terça-feira, 20 de agosto de 2013

Tornar-se monge na sociedade secular de hoje (Capítulo 2 de 2)

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB) 

 
IV – O Outro
Falamos sobre dois aspectos do mundo interior do jovem monge – a apropriação de sua herança humana como intelectual e como poeta, isto é, como alguém que pensa e alguém que sente. Falamos, então, sobre o ser humano em sua ‘solidão’, em sua experiência de si mesmo. Mas sabemos que solidão representa um polo da vida humana e que necessita para completar-se o polo da comunhão. O poeta tcheco Rilke afirmou que cada um de nós tem o dever de tornar-se um universo inteiro para depois entregar-se a um outro como dom. as nossas constituições trapistas comunicam esta mesma intuição quando dizem que nossa vivência monástica exige tanto uma grande capacidade para solidão como para a vida comunitária. E o nosso abade geral atual gosta de chamar-nos de ‘cenobitas no deserto’. Moramos no deserto monástico, sim, na separação geográfica da cidade e na privacidade de nosso coração. Mas vivemos juntos, e isto é essencial à nossa vocação monástica e humana.
O jovem brasileiro – e nisto ele é muito parecido com seus primos, os jovens do mundo inteiro, embora com uns toques particulares – encontra muito rapidamente dificuldades sérias neste caminho de comunhão. É quase certo que, provindo da cultura global, ele morava num ambiente precocemente sexualizado, e absorvia os valores desta cultura. Aqueles que se apresentam à porta do mosteiro como vocacionados raramente falam da experiência de uma longa e profunda amizade. Pulam, durante a entrevista, da família de origem para o primeiro namoro. Este pulo significa mais do que um lapso de memória. Ao contrário, deixa ver acertadamente um buraco importante em seu desenvolvimento. Ficou roubado, muitas vezes, da experiência de um compromisso afetivo, mas não fundamentalmente sexual, a aliança da amizade, onde realidades como idealismo, admiração e generosidade costumam despertar e florescer. Desde Homero na literatura grega e a primeira monarquia no Antigo Testamento, a amizade é visualizada como um dos aspectos mais preciosos da aventura humana, onde tranquilidade e paixão, sacrifício e realização, diferença e identidade brincam produtivamente entre si. Sei que nos lares brasileiros muitas destas qualidades acima mencionadas exprimem-se num contexto familiar, e também que o namoro/noivado/casamento constitui um dos mais fertéis campos imagináveis para o amadurecimento do ser humano. Mesmo assim, muitas vezes perde-se o momento entre lar e casamento, um momento que deve representar uma graça particular estável, uma forma vitalícia da intimidade humana.
Então, os nossos jovens entram no mosteiro. Quer dizer, para nós velhos, depois de muita transformação, é um mosteiro. Para eles, sobretudo quando entram sem esta experiência profunda de amizades (amizades particulares e grupos de amigos), a realidade é outra. Automaticamente, o mosteiro assume a tonalidade – a cara – de um time ou de uma sala de aula ou de uma vizinhança ou de um escritório/fábrica ou de um curso pré-vestibular, ou simplesmente da rua. Assim criamos todos nós o nosso mundo. Portanto, espontaneamente os jovens pegam na pasta de atitudes e práticas conhecidas. Por exemplo :
1)      Desconfiança : O jovem vive com medo de chamar atenção, acreditando que mais cedo ou mais tarde, atenção fatalmente vira zombaria. Se ele faz muito bem, está ‘puxando saco’; se ele fracassa, ele era um vaidoso, um idiota, por ter tentado aquilo que não tinha condições de realizar. Além de abafar sua criatividade – melhor ficar cabisbaixo e sumir no rebanho – esta desconfiança generalizada facilmente leva a um sentimento de hostilidade, tanto de sentir hostilidade quanto de sentir-se hostilizado. Quando isto acontece (e ainda não vi uma exceção), surge a tentativa de evasão. 
2)     Evasão : Tira o fôlego testemunhar com que rapidez os jovens podem apagar-se mutuamente do livro da vida : ‘Ele não presta’. Perdoam uma, duas, até três vezes, e depois (estou falando ironicamente ‘criam juízo’. Descobrem que este sujeito é perigoso, agressivo, mal educado, racista, etc. Nestas condições, pensam eles, o comportamento mais acertado é criar uma boa distância afetiva. Você fique em seu canto do mosteiro e eu fico no meu. Só que isto não pode dar certo. O mosteiro é pequeno demais, os encontros constantes demais para permitir uma boa guerra fria. Mais uma vez a sabedoria da cidade revela-se como penosamente inadequada no contexto monástico. Espiritualmente, a tática de evasão representa um contra-valor inaceitável numa sociedade de comunhão, como o mosteiro pretende ser. E depois, é um crime sem lucro. Busco com grande empenho colocar um espaço suficiente entre mim mesmo e aquele que eu chamo (com ênfase signiticativa) ‘Meu irmão’, mas ele continua vivendo no mosteiro e até ocupa alguns andares na casa da minha cabeça. Paciência! Donde vem esta tendência para desconfiança-hostilidade-evasão? Ao meu ver, em grande parte vem do treinamento insuficiente das emoções.   
3)     Treinamento insuficiente das emoções : Um fenômeno espantoso, que manifesta-se hoje em dia como norma, é a incapacidade de processar frustrações. Os nossos antepassados aceitavam com relativa calma que a vida é frustrante, que todo dia vai trazer sua pitada da contradição e que o ser humano mostra o seu estado de adulto superando as frustrações, incorporando-as em sua experiência e assim tornando-se mais livre das circunstâncias e mais aberto a elas. Os herdeiros de nossos antepassados (quer dizer, nós) em vez de contemplarmos as frustrações cotidianas da vida como um elemento normal, se não enriquecedor, as consideram como um insulto insuportável. Um golpe! Um baque! Uma facada! Cito estas três exclamações que ouço todo dia (tem outras) para indicar uma resposta às pequenas irritações que já bem enraizou-se em nossa cultura. Aqui no Brasil vejo entre os jovens uma oscilação preocupante entre ira e tristeza, como reações a estas provocações diárias e, frequentemente, reações desproporcionais. Me parece que entre as duas respostas aquela que mais predomina é a tristeza, e eu gosto de brincar com minha comunidade que a frase que eu mais escuto é (em voz chorosa) : ‘É difícil’ (aliás, para consolá-los, digo que se o brasileiro é mais suscetível ao vício da tristeza, o americano cai mais facilmente na armadilha da soberba. Por alguma razão, esta afirmação normalmente traz alívio). 
 
