Por Eliana
Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
‘Não é possível,
sem a ajuda de uma graça especial, procurar definir o espírito de uma das
grandes Ordens da Igreja, cujos interesses são os interesses de Deus. Nenhum
homem está à altura de falar sobre eles – e a tarefa se torna ainda mais
difícil quando essa Ordem é contemplativa, fiel há nove séculos à sua clausura
rigorosa. A sua vida secreta, para se revelar, precisa de uma resposta
interior. Para falar da vocação cartuxa, seria preciso, acima de tudo, tê-la
seguido até à perfeição : e é com vergonha de ter feito tão pouco que
escrevemos estas linhas.
Por mais que se
pretenda exprimir a intenção que anima a vida dos cartuxos e das suas
religiosas, devemos fazê-lo nos termos mais simples. As nossas almas são
esposas de Jesus Cristo se respondemos ao seu chamado : o nosso ideal é fazê-lo
e viver unicamente em união com Ele. Esforçamo-nos por atingir este fim pela
vida sacramental e litúrgica, pela oração, pela obediência, pela mortificação e
pelo esquecimento de nós próprios, na solidão e segundo os costumes da Ordem
cartuxa. Sabemos e sentimos, na medida em que Deus o quer, que Ele está
desejoso de completar sem demora esta união dos espíritos e dos corações, desde
que afastemos os obstáculos. Estes obstáculos reduzem-se a um : o apego a nós
próprios, de que só o amor divino pode libertar-nos.
Esta definição é
certamente elementar : muitos estranharão encontrar nela tão pouca doutrina e tão
poucas características específicas. Contudo, esta simplicidade é necessária : é
a primeira característica da espiritualidade cartuxa, e lamentamos ter de
explicar estas palavras, pois não acrescentaremos nada à sua substância e
receamos até enfraquecê-las com o comentário.
Os monges e as
religiosas cartuxas, ocupados em servir a Deus nos seus eremitérios, nunca
formaram uma escola nem se agruparam à volta do nome de um mestre : não têm
nenhum autor célebre cuja obra fixe as linhas do seu desenvolvimento espiritual
e lhe dê a forma que há de ser depois imitada. Mas não é só pela sobriedade das
formulações teóricas que parece ter ficado reservado um lugar para um impulso
silencioso do espírito; a virgindade é uma característica essencial da
espiritualidade cartuxa : tudo, nesta Ordem, protege a vida espontânea da alma
e a reserva para Deus.
É este o sentido
da solidão, a que nós observamos, e que tanto impressiona os estranhos.
Abandonamo-nos a Deus e é unicamente d’Ele que nos esforçamos por viver. Esta
solidão, no seu aspecto social, é de resto suavizada pela regra : entre
nós relações de família; estamos unidos uns aos outros por uma profunda
amizade, como irmãos e irmãs da mesma ordem. No entanto, estas relações e esta
amizade só têm sentido na medida em que nos podem ajudar na fidelidade à
solidão, medindo-a pelas nossas forças e pondo-a à prova para que ela não perca
o seu caráter sobrenatural. Estar só, em certo sentido, é morrer para o homem :
é por isso que, muitas vezes, depois de o terem tentado, alguns o consideram um
empreendimento desumano. Contudo, a alma foi feita para Deus, e qualquer outro
objeto fecha o coração e o espírito dentro de limites que o asfixiam. Privá-la
da solidão, como o mundo parece atualmente determinado a fazer, é fazer-lhe uma
violência que, com mais propriedade, se pode chamar desumana. A solidão com
Deus é um ideal a que todas as almas devem tender : o claustro apenas o atinge
num movimento mais decidido e mais direto. Na verdade, não há outra companhia
além de Deus : o coração que não a descobriu passará ainda por muitas provas e
só no caso de se conservar leal é que atingirá essa evidência, não com tristeza
resignada, mas com profundo júbilo.
A vida cartuxa
também se define pela sua atividade interior : esta Ordem é, dentro da Igreja,
a que mais totalmente se dedica à contemplação. Esta palavra parece ter uma
singular virtude, que fascina uns e inquieta outros. Criticou-se já o seu
emprego, de resto antiquíssimo : não é verdade que há homens incapazes de ‘ver’,
de ‘contemplar’ interiormente seja o que for, por mais zelosos e religiosos que
possam ser? Devemos responder, em nossa opinião, que esta palavra foi escolhida
providencialmente para designar a atitude de uma alma-esposa, ainda que ela
esteja longe de estar inundada de luz. Os espíritos que amam a verdade divina a
contemplam, e esse ato deve ser o único que a alma bem-aventurada fará no céu.
