*Artigo
do Padre Daniel R. Nardin,
Missionário Comboniano
‘Escrevo de
Trujillo, no Peru. Não tenho ouro nem prata, apenas o choro de uma criança
recém-nascida, ou o olhar sereno de quem acredita na vida, ou o entusiasmo da
jovem que é confirmada e quer ser catequista, porque ama a Deus no seu próximo,
ou a misericórdia infinita de D. Elena, que, apesar de ter uma família
numerosa, arranja sempre espaço para acomodar quem chega cheio de problemas e
tristezas.
O deserto florescerá
Encontrar vida nos
recantos mais impensáveis do bairro El Porvenir em Trujillo, onde reina o
mercado da vida e da morte, é apenas uma questão de estatísticas, em que o
crime e a violência parecem ser os únicos protagonistas, uma vez que o que
fascina é somente o território dominado, o dinheiro movimentado, o poder que um
tem sobre a vida e a morte, e onde quem não tem nada para fazer e está num
canto sem dinheiro acaba alistado e treinado num ou noutro bando de criminosos.
Encontrar
perspectivas nesta terra é sempre um esforço enorme. Mas mesmo o deserto
floresce, e eu sou testemunha. Basta o orvalho, uma chuva passageira, e também
o deserto de El Porvenir fica verde, brota.
Sim, também estes
areais, onde as balas atravessam entre o ombro e pescoço e o ferido não grita :
abre desmedidamente os olhos, agarra-se à garganta e expira... onde há
iniciação na atividade do homicídio, do ataque com arma branca, depois de ter
vitoriosamente adestrado nas etapas básicas do armazenamento das armas da
organização, do agir como observador, do espiar as vítimas e praticar pequenos
furtos e assaltos. O móbil é sempre o dinheiro. O que interessa é exibir
riqueza.
Mas também El
Porvenir refloresce continuamente. Existem rasgos de vida, tais como a escrita
trêmula da criança que começa a aprender a lidar com o lápis e tenta desenhar
redondamente as suas letras imitando os adultos; os sussurros das senhoras que
aprendem a cozinhar, para ultrapassar a pobreza, dar vigor à vida diária da
família, procurar alternativas para os seus filhos; os doentes na solidão e no
desespero que aprendem a sorrir e te abraçam e dizem obrigado…
A estrela polar
que me guia neste momento é Maria Estela, com os seus olhos apagados pela
cegueira no final da sua vida, com tanto sofrimento e tanta fadiga quanto
experiência, mas também com tanta vitalidade e serenidade nesta hora suprema.
Companheiros de viagem
Nestes 32 anos que
levo no Peru, descortinei as experiências de vida mais belas e as mais
absurdas, as mais complicadas e as mais doces, em que a beleza, a fantasia e o
amor se misturam com a violência, o desprezo e o delírio. E tudo nos apanha sem
que o procuremos, sem programação e com todo o seu realismo. Retira-nos o
tapete, inquieta-nos e provoca em nós algum tipo de reação.
Vejo-me no meio de
lutas em que as facas passam de mão para mão com a velocidade de um raio; sou
testemunha de homicídios quando vou em transportes públicos para chegar à
paróquia; carrego nos sapatos a areia que piso e encontro-a também no cálice da
Eucaristia nos dias em que há vento; recebo o abraço de uma avozinha que, com
96 anos, enfrenta toda a sua família que aderiu a um grupo religioso e lhes
exige que chamem o padre católico, porque quer confessar-se e receber os santos
óleos. Recordo os seus olhinhos quase cegos, a sua voz sumida, a força com que
me agarrou a estola, as suas palavras de despedida para agradecer-me e, por
fim, o seu encontrar-se no abraço de Deus. Tudo isso me confunde e complica a
vida, me entusiasma e me obriga a estar com eles.
O Papa Francisco
ensina-nos que acompanhar significa estar com o próximo continuamente. Quem
acompanha dá sempre o primeiro passo, toma a iniciativa sem medo, aproxima-se
de todos, encontra, chega primeiro às encruzilhadas da vida, põe-se de joelhos,
encurta distâncias, toca a carne dorida do povo, está permanentemente
disponível para o outro e celebra cada pequena vitória, cada passo em frente,
ainda que incerto.