O que é a tarefa do pai espiritual, imitador de Jesus,
neste ninho de vespas?
            Me parece que ele tem que constituir um contrapeso a estas tendências, ou melhor, fazer exorcismo destes demônios. Não há dúvida : tal desconfiança, hostilidade, evasão, impaciência, irritação e melancolia vão além de ser sintomas do estresse do mundo pós-moderno. Surgem de uma experiência deturpada do próximo e do ambiente interpessoal, uma experiência que estimula os hormônios de superficialidade, esperteza e excessiva prudência e que impedem o florescimento de um clima de repouso e certeza, onde gestos como o sorriso, o aperto da mão, o abraço da paz na missa, o pedido de perdão são mini-sacramentos, isentos de uma interpretação ambígua. São Máximo Confessor, monge e teólogo do século VII, ensinava que os homens são capazes de negligência; quando manisfestam hostilidade e condenação, é um sinal seguro da atuação do Maligno.
            O pai espiritual responde a estas forças malignas por sua recusa de entrar em diálogo com elas. Na presença daqueles sentimentos que acabei de citar, e que certamente o convidam a ‘entrar na onda’ – convite cuja força ele mesmo sente por causa da persistência das consequências do pecado – ele vai agir contra a mentira. A gente pensa nos manifestos de Jesus no Sermão da Montanha, de São Francisco de Assis em sua celebrada oração (‘Senhor, fazei de mim um instrumento de vossa paz’), de Tolstoi e de Gandhi, e a gente vê que a ‘violência’ de insistir em ver a presença divina no outro, acreditar nele e perseverar em fazer-lhe o bem é muito mais poderosa do que a nuvem de poeira criada por nossos medos e agressividades. Tanto quanto o mestre encontra-se como alvo da desconfiança/agressão quanto ele testemunha uma situação negativa entre outros irmãos, ele vai buscar rasgar o véu da mentira. Seu método não consiste em desmascarar a projeção (‘Você está vendo tal coisa deste jeito por causa do negativismo que você traz em si mesmo’), nem em moralizar, mas em fazer visível de novo o verdadeiro rosto espiritual dos brigados.
            Nisso, ele vai encontrar uma grande ajuda no uso abundante e benevolente do humor. A maior bênção do humor é precisamente apontar numa maneira aceitável para o exagero, a dureza, a amargura, a autopiedade – em breve, para o venenoso numa determinada tomada de atitude. O humor contemplativo identifica-se com o irmão irracional (‘Veja como nós dois podemos agir como loucos, quando queremos’), e o chama de volta para a razão e a paz. O humor contemplativo admite que o irmão irritado tem razão, pelo menos em parte, mas coloca a pergunta : O que você – o que nós – vamos ganhar se você continuar resmungando; o que você – o que nós – poderíamos ganhar se você parasse de resmungar e começasse a cantar de novo com a gente? O humor contemplativo aproveita do direito de cutucar (um dos meus apelidos na comunidade é ‘o grande cutucador’) sem magoar. Diz-se que o que o diabo mais teme é ser ridicularizado; quando o pai espiritual consegue mostrar a bobagem no comportamento do irmão por uma cutucada que dá em cheio, o demônio foge e o irmão retorna a ser ele mesmo. Assim como disse que quando trata-se da apropriação de uma história dolorosa por parte de um noviço, o mestre tem que saber chorar e calar-se; quando o assunto é a purificação da comunidade das tendências belicosas e afastadoras, o mestre tem que rir e fazer o outro rir. Isto já é conversão, quando a dificuldade reside em vaidade e hiper-sensabilidade. Várias parábolas de Jesus pretendem levar pessoas do mundo fechado deles para o reino de Deus justamente por meio de uma gargalhada. 
 
V – O Compromisso
Alguns anos atrás, um professor de sociologia deu um curso para os professos trienais trapistas norte-americanos. Ao ouvir a pergunta, se haveria um fator que mais dificultava a formação monástica hoje em dia, respondeu imediatamente, ‘Sem dúvida. A impossibilidade do jovem comprometer-se’. Provavelmente, esta resposta não nos surpreende, porque o fenômeno da instabilidade é mundial em suas dimensões, mas não deve faltar de deixar-nos assutados. Apesar da afirmação recente de um presidente de uma faculdade ‘Ivy League’, Yale, ‘Vemos agora que uma vida bem sucedida não é uma linha reta, mas uma série fecunda de zigue-zagues’, não podemos perder a consciência que compromisso é a grande condição para comunhão, para maturidade, para o verdadeiro bem estar, e finalmente, para a manutenção do contrato social, isto é, para a continuação da sociedade. Foi Kierkegaard que asseverou, no título de um de seus livros, ‘Pureza de coração significa desejar uma coisa só’; foi Jung que insistiu que as tarefas mais profundas da vida só podem ser cumpridas por aqueles que permanecem fielmente num único propósito.
O grande bloqueio surge de uma ignorância e uma impotência. A ignorância consiste em não saber que a nossa identidade é necessariamente social. Ninguém entra na gruta de tesouros do seu próprio ser a não ser por uma interação estável com um comunidade.
Identidade depende da identificação. Aquele que borboleteia na sua vida acaba sendo apenas um punhado de pó colorido. A impotência consiste em não poder assumir o trabalho sacrificante de tornar-se peça viva e vivificante de um organismo meta-individual, de morrer à uma identidade independente e ressurgir como parte de um ou outro corpo místico (no fim das contas, qualquer família, qualquer verdadeira comunidade é também um corpo místico). Lembra-se da citação de Rilke – Primeiro a gente tem que crescer para ser um universo para depois dar-se a um outro. Aqui estamos tratando deste segundo momento, do dom mútuo dos universos. Igualmente São Bento ensina que o monge que pretende unir-se com Deus e consigo mesmo vai chegar ao seu objetivo somente mergulhando-se, ativa e afetivamente, na comunidade, suas tradições e mais ainda, com seu pessoal.
Isto traz à tona um desafio particular do compromisso monástico. O que o monge deseja acima de tudo é unir-se com Deus. Neste caso, não há ignorância nenhuma que a sua própria auto-realização depende de uma sintonia progressiva com Deus, uma ‘união de Espírito’ com Deus, para empregar o termo clássico. Por outro lado, a dificuldade de abir-se à irrupção da vida divina em sua vida é enorme, é literalmente espantosa. Uma ativa receptividade às ‘mexidas’ de um Deus invisível, transcendente e nem sempre delicado constitui a grande aventura e o grande sofrimento da vocação contemplativa. De fato, esta irrupção de Deus na vida da gente forma o drama inteiro da nossa vivência. A luta para conhecimento de si mesmo, para desenvolvimento do intelecto, para a superação das paixões nas interações comunitárias – todas estas realidades são reflexos da grande iniciativa de Deus de formar uma só coisa com um pobre mortal. É a sombra jogada por sua aproximação que põe em movimento todos estes processos.
A grande tentação do jovem monge é de dissociar os elementos desta atividade única : o unir-se de Deus com sua criação. O jovem quase morre de medo e de dor, sentindo os dedos de Deus nele, dedos que segundo João da Cruz são perfeitamente capazes de queimar e não somente acariciar. O jovem sente que uma fresta – qual um abismo está abrindo-se nele para deixar o Todo Poderoso (bom, ruim?) entrar e não sabe se vai aguentar, tem quase certeza que não. Portanto, ele quer negar a necessidade de viver estes dois processos simultaneamente. Para unir-se a Deus, pensa ele, não deve ser indispensável passar por tudo isto com os irmãos. Ele vem a perceber que a comunidade é impiedosa, que ela insiste em mantê-lo no centro da arena, e também que em vez de suavizar o sofrimento vertical místico acrescenta o sofrimento horizontal, através de transtornos, friezas, grosserias. Quando damos conta da fragilidade dos jovens, vemos o tamanho de heroísmo pedido por nossa vida simples e repetitiva. E percebemos que a perseverança na fé, esperança e caridade é um milagre.
Se o pai espiritual pode ajudar aqui? Certamente por meio da oração, porque o mistério fica essencialmente entre Deus e o jovem. Rezando igualmente para si mesmo, para não forçar a liberdade do jovem (e assim prejudica-la permanentemente), mas ao mesmo tempo para não deixar esta liberdade do jovem sem as dicas que ela necessita. Além disso, há duas forma de ajuda que o pai pode prestar. Cada vez que ele percebe a mão do Senhor tocar num de seus irmãos para prová-lo, ele deve viver seu próprio compromisso com uma pureza e fidelidade intensificada. Se o assunto é de identificação, ele em primeiro lugar tem que identificar-se com o provado, o purificado, em oração assídua e em oferta de si mesmo. Ficar com ele, à medida que isto é possível, entrar livremente em comunhão com este irmão em tudo o que este sofre, como prece silenciosa, que o irmão chegue àquela comunhão profunda com Deus e com a comunidade que o impelia a entrar no mosteiro.
A segunda forma de ajuda é de abrir seu coração, revelar seus segredos. Tem muita coisa hiperpessoal na vida monástica – toda a história de intimidade e dor entre Deus e a gente – que nunca deve ser falada (foi São Bernardo que gostava de repetir ‘O meu segredo é meu’).  
A grande exceção se encontra nestes tempos de provação do discípulo. Nestes momentos, o mestre pode falar do mistério que ninguém conhece, este mistério que pode exercer um poder divino por ser o mais precioso, quase o único bem precioso que ele possui. É o vaso de bálsamo que ele quebra e jorra sobre seu discípulo para ungí-lo em sua hora. Assim como Jesus fez do fim do seu ministério um desvelar-se absoluto : ‘Agora eu posso chamar-vos de amigos, porque tudo o que ouvi de meu Pai eu vos dei a conhecer’ (Jo 15,15).
 