Mas esse aprendizado, aqui na terra, se faz no meio do sofrimento e das trevas
da fé : é por isso mesmo que ela é sacrifício, purificação eficaz e testemunho
insigne de caridade. Pode-se contemplar nas tribulações e na aridez, no
trabalho e nos cuidados com o próximo, e até mesmo nas tentações e nas
distrações involuntárias; a única coisa que importa é que a alma se mantenha
voltada para o Senhor invisível e opere de acordo com esse olhar. A experiência
do amor deve levá-la a entender o valor que ela dá à contemplação do seu
objeto, tanto nas trevas como na luz, e o puro pressentimento da visão que
anima a sua fidelidade : na verdade, é-se contemplativo na medida em que se
ama.
Que este esforço
pode ser coroado já nesta vida por uma perfeita união com o Esposo, acreditamos
firmemente, pois, na verdade, nada se interpõe entre Deus e a alma. Mas essa
união é, por sua natureza, secreta : ela implica o respeito do silêncio em que
o Espírito a prepara e mantém.
O segredo é, de
resto, uma das características de toda a vida cartuxa : monges e freiras
encontram nele o fresco refúgio em que germinam as flores eternas. Como
passamos na igreja uma parte das horas noturnas, esforçamo-nos por santificar
por meio da oração o coração da noite; assim, a nossa existência, longe dos
olhares do mundo, imita a vida oculta do Senhor, a que Ele viveu no seio de
Maria e durante os trinta anos que prepararam a salvação do mundo. Abandonando
uma sociedade em que cada um, como é natural, procura aparecer, os cartuxos e
as religiosas cartuxas esforçam-se por desaparecer, esperando que a verdade
aceite esta prova. Um dos patronos da nossa Ordem, cujo nome vem incluído na
nossa fórmula de profissão, é João, o Precursor, o profeta solitário que
procura apagar-se para que brilhe aos olhos de todos a luz do Verbo.
O papel da mulher,
em particular o da virgem, como já foi observado mais de uma vez, compreende de
século para século uma viva afirmação de pudor : ela sente a si própria como um
véu que protege essas reservas sagradas que se devem conservar puras, para que
nunca sequem na terra as fontes da vida e da beleza; isto é verdadeiro num
sentido muito especial para as virgens enclausuradas e consagradas, que se
cobrem com um véu à imitação de Maria, para guardar e alimentar dentro de si a
vida divina. É por isso que as nossas monjas não parecem ter-se ligado à nossa
Ordem por mero acaso, mas sim por uma disposição providencial, para que o
espírito desta mesma Ordem fosse claramente manifestado nas suas
características essenciais e para que a nossa resposta à mesma vocação fosse
para nós um mútuo encorajamento, uma confirmação recíproca da graça comum pela
qual nos sentimos gratos para sempre.
Não se poderá
esconder, num esboço do ideal cartuxo, a presença constante da cruz : abandonar
o mundo é doloroso para o coração; a solidão, por mais preciosa que seja por
si, é um sacrifício quotidiano para a nossa natureza pecadora; a obediência, a
pobreza, por mais sabiamente proporcionadas que estejam com as forças humanas,
não podem ser aceitas e vividas sem uma agonia da vontade própria. Se o
entusiasmo do amor não acende na alma uma fagulha de heroísmo, não se aceitarão
por muito tempo estes deveres de padre cartuxo ou de irmão converso, nem os de
esposa ou de mãe espiritual. Eles pressupõem que foi ouvido o chamamento de
Cristo : ‘Se alguém me ama, tome a sua
cruz e siga-me’. Não há verdadeira vida interior sem uma paciência infinita,
e, se a vida do convento não é uma vida interior, é um cativeiro singularmente
infeliz. A graça não há de faltar a quem quiser ouvir esse chamamento, mas, se
não houver uma fidelidade quotidiana, toda a graça será estéril e perdida.
As dádivas mais
puras do Espírito, os dons da fé, da intuição e da união, que são alegria, têm,
contudo, necessidade da solidão, do silêncio e da cruz : a sua realidade se
desvanece numa vida demasiado cômoda, assim como numa expressão demasiado
fácil. A reclusão austera e os sofrimentos que comporta são bem-vindos para o
contemplativo : quando lhe faltam, a alma tem a consciência de que perde um
amparo precioso e que lhe seria prejudicial ver-se privada dela durante muito
tempo.
Não insistiremos
mais sobre este aspecto da nossa vida : a vida cartuxa é uma escola de
paciência. Exercida em união com Cristo, na submissão à regra e na fidelidade à
solidão, a paciência purifica a alma, vai gastando lentamente o amor-próprio e
nos obriga a entregarmo-nos a Deus. O nosso Ministro Geral, D. Inocêncio Le
Masson († 1703), diz que a cartuxa é ainda uma escola de caridade (no estilo do
seu século, ‘uma academia de caridade’)
: este ponto é, de fato, o centro da nossa comunidade religiosa, o seu
princípio e o seu fim. Os sacrifícios de que acabamos de falar, o abandono e a
renúncia, têm como única razão de ser a caridade que manifestam, como vem
declarado nos nossos Estatutos.
