Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo
de Mirticeli Dias de Medeiros,
jornalista e mestre em História da Igreja, uma das
poucas brasileiras
credenciadas como vaticanista junto à Sala de
Imprensa da Santa Sé
‘No
início da semana, todos foram surpreendidos com a notícia de que o
barco-hospital de papa Francisco já está operante na Amazônia. Às vésperas do
sínodo que tratará especialmente da região, em outubro, mais um gesto concreto
executado pelo líder máximo da Igreja Católica. Francisco chega às águas dos
rios por onde vários missionários já passaram e continuam passando. A Igreja é
chamada a fazer travessias que ninguém quer fazer e, em muitas ocasiões, a ir
ao encontro de quem é esquecido pela sociedade. Hoje em dia, se não é a Igreja
a fazê-lo, quem mais o fará? Afinal, o cristianismo, por excelência, se
auto-intitula a religião da solidariedade, dos descartados. E não é de hoje.
Ler
os padres da Igreja é chegar à conclusão que, desde os primórdios, era
inconcebível para um cristão ver alguém, a quem se chamava carinhosamente de
irmão, passar necessidade. A dita ‘caixa comum’, mantida pela comunidade
cristã judaica dos primeiros séculos, era só um exemplo dessa preocupação
latente e constante. Estudos comprovam, inclusive, que a maioria dos pobres e
miseráveis atendidos pela comunidade cristã em várias regiões do Império Romano
eram migrantes. Por que? Porque tais pessoas,
desprovidas da cidadania romana, não podiam participar da famosa distribuição
de grãos realizada pelo imperador, a qual chegava a atender 300 mil
beneficiários por vez.
Após
a crise do império, foram os cristãos a assumir, quase integralmente, a assistência
aos mais necessitados. O Concílio de Nicéia (325 d.C) determinou que todo bispo
presidisse a caridade em seu território, através da criação de centros de
acolhida para pobres, peregrinos, viúvas e crianças abandonadas. Na Baixa Idade
Média, em meio às tantas incongruências do período, era a Igreja que pagava os
dotes das mulheres pobres para que elas não terminassem seus dias em um
prostíbulo. Acolher os descartados foi, por muito tempo, palavra de ordem.
Sendo
assim, não deveríamos estranhar ver um sumo pontífice defender a dignidade das
pessoas que, hoje, cruzam o Mediterrâneo : a rota da prosperidade e da
esperança em tempos passados que tem se transformado num cemitério ao ar livre. E aqui não colocamos em questão –
nem Francisco coloca em questão – a legalização e o controle dos portos, ao
contrário do que os populistas e os fantoches ideologizados têm dito. O papa se
preocupa sobretudo com certas convicções que minam esse espírito solidário
sobre o qual a Europa, através do cristianismo, também foi construída.
Um
cristão achar normal que um governo aplique uma multa para quem socorrer um
imigrante em alto-mar é, no mínimo, estranho. Alguém que comunga todos os
domingos comemorar a mudança de rota de um navio que, como sabemos, pode ser
fatal para quem está há dias enfrentando um mar traiçoeiro, é inacreditável. ‘Onde
está teu irmão, Caim?’
Francisco
se preocupa com os nacionalismos e essa relativização do egoísmo. Francisco se
preocupa com um cristianismo que renuncia à sua virtude nata. Francisco têm
medo de que sejam os cristãos a fomentar a hostilidade e a mentalidade das
portas fechadas.
Se
fôssemos definir o papa atual, seria mais que justo chamá-lo de ‘papa da
caridade’. Não porque ele tenha inaugurado ‘o tempo da caridade’ na
Igreja, já que nem precisamos dizer o quanto a instituição tem feito
pelos menos favorecidos em várias partes do planeta. Todavia, Francisco supera
essa ‘caridade institucionalizada’ : da esmola à promoção da
justiça.
É
muito fácil separar uma quantia todo mês e enviá-la ‘para alguém que cumpre
sua missão de ajudar os pobres’. Com isso, fugimos da responsabilidade de
dar atenção ao mendigo abandonado na escadaria da igreja ou de prestar
solidariedade à família vizinha que muitas vezes não tem o que comer.
Com
Francisco, a esmola é humanizada e personalizada : é missão de cada um
oferecer, dentro das possibilidades, dignidade a quem foi descartado. ‘Onde
está teu irmão?’ - Está aqui, Senhor. Que eu não o deixe morrer à deriva, à
míngua. Não mais.’
Fonte
:
* Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1372142/2019/07/onde-esta-teu-irmao-que-a-frase-nao-se-repita/
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