 

Santo Agostinho de Hipona (Capítulo 5 de 5)

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB) 


5. Vicissitudes interiores 

            Com este capítulo gostaria de concluir a apresentação da figura de Santo Agostinho. Depois de termos analisad0 a sua vida, as suas obras e alguns aspectos do seu pensamento, hoje gostaria de falar de novo sobre a sua vicissitude interior, que fez dele um dos maiores convertidos da história cristã. Dediquei a esta sua experiência em particular a minha reflexão durante a peregrinação que realizei a Pavia para venerar os despojos mortais deste Padre da Igreja. Detse modo, quis expressar-lhe a homenagem de toda a Igreja Católica, mas também tornar visível a minha pessoal devoção e reconhecimento em relação a uma figura à qual me sinto muito ligado pela parte que teve na minha vida de teólogo, de sacerdote e de pastor.
 
            Ainda hoje é possível repercorrer a vicissitude de Santo Agostinho graças sobretudo às Confessiones, escritas para louvor de Deus e que estão na origem de uma das formas literárias mais específicas do Ocidente, a autobiografia, isto é, a expressão pessoal da consciência de si. Pois bem, quem quer que tome conhecimento deste livro extraordinário e fascinante, ainda hoje muito lido, apercebe-se facilmente do modo como a conversão de Agostinho não tinha sido improvisada nem plenamente realizada desde o início, mas possa antes ser definida um verdadeiro caminho, que permanece um modelo para cada um de nós. Este itinerário teve certamente o seu ápice com a conversão e depois com o Batismo, mas não se concluiu naquela Vigília Pascal do ano 387, quando em Milão o retórico africano foi batizado pelo bispo Ambrósio. De fato, o caminho de conversão de Agostinho prosseguiu humildemente até o fim da sua vida, a ponto que se pode verdadeiramente dizer que as suas diversas etapas – pode-se distinguir facilmente três – são uma única grande conversão.
 
            Santo Agostinho foi um pesquisador apaixonado da verdade : desde o início e depois em toda a sua vida. A primeira etapa do seu caminho de conversão realizou-se precisamente na progressiva aproximação ao Cristianismo. Na realidade, ele tinha recebido da mãe Monica, à qual permaneceu sempre muito ligado, uma educação cristã e, apesar de ter vivido durante os anos juvenis uma vida desregrada, sentiu sempre uma atração profunda por Cristo, tendo bebido o amor pelo nome do Senhor com o leite materno, como ele mesmo ressalta (cf. Confessiones, III, 4,8). Mas também a filosofia, sobretudo de índole platônica, tinha contribuído para o aproximar ulteriormente a Cristo manifestando-lhe a existência do Logos, a razão criadora. Os livros dos filósofos indicavam-lhe que há a razão, da qual vem depois todo  o mundo, mas não lhe diziam como alcançar este Logos, que parecia tão distante. Só a leitura do espistolário de São Paulo, na fé da Igreja Católica, lhe revelou plenamente a verdade. Esta experiência foi sintetizada por Agostinho numa das páginas mais famosas das Confessiones : ele narra que, no tormento das suas reflexões, tendo-se retirado num jardim, ouviu uma voz infantil que repetia uma cantilena que nunca tinha ouvido : tolle, lege, tolle, lege, ‘toma, lê, toma, lê’ (VIII, 12,29). Recordou-se então da conversão de Antonio, pai do monaquismo, e com solicitude voltou ao código paulino que até há pouco tinha nas mãos, abriu-o e o seu olhar caiu na passagem da epístola aos Romanos onde o Apóstolo exorta a abandonar as obras da carne e a revestir-se de Cristo (13, 13-14). Tinha compreendido que aquela palavra naquele momento se dirigia pessoalmente a ele, vinha de Deus através do Apóstolo e indicava-lhe o que fazer naquele momento. Sentiu assim dissipar-se as trevas da dúvida e encontrou-se enfim livre para se doar totalmente a Cristo : ‘Tinhas convertido a ti o meu ser’, comenta ele (Confessiones, VIII, 12,30). Foi esta a primeira e decisiva conversão.
 