Acompanhar é
desejar um «bom-dia» a quem
encontramos na rua; é oferecer um sorriso a quem vem ter conosco; é querer
saber da saúde do amigo: «Como está?
Melhor?», é dar um aperto de mão ou um afago; é fazer o impossível pelo
outro e, quando não há mais nada a fazer porque a vida se escapa, faltam as
forças, a respiração se torna pesada, os medicamentos já não ajudam... é estar
ao lado sem desistir, acariciar, abraçar, beijar, dizer : «Amo-te, não tenhas medo. Eu estou aqui contigo. Sê forte, como foste
para Isaías.»
Estou aqui, entre
e com estas pessoas, com as crianças de 5 anos que aprendem a escrever e a sua
ardósia é o asfalto da estrada, e o giz é um pequeno pedaço de gesso encontrado
na escola. Estou próximo de Emiliano, que já sabe ler. E de Jhonel, o terrível,
que aprendeu a escrever o seu nome e agora escreve quase todas as palavras,
embora algumas com erros ou de pernas para o ar, e se ri às gargalhadas sempre
que desenha um nome, uma palavra, unindo as letras e o seu coração na alegria.
Estou aqui com Maria
Paola, enfermeira, acompanhando-a, já que, há dias, num acidente com um carro e
um caminhão, os seus dois filhos, de 13 e 17 anos, morreram, enquanto a
terceira, a mais nova dos três, está em coma. A única que se salvou foi ela…
porque não estava no carro. «Será que
Deus me castigou?», continua a perguntar-me.
E José, que vai
casar ao fim de um longo caminho de fé, que, finalmente, se encheu de luz,
depois de ele dizer o seu «sim»
àquela jovem magra, que parece mais jovem do que é. Já se sabe, o amor cresce
despercebido.
Igreja em saída
Às vezes, a
abundância de trabalho obriga-me a olhar a realidade que me rodeia com os olhos
bem abertos. Então, vivo do que vejo, sinto-me, finalmente, «Igreja em saída» e, sobretudo, com «cheiro a ovelha», tratando, por um lado,
de afugentar os lobos e procurando orientar este pequeno rebanho (as outras 99
ovelhas estão fora), e estar atento aos que vêm pedir ajuda e compaixão, por
outro. É neste espírito que me envolvo nas situações mais bizarras e
disparatadas, desejando abrir caminhos no deserto para Deus que se faz próximo
do seu povo.
Guardo a história
de um rapazinho da periferia mais extrema – dos últimos dos últimos –, onde a
vida não vale nada, que me remexeu o coração. Há muito tempo, ele vinha à missa
e à catequese com os outros. Até que deixou de comparecer. «Não o deixam vir», diziam-me os seus
colegas. E ele é um rapaz inteligente, vivaço. Na sua ausência, por vezes,
víamo-lo rondando o local da reunião com a desculpa de comprar algo. Um dia,
voltou e participou na missa com o seu pequeno grupo. E contou-nos a novidade :
tinha sido batizado numa lagoa das proximidades como membro de um pequeno grupo
evangélico. Mas disse : «Aqui está-se
melhor.» Senti compaixão... e vontade de me comprometer mais. Situações
como esta são muito delicadas, e devem ser encaradas com sabedoria.
Para nós,
comunidade de missionários combonianos, e para a comunidade cristã, estamos a
entrar numa época de sacramentos. Haverá grandes celebrações, como as primeiras
comunhões das crianças – não sabemos se bem maduras, mas, sem dúvida, ansiosas
por encontrar-se com Jesus, pão de vida e caminho de esperança, ou o crisma de
alguns jovens, que não são numerosos, mas que concordaram com ser confirmados
na fé de Jesus.
E estamos a
encerrar o ano letivo, mas a abrir os ATL de Verão para crianças, jovens e
adultos, a fim de não os deixar nas garras dos lobos, ou polvos, porque, sempre
que ficam nas ruas, entregando-se ao ócio ou aos vícios, acabam num gangue. E
acompanhamos as crianças da escola especial e aos seus papás, que os querem
protagonistas das suas vidas.
O meu coração
ferve, queima. Mas não pode ser de outra maneira, com todo este mundo no areal
à frente dos olhos.
E as estrelas?
Elas sorriem no céu de Trujillo e piscam o olho à vida.’
Fonte :
* Artigo na íntegra http://www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EuAylFkkVkXkbFqIUm
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