*Artigo
de Ângela de Fátima Coelho,
Postuladora das causas de canonização de Francisco e Jacinta Marto
‘Olhamos a vida
dos irmãos Francisco e Jacinta Marto como quem se deixa desafiar pela sua
entrega humilde e comprometida — até ao extremo (Jo 13,1) — aos desígnios de
misericórdia de Deus anunciados pela Senhora de Fátima. São duas crianças com
uma maturidade de fé impressionante, que assumem a mensagem trazida pela
Senhora do Rosário, vestida de luz, como seu programa de vida. As suas
biografias apontam à Igreja um jeito de viver à luz do Evangelho, um estilo de
viver que se faz de humildade, disponibilidade e compromisso, um jeito de viver
cristiforme. São duas crianças que conheceram a beleza de Deus e aceitaram ser
reflexos dela para o mundo.
Francisco e
Jacinta Marto nasceram em Fátima — uma paróquia que pertence hoje à diocese de
Leiria-Fátima, Portugal — no início do conturbado século XX. São os mais novos
dos sete filhos do casal Manuel Pedro Marto e Olímpia de Jesus. Francisco
nasceu em 11 de junho de 1908 e foi batizado no dia 20 desse mês. A sua irmã
Jacinta Marto nasceu em 11 de março de 1910 e foi batizada no dia 19 desse mês.
Os irmãos receberam uma educação cristã simples, mas marcada pelo exemplo de
vida comprometida com a fé : a participação dominical na eucaristia, a oração
em família, a verdade e o respeito por todos, a caridade para com os pobres e
os necessitados. Francisco era um menino pacato e pacífico, apaixonado pela
contemplação da criação. Com seus companheiros era sinal de concórdia, mesmo na
ofensa e na desavença. Jacinta, por seu lado, tinha um caráter carinhoso e
terno, embora bastante caprichoso. Tinha um particular carinho pela prima Lúcia
e uma sensibilidade muito impressiva.
Ainda muito novos,
começam a pastorear o rebanho de seus pais : tinha o Francisco 8 anos de idade
e a Jacinta 6. Passavam grande parte dos seus dias na tarefa de acompanhar as
ovelhas, na companhia da prima Lúcia, que também era pastora.
Na primavera de
1916, Francisco e Jacinta, na companhia da prima Lúcia foram arrebatados pela
contemplação de uma «luz mais branca que
a neve, com a forma de um jovem» e imersos numa atmosfera intensa em que a
força da presença de Deus os «absorvia e
aniquilava quase por completo». Era o Anjo da Paz, que os visitaria por
três vezes, na primavera, verão e outono de 1916. Nas suas palavras e com os
seus gestos, o Anjo fala-lhes do coração de Deus atento à voz dos humildes
sobre quem tem «desígnios de misericórdia»,
convida-os à atitude da adoração. No último encontro, o Anjo oferece-lhes o
Corpo e o Sangue de Cristo, o Dom primordial à luz do qual os videntes serão
convidados a oferecer-se em sacrifício por todos os «homens ingratos». A vida de Francisco e Jacinta conhece ali a sua
vocação : encher de Deus os olhos e o coração e tornar-se espelho dessa
presença cuidadora, oferecendo as suas vidas como dom pelos demais.
Em 13 de maio de
1917, encontrando-se as três crianças na Cova da Iria, foram surpreendidos pela
presença de uma ‘Senhora mais brilhante
que o sol’ que lhes disse ser do Céu. A Senhora pediu-lhes que voltassem à
Cova da Iria seis meses seguidos, em cada dia 13, que, na aparição final, lhes
revelaria quem era e o que queria. Entretanto, convocou os pastorinhos a
oferecerem a sua vida inteiramente a Deus. ‘Quereis
oferecer-vos a Deus?’, foi a pergunta fundamental das suas vidas. Os três
videntes acolheram o convite da Senhora : ‘Sim,
queremos’, e viram a sua disponibilidade ser confirmada por uma luz imensa
que as mãos da Virgem ofereciam e que penetrou o seu íntimo, fazendo-os ver a
si mesmos «nessa luz que era Deus».
Na aparição de
julho, a Senhora revela às três crianças o que ficou conhecido como o Segredo
de Fátima, que consta de uma visão em tríptico — o inferno; o Imaculado Coração
de Maria; e a Igreja mártir a caminho da Cruz. Esta visão causará grande
impacto em Francisco e Jacinta e levá-los-á a comprometerem-se, pela oração e
pelo sacrifício, na conversão dos pecadores e na oração pela Igreja.