            O retórico africano chegou a esta etapa fundamental do seu longo caminho graças à sua paixão pelo homem e pela verdade, paixão que o levou a procurar Deus, grande e inacessível. A fé em Cristo fez-lhe compreender que Deus, aparentemente tao distante, na realidade não o era. Ele, de fato, tinha-se feito próximo de nós, tornando-se um de nós. Neste sentido, a fé em Cristo levou a cumprimento a longa pesquisa de Agostinho sobre o caminho da verdade. Só um Deus que se fez ‘próximo’, um de nós, era finalmente um Deus ao qual se podia rezar, pelo qual e com o qual se podia viver. Este é um caminho a percorrer com coragem e ao mesmo tempo com humildade, na abertura a uma purificação permanente da qual cada um de nós tem sempre necessidade. Mas com aquela Vigília Pascal de 387, como dissemos, o caminho de Agostinho não estava concluído. Tendo regressado à África e fundado um pequeno mosteiro, retirou-se aí com poucos amigos para se dedicar à vida contemplativa e de estudo. Este era o sonho da sua vida. Agora era chamado a viver totalmente pela verdade, com a verdade, na amizade de Cristo que é a verdade. Um sonho agradável que durou três anos, até quando foi consagrado sacerdote, a seu mau grado, em Hipona e destinado a servir os fiéis, continuando a viver com Cristo e por Cristo, mas ao serviço de todos. Isto era para ele muito difícil, mas não simplesmente para a sua contemplação particular, podia realmente viver com Cristo e por Cristo. Assim, renunciando a uma vida apenas de meditação, Agostinho aprendeu, muitas vezes com dificuldade, a por à disposição o fruto da sua inteligência em benefício do próximo. Aprendeu a comunicar a sua fé ao povo simples e a viver assim para ela naquela que se tornou a sua cidade, desempenhando incansavelmente uma atividade generosa e difícil que descreve do seguinte modo num dos seus belos sermões : ‘Continuamente pregar, discutir, repreender, edificar, estar à disposição de todos é uma grande tarefa, um grande peso, uma enorme fadiga.’ (Serm. 339,4) Mas ele assumiu sobre si este peso, compreendendo que precisamente assim podia estar mais próximo de Cristo. Compreender que se chega aos outros com simplicidade e humildade, foi esta a sua verdadeira e segunda conversão.
 
            Mas há uma última etapa do caminho agostiniano, uma terceira conversão : a que o levou todos os dias da sua vida a pedir perdão  a Deus. Inicialmente tinha pensado que quando fosse batizado, na vida de comunhão com Cristo, nos Sacramentos, na celebração da Eucaristia, teria alcançado a vida proposta pelo sermão da montanha : a perfeição doada no Batismo e reconfirmada na Eucaristia. Na última parte da sua vida compreendeu o que tinha dito nas suas primeiras pregações sobre o sermão da montanha, isto é, que agora nós como cristãos  vivemos este ideal permanentemente, era errado. Só Cristo realiza verdadeira e completamente o Sermão da montanha. Nós temos sempre necessidade de ser lavados por Cristo, que nos lava os pés, e por Ele renovados. Temos necessidade de uma conversão permanente. Até o fim temos necessidade desta humildade que reconhece que somos pecadores a caminho, enquanto o Senhor nos dá a mão definitivamente e nos introduz na vida eterna. Agostinho faleceu com esta última atitude de humildade, vivida dia após dia.
           
            Esta atitude de humildade profunda diante do único Senhor Jesus introduziu-o na experiência de humildade também intelectual. De fato, Agostinho, que é uma das maiores figuras na história do pensamento, quis nos últimos anos da sua vida submeter a um lúcido exame crítico as suas numerosas obras. Tiveram assim origem as Retractationes (‘revisões’), que deste modo inserem o seu pensamento teológico, verdadeiramente grande, na fé humilde e santa daquela a que chama simplesmente com o nome de Catholica, isto é, da Igreja. ‘Compreendi’, escreve precisamente neste livro muito original (I, 19,1-3), ‘que um só é verdadeiramente perfeito e que as palavras do sermão da montanha estão totalmente realizadas num só : no próprio Jesus Cristo. Toda a Igreja, ao contrário todos nós, inclusive os Apóstolos, devemos rezar todos os dias : perdoai-nos os nossos pecados assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido.
 
            Convertido a Cristo, que é verdade e amor, Agostinho, segiu-O toda a vida e tornou-se um modelo para cada ser humano, para nós todos em busca de Deus. Por isto, quis concluir a minha peregrinação a Pavia recomendando idealmente à Igreja e ao mundo, diante do túmulo deste grande apaixonado de Deus, a minha primeira encíclica, intitulada Deus caritas est. De fato, ela deve muito, sobretudo na primeira parte, ao pensamento de Santo Agostinho. Também hoje, como no seu tempo, a humanidade precisa conhecer e sobretudo viver esta realidade fundamental : Deus é amor e o encontro com Ele é a única resposta às inquietações do coração humano. Um coração habitado pela esperança, talvez ainda obscura e inconsciente em muitos dos nossos contemporâneos, mas que para nós cristãos abre hoje ao futuro, a ponto que São Paulo escreveu que ‘na esperança somos salvos’ (RM 8,24). Quis dedicar à esperança a minha segunda encíclica, Spe salvi, e também ela é amplamente devedora a Agostinho e ao seu encontro com Deus.
 
            Num bonito texto, Santo Agostinho define a oração como expressão do desejo e afirma que Deus responde alargando a Ele o nosso coração. Por nosso lado, devemos purificar os nossos desejos e as nossas esperanças para acolher a doçura de Deus (cf. In I Ioannis, 4,6). De fato, só ela, abrindo-nos também aos outros, no salva. Rezemos, portanto, para que na nossa vida nos seja concedido todos os dias seguir o exemplo deste grande convertido, encontrando como ele em cada momento da nossa vida o Senhor Jesus, o único que nos salva, purifica e concede a verdadeira alegria, a verdadeira vida.
 
(27 de fevereiro de 2008)
 

Santo Agostinho de Hipona (Capítulo 4 de 5)

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB) 


4. Obras
 
            Santo Agostinho é o Padre da Igreja que deixou o maior número de obras, e hoje pretendo falar delas brevemente. Alguns dos escritos agostinianos são de importância fundamental, e não só para a história do Cristianismo, mas para a formação de toda a cultura ocidental : o exemplo mais claro são as Confessiones, sem dúvida um dos livros da antiguidade cristã ainda hoje muito lido. Como diversos padres da Igreja dos primeiros séculos, mas em medida incomparavelmente mais ampla, também o bispo de Hipona exerceu de fato uma influencia alargada e persistente, como é demonstrado pela superabundante tradição manuscrita das suas obras, que deveras são numerosíssimas.
 
