil,
derrotado, ferido de morte.
Meu
caro ‘Irmão e companheiro na tribulação, na realeza e na perseverança
em Jesus’ (Ap 1,9), quis partilhar com você esta meditação porque muitas
vezes nos iludimos na busca de um cristianismo triunfalista, que de modo pagão,
imagina um poder de Deus, um triunfo do Cristo numa moldura de grandeza humana,
de prestígio, de aliança com os grandes, de capitulação e adulação ante as
ideologias e modas politicamente corretas e de reconhecimento pelo mundo. Não é
nem pode ser esse o caminho!
O
cristão deve ser livre e libertador! Livre porque, sabendo apreciar e valorizar
tudo quanto de bom o mundo oferece, não se encanta com nada, não atola seu
coração em nada, porque sabe que tudo passa e é provisório… O cristão também
não teme as bestas, não se admira nem se dobra ante sua grandeza. Por isso
mesmo, é nosso dever, com paciência, humor e firmeza, denunciar todos os
projetos humanos que tenham a aparência de solução definitiva, caminho mágico,
verdade suprema para a humanidade. Só em Cristo, o Cordeiro imolado, o cristão
ancora a sua vida e a sua esperança.
Cuidemos
de ser precavidos com as bestas. Cuidemos de não nos entusiasmar demais com as
modas do momento, absolutizando aquelas coisas que passam tão depressa e são
humanamente ilusórias. Cuidemos de ser inteligentes para viver o presente
intensamente, mas com o coração atento à Eternidade. Cuidemos de viver como
aqueles que – usando ainda uma imagem do Apocalipse – ‘estão inscritos
no livro da Vida do Cordeiro’ (21,27).’
Fonte
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