Por Eliana Maria
(Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo de Francisco Vêneto,
jornalista
É a dose
errada do remédio o que o transforma em veneno
Regulação
e regulamentação da mídia
‘Na Venezuela e na Nicarágua, o controle ditatorial da
informação pelo regime foi implementado, ostensivamente, sob a máscara da ‘democratização
da mídia’, valendo-se, já no processo de cancelamento de objetores, da manipulação
de termos técnicos elegantes, como os profusamente repetidos ‘regulação’ e ‘regulamentação’.
Por isso mesmo, antes de seguir em frente, é
necessário esclarecer o que significa regulação e o que significa
regulamentação, que não são a mesma coisa.
Regulação é uma atividade atribuída a um órgão ou
agência governamental que tem poder especial para legislar sobre como um setor
de interesse público deve operar. No Brasil, este é o caso, entre outras, da
Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), autarquia vinculada ao Ministério
de Minas e Energia que regula e fiscaliza o setor elétrico brasileiro, ou da
Anac (Agência Nacional de Aviação Civil), que regula e fiscaliza as atividades
da aviação civil e a infraestrutura aeronáutica e aeroportuária no país.
(Que as agências funcionem adequadamente a favor do
cidadão já é outra questão que também precisa ser discutida : o simples fato de
que um órgão regulador exista não quer dizer que funcione como promete).
Já a regulamentação é uma atividade de competência do Chefe
do Poder Executivo : grosso modo, consiste em detalhar e suprir eventuais
lacunas de uma regulação que já existe, a fim de esclarecer como essas leis
devem ser aplicadas e como o seu fiel cumprimento deve ser garantido.
Vamos aos exemplos.
No caso da mídia como um todo, a Constituição Federal
do Brasil prevê, no artigo 220, § 5, que ‘os meios de comunicação social não
podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio’. No
entanto, não existe até hoje nenhuma regulamentação do Poder Executivo que
determine o que são o monopólio e o oligopólio nas comunicações sociais do
país. Existe uma regulação, mas não existe a sua regulamentação.
De modo semelhante, existe no país um bagunçado
arcabouço de leis que regulam assuntos ligados à mídia. É assim desde o
Império, quando surgiram os primeiros decretos que regulavam a imprensa. Na
década de 1930 vieram as regulações da radiodifusão. Na década de 1960, entrou
em vigor o Código Brasileiro de Telecomunicações, que, diga-se de passagem,
continua vigente até hoje, anacronismos inclusos. Ao longo das décadas, dezenas
de leis continuaram surgindo para regular a comunicação de forma esparsa e
desconectada, como a lei do cabo, a das rádios comunitárias, a que disciplina a
participação de capital estrangeiro nas empresas jornalísticas e de
radiodifusão, a que criou a Empresa Brasil de Comunicação… Há leis também para
regular conteúdo, como a que define punição diferenciada para os crimes
resultantes de preconceitos de raça ou cor veiculados na mídia, ou a lei de
tela, que determina cotas para produções nacionais no audiovisual. Há também a
regulação da publicidade, que, por exemplo, proíbe a publicidade infantil.
Mas não há no país uma lei geral das comunicações
eletrônicas e de massa, que, na visão dos seus defensores, regulamentaria, como
mínimo, os artigos da Constituição Federal (como o já citado 220), além das
regras aplicáveis a veículos mais recentes, como a internet.
No caso da internet, se falarmos em regulamentação,
estaremos falando de como o Poder Executivo deve detalhar leis já existentes,
como o Marco Civil da Internet, em particular no tocante à neutralidade de
rede, à privacidade na rede e à guarda de dados – considerando-se, ainda, que,
sobre o último ponto, já contamos também com a Lei Geral de Proteção de Dados
Pessoais (LGPD).
Quanta
regulação e quanta regulamentação?
Como se observa, regulação e regulamentação são
instrumentos neutros. É o seu uso o que determina se eles serão ou não
transformados em armas de guerra.