            Ele mesmo as passou em revista alguns antes de morrer nas Retractationes e pouco depois da sua morte elas foram cuidadosamente registradas no Indiculus (‘elenco’), acrescentado pelo amigo fiel Possídio à biografia de Santo Agostinho, Vita Augustini. O elenco das obras de Agostinho foi realizado com a intenção explícita de salvaguardar a sua memória enquanto a invasão vândala se expandia em toda a África romana, e conta mil e trinta escritos enumerados pelo seu autor, com outros ‘que não podem ser numerados, porque não os enumerou’. Bispo de uma cidade próxima, Possídio ditava estas palavras precisamente a Hipona, onde se tinha refugiado e assistira à morte do amigo e quase certamente se baseava no catálogo da biblioteca pessoal de Agostinho. Hoje, são mais de trezentas as cartas de bispo de Hipona que sobreviveram e quase seiscentas as homilias, mas elas eram muitas mais, talvez até entre as três mil e as quatro mil, fruto de quarenta anos de pregações do antigo reitor que tinha decidido seguir Jesus e falar já não aos grandes da corte imperial, mas à simples população de Hipona.
 
            Ainda em anos recentes, as descobertas de um grupo de cartas e de algumas homilias enriqueceram o nosso conhecimento deste grande Padre da Igreja. ‘Muitos livros’, escreve Possídio, ‘foram por ele compostos e publicados, muitas pregações foram feitas na igreja, transcritas e corrigidas, quer para contestar os diversos hereges quer para interpretar as sagradas Escrituras dos santos filhos da Igreja. Estas obras, ressalta o bispo amigo, são tantas que dificilmente um estudioso tem a possibilidade de as ler e aprender a conhece-las.’ (Vita Augustini, 18,9)
 
            Entre a produção literária de Agostinho, portanto, mais de mil publicações subdivididas em escritos filosóficos, apologéticos, doutrinais, morais, monásticos, exegéticos, anti-hereges, além, precisamente, das obras excecionais de grande alcance teológico e filosófico. Antes de tudo, é preciso recordar as já mencionadas Confessiones, escritas em treze livros entre 397 e 400 para louvor de Deus. Elas são uma espécie de autobiografia na forma de um diálogo com Deus. Este gênero literário reflete precisamente a vida de Santo Agostinho, que era uma vida não fechada em si, dispersa em tantas coisas, mas vivida substancialmente como diálogo com Deus, e assim uma vida com os outros. Já o título Confessiones indica a especificidade desta autobiografia. Esta palavra confessiones no latim cristão, desenvolvido pela tradição dos Salmos, tem dois significados que contudo se entrelaçam. Confessiones indica, em primeiro lugar, a confissão das próprias debilidades, da miséria dos pecados; mas, ao mesmo tempo, confessiones significa louvor a Deus, reconhecimento a Deus. Ver a própria miséria na luz de Deus torna-se louvor a Deus e agradecimento porque Deus nos ama e nos aceita, nos transforma e nos eleva para Si mesmo. Sobre estas Confessiones, que tiveram grande êxito já durante a vida de Santo Agostinho, ele mesmo escreveu : ‘Elas exerceram sobre mim tal ação enquanto as escrevia e ainda exercem quando as releio. Estas obras são do agrado de muitos irmãos’ (Retractaciones, II, 6) : e devo dizer que também eu sou um destes ‘irmãos’. E graças às Confessiones, podemos seguir passo a passo o caminho interior deste homem extraordinário e apaixonado por Deus. Menos conhecidas mas igualmente originais e muito importantes são, outrossim, as Retractationes, compostas em dois livros por volta do ano 427, nas quais Santo Agostinho já idoso realiza uma obra de ‘revisão’ (retractatio) de toda a sua obra escrita, deixando assim um documento literário singular e extremamente precioso, mas também um ensinamento de sinceridade e de humildade intelectual.           
 
            O De civitate Dei, obra imponente e decisiva para o desenvolvimento do pensamento político ocidental e para a teologia cristã da história, foi escrito de 413 a 426, em vinte e dois livros. A ocasião era o saque de Roma, levado a cabo pelos Godos em 410. Numerosos pagãos ainda vivos, mas também muitos cristãos, disseram : Roma caiu e agora o Deus cristão e os Apóstolos já não podem proteger a cidade. Durante a presença das divindades pagãs, Roma era caput mundi, a grande capital, e ninguém podia pensar que teria caído nas mãos dos inimigos. Agora, com o Deus cristão, esta grande cidade já não parecia segura. Portanto, o Deus dos cristãos já não protegia, não podia ser o Deus ao qual confiar-se. Nesta objeção, que tocava profundamente também o coração dos cristãos, Santo Agostinho responde com esta obra grandiosa, o De civitate Dei, esclarecendo o que devemos ou não esperar de Deus, qual é a relação entre o campo político e o campo da fé da Igreja. Também nos dias de hoje este livro é uma fonte para definir bem a verdadeira laicidade e a competência da Igreja, a grande e verdadeira esperança que a fé nos proporciona.
 
            Este livro excelso é uma apresentação da história da humanidade governada pela Providencia Divina, mas atualmente dividida por dois amores. E este é o desígnio fundamental, a sua interpretação da história, que é a luta entre dois amores. E este é o desígnio fundamental, a sua interpretação da história, que é a luta entre dois amores : o amor a si mesmo, ‘até à indiferença por Deus’, e o amor a Deus, ‘até à indiferença por sim mesmo’ (De civitate Dei, XIV, 28), à plena liberdade de si próprio pelos outros, na luz de Deus. Portanto, este talvez seja o maior livro de Santo Agostinho, de uma importância permanente. Igualmente importante é o De Trinitate, obra em quinze li vros no núcleo principal da fé cristã, a fé no Deus trinitário, escrita em dois tempos : entre 399 e 412, os primeiros doze livros, publicados sem o conhecimento de Agostinho, que por volta de 420 os completou e reviu a obra inteira. Aqui, ele reflete sobre o rosto de Deus e procura compreender este mistério do Deus que é singular, o único criador do mundo, de todos nós e, todavia, que precisamente este Deus único é trinitário, um círculo de amor. Procura compreender o mistério insondável : exatamente o ser trinitário, em três Pessoas, é a mais real e mais profunda unidade do único Deus. O De doctrina Christiana é, no entanto, uma verdadeira e própria análise, ao próprio Cristianismo, que teve uma importância determinante na formação da cultura ocidental.
           
            Apesar de toda a sua humildade, Agostinho certamente estava consciente da sua estatura intelectual. Mas para ele, mais importante do que realizar grandes obras de elevado significado teológico, era transmitir a mensagem aos simples. Esta sua intenção mais profunda, que orientou toda a sua vida, manifesta-se numa carta escrita ao colega Evódio, na qual comunica a decisão de suspender momentaneamente o ditado dos livros do De Trinitate, ‘porque são demasiado cansativos e na minha opinião podem ser entendidos por poucos; por isso, são mais urgentes os textos que, esperamos, venham a ser mais úteis para muitos’ (Epistulae, 169,1,1). Portanto, para ele era mais útil comunicar a fé de modo compreensível para todos do que escrever grandes obras teológicas. A responsabilidade profundamente sentida em relação à divulgação da mensagem cristã é sentida também na origem de escritos como De catechizandis rudibus, uma teoria e também uma prática da catequese, ou o Psalmus contra partem Donati. Os donatistas eram o grande problema da África de Santo Agostinho, um cisma intencionalmente africano. Eles afirmavam : a verdadeira cristandade é africana. Opunham-se à unidade da Igreja. Contra este cisma, o grande bispo lutou durante toda a sua vida, procurando convencer os donatistas que somente na unidade também a africanidade pode ser verdadeira. E para se fazer compreender pelos mais simples, que não conseguiam entender o latim erudito do reitor, disse : devo escrever também com erros gramaticais, num latim muito simplificado. E fê-lo sobretudo neste Psalmus, uma espécie de poesia simples contra os donatistas, para ajudar todas as pessoas a compreenderem que unicamente na unidade da Igreja se realiza para todos realmente a nossa relação com Deus e aumenta a paz no mundo.
 
