*Artigo de Evaldo D´Assumpção,
médico e escritor
‘Em nossa
sociedade essencialmente capitalista e desvairadamente consumista, muito bem
definida pelo sociólogo Bauman como ‘Modernidade
Líquida’ pela rápida fluidez com que as coisas acontecem, ocorrem muitas
perdas, e a elas acompanham o sofrimento e o luto.
Dentre as causas
mais frequentes, cito os veículos de transporte cada vez mais rápidos (mesmo
com o limite legal sendo em torno de 110km/h, carros são fabricados com
potência suficiente para impulsioná-los a mais de 200km/h), provocando
acidentes cada vez mais catastróficos, ceifando vidas de crianças e adultos.
Cito as numerosas e tentadoras ofertas de bens de consumo, cada vez mais
sofisticados, mas também cada vez mais frágeis e voláteis; cito a alta
rotatividade dos empregos, criando uma multidão de desempregados; cito as redes
sociais e os meios de comunicação portáteis, onde amizades se formam com a
mesma velocidade com que são desfeitas por um simples toque no botão ‘delete’; cito as uniões afetivas,
antigamente sólidas pelo compromisso matrimonial, hoje fragilizadas pelas novas
e variegadas formas, quase sempre já definidas, ‘ab initio’ como ligações não definitivas.
Delas, citadas
somente como exemplos, pois existem muitíssimas outras, resultam as perdas
pelas mortes acidentais ou pelas mutilações incapacitantes; resultam as
decepções pela perda, seja por roubo, por processos jurídicos, ou pelas
falências; resulta a perda da saúde, levada por doenças malignas; resultam as
perdas de amigos, afinal nem tão amigos assim; resultam as perdas pelas
separações oficiais ou oficiosas. Ou seja, quanto mais se acumulam bens, mais
se tem o que perder, e mais perdas ocorrem ao longo do tempo, cada uma mais
dolorosa que a outra. E a cada perda, dependendo do grau de apego que se tem à
pessoa, cargo ou objeto perdido, maior será o sofrimento, mais doloroso será o
processo do luto que sobrevém a todas elas. Por isso mesmo, afirmam os
observadores e estudiosos do comportamento humano, vivemos numa sociedade
doente, infeliz, repleta de trapos humanos travestidos de gente bonita,
elegante, festiva em sua casca, mas mergulhada nos vícios, no álcool, nos
psicotrópicos, nas drogas alucinógenas, e quase sempre dependentes de psicólogos
e psicanalistas para, com frequência mascarar as suas dores e suas frustrações.
Tanto na cirurgia
plástica, que exerci por mais de 30 anos, e especialmente na biotanatologia que
paralelamente exerci acolhendo pessoas enlutadas, quase sempre pela morte de um
ente querido, lidei com perdas, as mais diversas. E com essas atividades
aprendi a lidar com o luto, expressão psicofísica das perdas acontecidas, e
capaz de ser trabalhado para alcançar a sua assimilação, e quase sempre a sua
superação, desde que adequadamente elaborado. Fruto desse trabalho, publiquei
os livros ‘Sobre o Viver e o Morrer’
e ‘Dizendo Adeus’.
Nessa atividade
aprendi que o processo do luto, numa evolução bem conduzida, dura em média dois
anos. Basicamente refiro-me ao luto pela morte de uma pessoa querida, contudo
todos os demais seguem caminhos semelhantes, com pequenas variações que, se bem
elaboradas, permite a sua superação. Didaticamente pode-se dizer que o primeiro
ano é bem mais intenso e doloroso, passando por quatro estágios. O primeiro,
durando de 15 a 30 dias, é quando a endorfina liberada protetoramente pelo
organismo deixa a pessoa um tanto adormecida, como se não entendesse o que
ocorreu. O segundo, ocupa os dois ou três meses seguintes, quando os amigos que
lhe deram apoio nos primeiros dias voltam, necessariamente, às suas atividades
normais – pois a vida continua – e o enlutado passa a encarar, sozinho consigo
mesmo, a perda acontecida. É certamente o período mais sofrido, pois o vazio
com que irá se deparar é por demais doloroso, levando alguns a cometerem o erro
de tentar preenche-lo logo, e de qualquer forma. Agravando o quadro, surgem
sentimentos de culpa, com a terrível pergunta : ‘o que foi que fiz para que isso acontecesse?’ E ainda : ‘e se eu tivesse agido diferentemente?’ E
outra ainda pior : ‘por que isso
aconteceu logo comigo? E logo agora?’ Para enfrentar tais dilemas, é
essencial encontrar uma pessoa, um profissional ou um conselheiro capaz de
lidar com essas situações, para que o enlutado não se deixe dominar pelo papel
de culpado, tampouco pelos sentimentos de autocomiseração. O momento é de lutar
para assumir a condição de sobrevivente, coisa que sozinho dificilmente
alcançará. Uma boa orientação é : ‘faça
tudo aquilo que o seu coração mandar, desde que não seja nada imoral, ilegal ou
danoso para si próprio ou para os outros’. Tampouco deve ser precipitado,
querendo queimar etapas, tomando atitudes sem amadurece-las e certificar-se de
que são realmente apropriadas. É bom lembrar-se de que ‘não se deve apressar o rio, pois ele corre sozinho.’ E ter muito
cuidado com os maus conselheiros, os moralistas de plantão, os que cobram
atitudes, mas pouco ou nada fazem para realmente ajudar o enlutado.
Passando essa
fase, o enlutado começa a vislumbrar uma luz no fim do túnel e os próximos
meses terão altos e baixos, momentos bons e recaídas. Mas tudo faz parte do
processo. A persistência e a paciência são soberanas. Buscar apoio na
espiritualidade é um dos caminhos mais sábios, desde que não se deixe levar por
fanatismos e proselitistas. A prática da
meditação, bem orientada, é a melhor substituta para os tranquilizantes. E entrando no
segundo ano, cada um no seu próprio tempo irá descobrindo a importância e a
alegria do viver, ocorrendo naturalmente a aceitação do que aconteceu. E o mais
significativo : verificará que as perdas seguidas de um luto bem elaborado,
tornam-se na melhor escola de vida, e de vida com qualidade. Aprenderá então a
lição mais importante : não existem ganhos sem perdas, tampouco perdas sem
ganhos.’
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