A única coisa que
se faz nos nossos conventos é amar a Cristo com todas as nossas forças: sabemos
que a abundância deste divino amor nos será dada se formos fiéis e se derramará
sobre todas as almas que dele necessitarem. Não há um único cartuxo que não se
considere, neste sentido, missionário; não há nenhuma virgem cartuxa que não
tenha o sentimento da sua maternidade espiritual e não possa dizer com Cristo :
‘O Espírito do Senhor repousou sobre mim;
pelo que me ungiu para evangelizar os pobres, me enviou a sarar os contritos de
coração, a anunciar aos cativos a redenção e aos cegos a vista, a pôr em
liberdade os oprimidos, a pregar o ano favorável do Senhor e o dia da
retribuição’ (Lc 4, 18-19).
O ofício divino e
o canto coral são a expressão do amor que a própria Igreja, Esposa de Cristo,
nos põe na boca, encarregando-nos oficialmente das suas declarações, dos seus
juramentos e dos seus louvores. A caridade que deve ser a vida do claustro se
manifesta, por outro lado, entre os membros do mesmo mosteiro tanto por um
esforço contínuo de delicadeza e de compreensão quanto pela comunhão dos
corações saciados na mesma fonte. Este ideal nem sempre é atingido na sua
perfeição : no entanto, é realizado de modo mais constante do que o mundo
julga, e a fraternidade monástica, sóbria de expressão, alimentada de silêncio,
é um amparo precioso para a alma na sua peregrinação interior.
Parece-nos, muitas
vezes, que as pessoas do século, entre as quais se fala de amor e de amizade,
poderiam tirar proveito da experiência das nossas comunidades : na verdade,
nenhuma afeição pode perdurar se não for garantida por uma vontade quotidiana e
pela prática da renúncia, que lhe permite encarar de boa vontade todas as
dificuldades; nenhum amor poderá viver se não estiver pronto a sacrificar até
as suas próprias alegrias. Quem não reconhece estas verdades não sabe amar como
se ama na cartuxa – e não acreditamos que saiba amar em qualquer outro lugar.
Inocêncio Le
Masson, que faz da cartuxa ‘uma academia
de caridade’, vê também nela o que parecerá talvez ainda mais estranho : ‘uma academia de liberdade’. Basta, no
entanto, ter a experiência de um noviciado cartuxo para saber que a primeira
impressão é a que está reduzida no salmo 123 : ‘O laço foi quebrado e nós ficamos livres’. O espaço interior, na
verdade, é infinitamente mais vasto que aquele que nos rodeia : o que mantém o
homem cativo é o amor ansioso pelos bens transitórios, a ambição estreita, a
preocupação paralisante com o que os homens podem dizer ou pensar de nós; numa
palavra, o amor-próprio em todos os seus aspectos. A resolução sincera de
acabarmos com as suas exigências, de passarmos a tratar-nos com sábio desprezo,
com justa ironia, é comparável ao levantar de um peso sob o qual mal podia
bater o coração. Os votos não fazem mais do que romper as amarras. O caminho da
liberdade não é o dos êxitos exteriores : pelo contrário, desce até ao mais
secreto da alma, até ao fundo divino em que o espírito está atento à verdade
que nos liberta (Jo 8, 32). Esta liberdade se desenvolve; é como uma descoberta
sempre nova, à medida que cresce a intimidade com Deus, à medida que ela
reconhece a sua presença imediata e lhe permite viver nela.
Deus é mais amável
do que se pensa e mais fácil de conhecer do que se julga. Amá-lo e conhecê-lo
são duas graças intimamente ligadas : não se faz nenhum progresso no amor que
não torne mais firme a certeza em que se baseia o equilíbrio e o voo do
espírito. Amar e contemplar na solidão cartuxa leva a alma a esquecer-se cada
vez mais de si própria, até que a transparência do espelho interior permita que
Deus se reproduza e repouse nela completamente. Terá sido então cumprido o
grande mandamento : ‘Dai a Deus o que é
de Deus’; isto é tudo. As perguntas e as respostas se baseiam num cântico
único de louvor, a união é consumada em silêncio para além das nossas medidas;
a esposa pertence ao esposo : a liberdade foi conquistada.
Possa o Espírito
ser ouvido melhor! Que os corações generosos sigam Jesus sem medo do deserto! E
que os que ousaram fazer este esboço do ideal cartuxo, ajudados pelas orações
dos seus leitores, possam vivê-lo mais fielmente, para a sua própria salvação e
de todas as almas. ‘Venite et bibite,
amici : inebriamini, carissimi!’ – ‘Vinde, amigos, e bebei na fonte,
embriagai-vos, caríssimos!’ (Ct 5, 1).’
Fonte :
Extraído
de ‘Intimidade com Deus’, por um
cartuxo anônimo, via blog A Grande Guerra