            Nesta produção destinada a um publico mais vasto reveste uma importância particular o número de homilias, muitas vezes pronunciadas ‘de modo improvisado’, transcrita pelas taquígrafos durante a pregação e imediatamente postas em circulação. Entre elas, sobressaem as lindas Enarrationes in Psalmos, muito lidas na Idade Média. Precisamente a prática de publicação dos milhares de homilias de Agostinho, muitas vezes sem o controle do autor, era sua difusão e sucessiva dispersão, mas também a sua vitalidade. Com efeito, imediatamente as pregações do bispo de Hipona tornavam-se, pela fama do seu autor, textos muito procurados e serviam também para outros bispos e sacerdotes como modelos, adequados a contextos sempre novos.
 
            A tradição iconográfica, já num afresco lateranense que remonta ao século VI, representa Santo Agostinho com um livro na mão, sem dúvida para expressar a sua produção literária que influenciou em grande medida a mentalidade e o pensamentos cristãos, mas para exprimir também o seu amor pelos livros, pela leitura e pelo conhecimento da grande cultura precedente. Quando faleceu nada deixou, narra Possídio, mas ‘recomendava sempre que se conservasse diligentemente para a posteridade a biblioteca da igreja com todos os códices’, sobretudo o das suas obras. Nelas, sublinha Possídio, Agostinho está ‘sempre vivo’e beneficia quem lê os seus escritos não obstante, conclui ele, ‘na minha opinião puderam tirar mais proveito do seu contato aqueles que o conseguiram ver e ouvir, quando falava pessoalmente nas igrejas, e sobretudo aqueles que tiveram experiência da sua vida quotidiana no meio do povo’ (Vita Augustini, 31). Sim, também para nós teria sido muito bom poder ouvi-lo pessoalmente. Todavia, ele está deveras vivo nos seus escritos, está presente em nós e assim sentimos também a vitalidade permanente da fé, à qual ele entregou toda a sua vida.
 
(20 de fevereiro de 2008)
 

Santo Agostinho de Hipona (Capítulo 3 de 5)

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB) 


3. Pensamento 
 
            O meu querido predecessor João Paulo II dedicou a Santo Agostinho em 1986 isto é, no décimo sexto centenário da sua conversão, um longo e denso documento, a Carta Apostólica Augustinum Hipponensem. O próprio Papa quis definir este texto como ‘um agradecimento a Deus pelo dom feito à Igreja, e através dela à humanidade inteira, com aquela admirável conversão’. Sobre o tema da conversão gostaria de voltar a refletir numa próxima audiência. É um tema fundamental não só para a sua vida pessoal, mas também para a nossa. No Evangelho, o próprio Senhor resumiu a Sua pregação com a palavra : ‘Convertei-vos.’ Seguindo o caminho de Santo Agostinho, poderíamos meditar sobre o que foi esta conversão : uma coisa definitiva, decisiva, mas a decisão fundamental deve desenvolver-se, deve realizar-se em toda a nossa vida.
 
            Hoje a catequese é dedicada, ao contrário, ao tema fé e razão, que é determinante, ou melhor, o tema determinante para a biografia de Santo Agostinho. Quando era criança tinha aprendido da sua mãe Monica a fé católica. Mas quando era adolescente abandonou esta fé porque não via a sua racionalidade e não queria uma religião que não fosse também para ele expressão da razão, isto é, da verdade. A sua sede de verdade era radical e levou-o, portanto, a afastar-se da fé católica. Mas a sua radicalidade era tal que ele não podia se contentar com filosofias que não alcançassem a própria verdade, que não chegassem a Deus. E a um Deus que não fosse só uma última hipótese cosmológica, mas o verdadeiro Deus, o Deus que dá a vida e que entra na nossa própria vida. Assim todo o percurso intelectual e espiritual de Santo Agostinho constitui um modelo válido também hoje na relação entre fé e razão, tema não só para homens crentes mas para cada homem que procura a verdade, tema central para o equilíbrio e o destino de cada ser humano. Estas duas dimensões, fé e razão, não podem ser separadas nem contrapostas, mas devem estar sempre juntas. Como escreveu o próprio Agostinho, depois da sua conversão, fé e razão são ‘as duas forças que nos levam a conhecer’ (Contra Academicos, III, 20,43). A este propósito permanecem justamente célebres as duas fórmulas agostinianas (Sermones, 43,9) que expressam esta síntese coerente entre fé e razão : crede ut intelligas (‘crê para compreender’) o crer abre o caminho para passar pela porta da verdade mas também, e inseparavelmente, intellige ut credas (‘compreende para crer’), perscruta a verdade para poder encontrar Deus e crer.
 
            As duas afirmações de Agostinho exprimem com eficaz prontidão e com igual profundidade a síntese deste problema, na qual a Igreja Católica vê expresso o próprio caminho. Historicamente, esta síntese vai-se formando, ainda antes da vinda de Cristo, no encontro entre fé judaica e pensamento grego no judaísmo helênico. Sucessivamente na história esta síntese foi retomada e desenvolvida por muitos pensadores cristãos. A harmonia entre fé e razão significa sobretudo que Deus não está longe : não está longe da nossa razão e da nossa vida; está próximo de cada ser humano, perto do nosso coração e da nossa razão, se realmente nos pusermos a caminho. Precisamente, esta proximidade de Deus ao homem foi sentida com extraordinária intensidade por Agostinho. A presença de Deus no homem é profunda e ao mesmo tempo misteriosa, mas pode ser reconhecida e descoberta no próprio íntimo : não saias, afirma o convertido, mas ‘volta para ti; no homem interior habita a verdade; e se achares que a tua natureza é alterável, transcende-te a ti mesmo. Mas recorda-te, quando te transcendes a ti mesmo, transcendes uma alma que raciocina.’ (De vera religione, 39,72) Precisamente como ele mesmo ressalta, com uma afirmação muito famosa, no início das Confessiones, autobiografia espiritual escrita para louvor de Deus ‘Criastes-nos para Vós, e o nosso coração está inquieto, enquanto não descansa em Vós.’ (I, 1,1)
 