Por um lado, regras claras, que valham
independentemente do governo de turno, são necessárias até para impedir que
esse governo se torne perpetrador ou cúmplice de abusos de censura e
desinformação. Por outro, um engessamento de regras, sobretudo quando se
arrogam poderes altamente subjetivos de análise da ‘verdade’, são praticamente
a sacramentação do enviesamento ideológico.
Há cenários em que as regras já existentes são
suficientes, como as que, preservando a liberdade de imprensa, de opinião e de
expressão, também protegem contra a injúria, a calúnia e a difamação. Há
outros, como o da já citada ausência de regulamentação sobre o que é um
monopólio ou oligopólio de mídia, que requerem ao menos ‘algum’ grau de
detalhamento.
O problema está em definir que grau é esse: afinal, a
dose errada do remédio é o que o
transforma em veneno.
De quanta regulação e de quanta regulamentação
precisamos objetivamente, para além das leis, garantias, vetos e obrigações que
já temos? O desafio é definir o ponto de equilíbrio entre os extremos de
nenhuma e da imposição de um pensamento único, passando por distintos graus de
censura (inclusive quando em alegado caráter ‘excepcionalíssimo’).
Este desafio é global. O Twitter pode banir para
sempre um presidente dos Estados Unidos? Se sim, com base em que regulação ou
regulamentação? Qual é o grau aceitável de poder de policiamento, censura,
julgamento e condenação que uma ‘big tech’ pode exercer sobre as opiniões e
sobre quem as emitiu? Em que contextos o YouTube pode legitimamente censurar um
vídeo ou um canal inteiro por questionar o que outros dogmatizam que é ‘ciência’
inquestionável, muito embora a ciência não seja dogma e o seu método
pressuponha necessariamente o questionamento? Quem define a verdade, seja para
Pôncio Pilatos, seja para dona Zefinha? Quando se pode vetar um documentário
que nem sequer foi lançado, se é que se pode? E, entre tantas outras, a
pergunta subvalorizada que, no fim das contas, ainda ninguém respondeu : quem
checa os checadores?
Se é preciso haver ‘alguma’ regulamentação e o desafio
é definir quanta, a resposta mais democrática deve ser a que mais garanta
espaço às liberdades e menos tolere a sua restrição : portanto, ‘alguma’
regulamentação significa a mínima regulamentação possível.
‘Fake news’ não se combatem com cerceamento e censura,
mas com ampla liberdade de imprensa, de opinião e de expressão para contestar e
refutar, com argumentos e comprovações, com réplica e tréplica, e não com
tarjas, canetaços e medidas ‘excepcionalíssimas’. E se as afirmações mentirosas
ainda forem agravadas pelo crime de calúnia, difamação ou congêneres, nem assim
a censura será o remédio : a lei prevê os devidos processos para que os
responsáveis sejam denunciados, julgados e sentenciados, e é isto o que deve
ser aprimorado num legítimo estado democrático de direito.
Um
Ministério da Verdade sempre terá um Goebbels como ministro
A história tem fartos registros de que é suicida
plantar os alicerces de um Ministério da Verdade, seja qual for o seu nome,
porque o seu ministro será sempre um Joseph Goebbels.
Nenhuma alegação de combate à desinformação pode se
arrogar o inexistente direito de vedar o livre debate sobre a verdade e a
mentira, a menos que se queira reposicionar um país na seleta companhia de
Bielorússia, Turcomenistão, Coreia do Norte, Afeganistão, Irã e, entre outros
primores da democracia, as já mencionadas China, Rússia, Venezuela, Nicarágua e
Cuba.
A regulação e a regulamentação da mídia são
instrumentos neutros, e, como facas de dois gumes, cortarão o que forem
manejadas para cortar.
E tanto é verdade que, se alguém tiver uma opinião
diferente desta, esse mesmo alguém quererá o direito de proclamá-la e
defendê-la sem pressões nem cerceamentos – basta que assuma as consequências da
própria liberdade e cobre as do próximo quando discordar do que ele diz.’
Fonte : *Artigo na íntegra
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