Depressa se
espalhou a notícia da presença da Senhora do Rosário e o número de curiosos e
peregrinos que afluíam à Cova da Iria aumentava a cada mês. Para os irmãos
Marto, as constantes solicitações, os intermináveis e extenuantes
interrogatórios, as acusações de fraude ou de avidez, ou mesmo as pressões e ameaças
a que foram sujeitos foram fonte de grande sofrimento. Viveram este sacrifício
na presença de Deus, tudo relativizando diante do amor de Deus e a Deus.
O último encontro,
em 13 de outubro de 1917, é presenciado por uma grande multidão que se torna testemunha
do sinal prometido pela Senhora do Rosário. Francisco e Jacinta levarão desse
derradeiro encontro a bênção que recebem de Cristo e que há de marcar
definitivamente os seus dias com os pedidos da Senhora do Rosário : a oração do
rosário, o amor sacrificial pelos irmãos, o olhar misericordioso sobre os
dramas do mundo.
A partir daqueles
encontros inauditos, Francisco e Jacinta passam a viver focados em Deus. Nada
mais lhes preenche o coração. Ao olhar as suas biografias de fé, a Igreja
encontrará o rosto de Cristo e sentir-se-á interpelada à fidelidade do
discipulado cristão. Se a espiritualidade de Francisco foi particularmente
marcada pela contemplação e se a de Jacinta se caracterizou pela compaixão, a
Igreja encontrará nos seus dois mais novos santos um modelo do que ela mesma é
chamada a ser : contemplativa, com os olhos repletos de Deus, e compassiva, com
as mãos empenhadas na transformação do mundo.
O Francisco foi um
menino centrado no essencial. Tinha uma dimensão contemplativa de que ninguém suspeitaria
que uma criança fosse capaz. Viveu uma vida unificada em Deus. Gostava de se
esconder para «pensar em Deus» a sós,
e a sua felicidade maior era estar com o seu amigo, «Jesus escondido». O Francisco percebeu muito bem que o Anjo e a
Senhora do Rosário apontavam um caminho que conduzia a Deus. A certa altura,
ele diz : «Gostei muito de ver o Anjo,
mas gostei ainda mais de Nossa Senhora. Do que gostei mais foi de ver Nosso
Senhor, naquela luz que Nossa Senhora nos meteu no peito».
A Jacinta foi uma
menina apaixonada e comprometida. Ela viveu comprometida com o amor a Deus e a
toda a humanidade. Impressionava-se com o sofrimento dos outros, sobretudo com
o sofrimento da Igreja, na figura do Santo Padre, e com o sofrimento dos
pecadores. E o seu compromisso leva-a a assumir esse sofrimento pela entrega de
si. Ela vive com o desejo de incendiar em todos o amor de Deus. Diz ela, em
certa ocasião : «Se eu pudesse meter no
coração de toda a gente o lume que tenho cá dentro no peito a queimar-me e a
fazer-me gostar tanto do Coração de Jesus e do Coração de Maria!».
O processo de
canonização dos pastorinhos é o reconhecimento diante do Povo de Deus de que
estas crianças, que encarnam o acontecimento de Fátima, chegaram, como diz a
carta aos Efésios, «ao homem adulto, à
medida completa da plenitude de Cristo» (Ef 4, 13). Canonizá-los é
sobretudo reconhecer a sua fidelidade ao compromisso assumido no regaço de
Maria de, em tudo, ser fiel a Jesus. Canonizá-los é também confirmar o que já
reconhecemos : que Fátima é uma escola de santidade que aponta para a plenitude
da vida em Deus. Como dizia São João Paulo II, ao beatificar os dois pequenos
pastores, «a Igreja quer colocar sobre o
candelabro estas duas candeias que Deus acendeu para alumiar a humanidade nas
suas horas sombrias e inquietas».
Somos convidados a
continuar a levar aos cristãos a vida destas crianças, como testemunho da vida
em Deus, e a continuar a interceder pelos cristãos junto das crianças, como
intercessores junto de Deus. No centenário das Aparições de que foram
testemunhas e com cuja mensagem se comprometeram até ao extremo, evocar a vida
de Francisco e de Jacinta e celebrar a sua entrega generosa a Deus é procurar a
mesma contemplação e compaixão que eles viveram, e confiar as nossas vidas nas mãos
de Deus, pela intercessão da Senhora do Rosário e destes pequenos pastores
segundo o coração de Deus (Jr 3, 15).
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