            A distância de Deus equivale à distância de si mesmo : ‘De fato, tu’ reconhece Agostinho (Confessiones, III, 6,11) dirigindo-se diretamente a Deus, ‘estavas dentro de mim mais que o meu íntimo e acima da minha parte mais alta’, interior intimo meo et superior summo meo; a ponto que acrescenta noutro trecho recordando o tempo que precedeu a conversão : ‘Tu estavas diante de mim; e eu, ao contrário, tinha-me afastado de mim mesmo, e não me reencontrava; e muito menos te encontrava a ti.’ (Confessiones, V, 2,2) Precisamente porque Agostinho viveu na primeira pessoa este percurso intelectual e espiritual, soube transmiti-lo nas suas obras com tanta prontidão, profundidade e sabedoria, reconhecendo em dois outros célebres trechos das Confessiones (IV, 4,9 e 14,22) que o homem é ‘um grande enigma’ (magna quaestio) e ‘um grande abismo’ (grande profundum), enigma e abismo que só Cristo ilumina e salva. Isto é importante : um homem que está distante de Deus está também afastado de si mesmo, alienado de si próprio, e só se pode reencontrar encontrando-se com Deus. Assim chega também a si, ao seu verdadeiro eu, à sua verdadeira identidade.
 
            O ser humano, ressalta depois Agostinho no De civitate Dei (XII, 27), é social por natureza mas antissocial por vício, e é salvo por Cristo, único mediador entre Deus e a humanidade ‘caminho universal da liberdade e da salvação’, como repetiu o meu predecessor João Paulo II (Augustinum Hipponensem, 21) : fora deste caminho, que nunca faltou ao gênero humano, afirma ainda Santo Agostinho na mesma obra, ‘ninguém jamais foi libertado, ninguém é libertado e ninguém será libertado’ (De civitate Dei, X, 32,2). Enquanto único mediador da salvação, Cristo é a cabeça da Igreja e a ela está misticamente unido a ponto que Agostinho pode afirmar : ‘Tornamo-nos Cristo. De fato, se Ele é a cabeça, nós somos os Seus membros, o homem total é Ele e nós.’ (In Iohannis evangelium tractatus, 21,8)
 
            Povo de Deus e casa de Deus, a Igreja na visão agostiniana está, portanto, estreitamente relacionada com o conceito de Corpo de Cristo, fundada na releitura cristológica do Antigo Testamento e na vida sacramental centrada na Eucaristia, na qual o Senhor nos dá o Seu Corpo e nos transforma em Seu Corpo. Então, é fundamental que  Igreja, povo de Deus em sentido cristológico e não em sentido sociológico, esteja verdadeiramente inserida em Cristo, o qual, afirma Agostinho numa lindíssima página, ‘reza por nós, reza em nós, é rezado por nós; reza por nós como nosso sacerdote, reza em nós como nossa cabeça, é rezado por nós como nosso Deus : reconhecemos portanto n’Ele a nossa voz e em nós a Sua’ (Enarrationes in Psalmos, 85,1).
 
            Na conclusão da Carta Apostólica Augustinum Hipponensem, João Paulo II quis perguntar ao próprio santo o que tem para dizer aos homens de hoje e responde antes de tudo com as palavras que Agostinho escreveu numa carta ditada pouco antes da sua conversão : ‘Parece-me que se deve reconduzir os homens à esperança de encontrar a  verdade’ (Epistulae, 1,1); aquela verdade que é o próprio Cristo, Deus verdadeiro, ao qual é dirigida uma das orações mais bonitas e mais famosas das Confessiones (X, 27,38) : ‘Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei! Estáveis dentro de mim e eu estava fora, e aí Vos procurava; e disforme como era, lançava-me sobre estas coisas formosas que criastes. Estáveis comigo e eu não estava Convosco. Retinha-me longe de Vós aquilo que não existiria se não existisse em Vós. Mas Vós me chamastes, clamastes e rompestes a minha surdez. Brilhastes, resplandecestes e curastes a minha cegueira. Exalastes o Vosso perfume : respirei-o e agora suspiro por Vós. Saboreei-Vos, e agora tenho fome e sede de Vós. Tocastes-me, e comecei a desejar ardentemente a Vossa paz.
 
            Eis que Agostinho encontrou Deus e durante toda a sua vida fez experiência d’Ele a ponto de esta realidade, que é antes de tudo encontro com uma Pessoa, Jesus, mudou a Sua vida, assim como muda a de quantos, mulheres e homens, em todo9s os tempos têm a graça de O encontrar. Rezemos para que o Senhor nos conceda esta graça e nos faça encontrar assim a Sua paz.
  
(30 de janeiro de 2008)
 

domingo, 18 de agosto de 2013

Santo Agostinho de Hipona (Capítulo 2 de 5)

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB) 


2. Ministério 
 
            Hoje, como na passada catequese, gostaria de falar do grande bispo de Hipona, Santo Agostinho. Quatro anos antes de morrer, ele quis nomear o sucessor. Por isso, a 26 de setembro de 426, reuniu o povo na Basílica da Paz, em Hipona, para apresentar aos fiéis aquele que tinha designado para tal tarefa. Disse : ‘Nesta vida somos todos mortais, mas o último dia desta vida é para cada indivíduo sempre incerto. Contudo, na infância espera-se chegar à adolescência; na adolescência à juventude; na juventude à idade adulta; na idade adulta à maturidade; na idade madura à velhice. Não se tem a certeza de a alcançar, mas espera-se. A velhice, ao contrário, não tem diante de si outro período no qual esperar; a sua própria duração é incerta...Eu, por vontade de Deus, cheguei a esta cidade no vigor da minha vida; mas agora a minha juventude passou e eu já sou velho.’ (Ep 213,1) Nesta altura, Agostinho pronunciou o nome do sucessor designado, o sacerdote Heráclito. A assembleia explodiu num aplauso de aprovação repetindo vinte e tres vezes : ‘Deus seja louvado! Deus seja louvado!’ Com outras aclamações os fiéis aprovaram, além disso, o que Agostinho disse depois sobre os propósitos para o seu futuro : queria dedicar os anos que lhe restavam a um estudo mais intenso das Sagradas Escrituras (cf. Ep 213,6).
 
            De fato, seguiram-se quatro anos de extraordinária atividade intelectual : realizou obras importantes, empreendeu outras não menos empenhadas, fez debates públicos com os hereges – procurava sempre o diálogo –, interveio para promover a paz nas províncias africanas assediadas pelas tribos bárbaras do sul. Neste sentido, escreveu ao conde Dário, que foi a África para resolver a discórdia entre o conde Bonifácio e a corte imperial, da qual se estavam a aproveitar as tribos dos Mauritanos pelas suas incursões : ‘O maior título de glória, afirmava na carta, é precisamente o de suprimir a guerra com as palavras, em vez de matar os homens com a espada, e procurar ou manter a paz com a paz e não com a guerra. Sem dúvida, também os que combatem, se são bons, procuram sem dúvida a paz, mas à custa do derramamento de sangue. Tu, ao contrário, foste enviado precisamente para impedir que se procure derramar o sangue de alguém.’ (Ep 229,2) Infelizmente, a esperança de uma pacificação dos territórios africanos foi desiludida : em maio de 429 os Vândalos, convidados para a África por vingança pelo próprio Bonifácio, passaram o estreito de Gibraltar e invadiram a Mauritânia. A invasão atingiu rapidamente as outras ricas províncias africanas. Em maio ou em junho de 430, ‘os destruidores do Império Romano’, como Possídio qualifica aqueles bárbaros (Vita, 30,1), estavam em volta de Hipona, que assediaram.
 
