sexta-feira, 12 de julho de 2019

'Onde está teu irmão?' - que a frase não se repita


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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*Artigo de Mirticeli Dias de Medeiros,
jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras
credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé


‘No início da semana, todos foram surpreendidos com a notícia de que o barco-hospital de papa Francisco já está operante na Amazônia. Às vésperas do sínodo que tratará especialmente da região, em outubro, mais um gesto concreto executado pelo líder máximo da Igreja Católica. Francisco chega às águas dos rios por onde vários missionários já passaram e continuam passando. A Igreja é chamada a fazer travessias que ninguém quer fazer e, em muitas ocasiões, a ir ao encontro de quem é esquecido pela sociedade. Hoje em dia, se não é a Igreja a fazê-lo, quem mais o fará? Afinal, o cristianismo, por excelência, se auto-intitula a religião da solidariedade, dos descartados. E não é de hoje.

Ler os padres da Igreja é chegar à conclusão que, desde os primórdios, era inconcebível para um cristão ver alguém, a quem se chamava carinhosamente de irmão, passar necessidade. A dita ‘caixa comum’, mantida pela comunidade cristã judaica dos primeiros séculos, era só um exemplo dessa preocupação latente e constante. Estudos comprovam, inclusive, que a maioria dos pobres e miseráveis atendidos pela comunidade cristã em várias regiões do Império Romano eram migrantes. Por que? Porque tais pessoas, desprovidas da cidadania romana, não podiam participar da famosa distribuição de grãos realizada pelo imperador, a qual chegava a atender 300 mil beneficiários por vez. 

Após a crise do império, foram os cristãos a assumir, quase integralmente, a assistência aos mais necessitados. O Concílio de Nicéia (325 d.C) determinou que todo bispo presidisse a caridade em seu território, através da criação de centros de acolhida para pobres, peregrinos, viúvas e crianças abandonadas. Na Baixa Idade Média, em meio às tantas incongruências do período, era a Igreja que pagava os dotes das mulheres pobres para que elas não terminassem seus dias em um prostíbulo. Acolher os descartados foi, por muito tempo, palavra de ordem.

Sendo assim, não deveríamos estranhar ver um sumo pontífice defender a dignidade das pessoas que, hoje, cruzam o Mediterrâneo : a rota da prosperidade e da esperança em tempos passados que tem se transformado num cemitério ao ar livre. E aqui não colocamos em questão – nem Francisco coloca em questão – a legalização e o controle dos portos, ao contrário do que os populistas e os fantoches ideologizados têm dito. O papa se preocupa sobretudo com certas convicções que minam esse espírito solidário sobre o qual a Europa, através do cristianismo, também foi construída.

Um cristão achar normal que um governo aplique uma multa para quem socorrer um imigrante em alto-mar é, no mínimo, estranho. Alguém que comunga todos os domingos comemorar a mudança de rota de um navio que, como sabemos, pode ser fatal para quem está há dias enfrentando um mar traiçoeiro, é inacreditável. ‘Onde está teu irmão, Caim?

Francisco se preocupa com os nacionalismos e essa relativização do egoísmo. Francisco se preocupa com um cristianismo que renuncia à sua virtude nata. Francisco têm medo de que sejam os cristãos a fomentar a hostilidade e a mentalidade das portas fechadas.

Se fôssemos definir o papa atual, seria mais que justo chamá-lo de ‘papa da caridade’. Não porque ele tenha inaugurado ‘o tempo da caridade’ na Igreja,  já que nem precisamos dizer o quanto a instituição tem feito pelos menos favorecidos em várias partes do planeta. Todavia, Francisco supera essa ‘caridade institucionalizada’ : da esmola à promoção da justiça. 

É muito fácil separar uma quantia todo mês e enviá-la ‘para alguém que cumpre sua missão de ajudar os pobres’. Com isso, fugimos da responsabilidade de dar atenção ao mendigo abandonado na escadaria da igreja ou de prestar solidariedade à família vizinha que muitas vezes não tem o que comer. 

Com Francisco, a esmola é humanizada e personalizada : é missão de cada um oferecer, dentro das possibilidades, dignidade a quem foi descartado. ‘Onde está teu irmão?’ - Está aqui, Senhor. Que eu não o deixe morrer à deriva, à míngua. Não mais.


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