            Bonifácio tinha procurado refúgio na cidade e, tendo-se reconciliado demasiado tarde com a corte, procurava agora em vão impedir o caminho aos invasores. O biógrafo Possídio descreve o sofrimento de Agostinho : ‘As lágrimas eram mais do que o habitual, o seu pão noite e dia e, tendo já chegado ao extremo da sua vida, mais que os outros arrastava à amargura e ao luto a sua velhice’ (Vita, 28,6). E explica : ‘De fato, aquele homem de Deus via os massacres e as destruições das cidades; destruídas as casas no campo e os habitantes mortos pelos inimigos ou afugentados e desorientados; as igrejas privadas dos sacerdotes e dos ministros, as virgens sagradas e os religiosos dispersos por toda a parte; entre eles, ouros mortos sob as torturas, outros assassinados pela espada, outros feitos prisioneiros, perdida a integridade da alma e do corpo e também a fé, reduzidos em dolorosa e longa escravidão pelos inimigos.’ (Ibidem, 28,8)
 
            Mesmo idoso e cansado, Agostinho conquistou contudo sempre simpatias, confortando-se a si mesmo e aos outros com a oração e a meditação sobre os misteriosos desígnios da Providência. Falava, a este propósito, da ‘velhice do mundo’, e verdadeiramente era velho esse mundo romano, falava desta velhice como já tinha feito anos antes para confortar os prófugos provenientes da Itália, quando em 410 os Godos de Alarico tinham invadido a cidade de Roma. Na velhice, dizia, os doentes abundam : tosse, catarro, remela, ansiedade, esgotamento. Mas se o mundo envelhece, Cristo é perpetuamente jovem. E então o convite : ‘Não rejeitar rejuvenescer unido a Cristo, também no mundo velho. Ele diz-te : Não temas, a tua juventude renovar-se-á como a da águia.’ (Cf. Serm. 81,8) Por conseguinte, o cristão não deve desanimar mesmo em situações difíceis, mas empenhar-se por ajudar quem está em necessidade. É quanto o grande Doutor sugere respondendo ao bispo de Tiabe, Honorato, que lhe tinha pedido se, sob as ameaças das invasões bárbaras, um bispo, um sacerdote ou um homem qualquer da Igreja pudesse fugir para salvar a vida : ‘Quando o perigo é comum a todos, isto é, a bispos, clérigos e leigos, os que têm necessidade dos outros não sejam abandonados por aqueles dos quais têm necessidade. Neste caso transfiram-se todos para lugares seguros; mas se alguns têm necessidade de permanecer, não sejam abandonados por aqueles que têm o dever de os assistir com o ministério sagrado, de modo que se salvem juntamente ou juntos suportem as calamidades que o Pai de família quiser que sofram.’ (Ep 228,2) E concluía : ‘Esta é a prova suprema da caridade.’ (Ibidem, 3) Como não reconhecer, nestas palavras, a mensagem heróica que tantos sacerdotes, ao longo dos séculos, acolheram e fizeram própria?
 
            Entretanto, a cidade de Hipona resistia. A casa-mosteiro de Agostinho tinha aberto as suas portas para acolher os colegas no episcopado que pediam hospitalidade. Entre eles encontrava-se também Possídio, já seu discípulo, o qual pode assim deixar-nos o testemunho direto daqueles últimos e dramáticos dias. ‘No terceiro mês daquela invasão’, narra ele, ‘caiu de cama com febre : era a sua última doença.’ (Vita, 29,3) O santo idoso aproveitou aquele tempo finalmente livre para se dedicar com mais intensidade à oração. Costumava afirmar que ninguém, bispo, religioso ou leigo, por mais irrepreensível que possa parecer o seu comportamento, pode encarar a morte com uma adequada penitência. Por isso, ele repetia continuamente entre lágrimas os salmos penitenciais, que tantas vezes recitara com o povo (cf. Ibidem, 31,2).
 
            Quanto mais se agravava a doença, mais o bispo moribundo sentia necessidade de solidão e de oração : ‘Para não ser incomodado por ninguém no seu recolhimento, cerca de dez dias antes de sair do corpo implorou a nós presentes para não deixar entrar ninguém no seu quarto fora das horas em que os médicos iam visita-lo ou quando lhe levavam as refeições. A sua vontade foi cumprida exatamente e durante todo aquele tempo ele dedicava-se à oração.’ (Ibidem, 31,3) Cessou de viver a 28 de agosto de 430 : o seu grande coração tinha-se finalmente aplacado em Deus.
 
            Para a deposição do seu corpo’, informa Possídio, ‘foi oferecido a Deus o sacrifício, ao qual nós assistimos, e depois foi sepultado.’ (Vita, 31,5) O seu corpo em data incerta, foi transferido para a Sardenha e dali, por volta de 725, para Pavia, na Basílica de São Pedro ‘in Ciel d’oro’, onde repousa ainda hoje. O seu primeiro biógrafo tem sobre ele este juízo conclusivo : ‘Deixou à Igreja um clero muito numeroso, assim como mosteiros de homens e de mulheres cheios de pessoas dedicadas à continência sob a obediência dos seus superiores, juntamente com as bibliotecas que contêm livros e discursos seus e de outros santos, dos quais se conhece qual foi por graça de Deus o seu mérito e a sua grandeza na Igreja, e nos quais os fiéis sempre o encontram vivo.’ (POSSÍDIO, Vita, 31,8) Trata-se de uma afirmação à qual não podemos associar : nos seus escritos também nós o ‘encontramos vivo’. Quando leio os escritos de Santo Agostinho não tenho a impressão que é um homem morto mais ou menos há mil e seiscentos anos, mas sinto-o como um homem de hoje : um amigo, um contemporâneo que me fala, que nos fala com a sua fé vigorosa e atual. Em Santo Agostinho que nos fala, fala a mim nos seus escritos, vemos a atualidade permanente da sua fé; da fé que vem de Cristo, Verbo Eterno Encarnado, Filho de Deus e Filho do homem. E podemos ver que esta fé não é de ontem, mesmo tendo sido pregada ontem; é sempre de hoje, porque Cristo é realmente ontem, hoje e para sempre. Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida. Assim nos encoraja Santo Agostinho a confiar-nos a este Cristo sempre vivo e a encontrar assim o caminho da vida.  
 
(16 de janeiro de 2008)