Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
jornalista e mestre em História da Igreja, uma das
poucas brasileiras
credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa
da Santa Sé
‘Se o papado não é analisado em conjunto, infelizmente
cai-se nesse anacronismo doente, que termina por sacralizar projetos de poder.
E o pior : por deturpar o ensinamento da Igreja Católica, como se ela,
realmente, seguisse a trincheira do maniqueísmo propagado pelos eleitores
passivo-agressivos da atualidade : ‘direita é de Jesus e esquerda é do demônio!’
- ou vice-versa. A verdade é que, doutrinariamente falando, ela não promove
nenhum espectro político. Por outro lado, não abre mão do princípio de
priorizar os mais vulneráveis.
‘Católico
não pode ser de esquerda!’, dizem. Onde está escrito isso? Então quer dizer que
todos devem ser de direita? Onde está escrito isso também?
Tudo
isso não passa de uma narrativa repleta de distorções e de ignorância em
relação aos conceitos políticos de base, bem como do desconhecimento (ou
ocultamento voluntário) de como a Igreja Católica realmente se posicionou após
a queda dos fascismos, do nazismo e do comunismo na Europa.
A
igreja condena o comunismo? Sim, condena. E o faz dentro de um contexto muito
específico : Primeira e Segunda Guerras Mundiais e Guerra Fria. Para ser mais
precisa : rechaça, com todas as letras, o materialismo ateu de todas as eras.
Um materialismo (veja bem!) que também pode se manifestar do lado oposto :
quando os cristãos colocam o dinheiro e o status social acima de Deus.
A
instituição também condenou os males do liberalismo em várias ocasiões.
Principalmente essa divinização do mercado e a lógica do lucro pelo lucro, que
não condizem, em nada, com os princípios do catolicismo. João Paulo II chegou a
dizer que o sistema capitalista também havia contribuído com a degradação da
Europa, para termos uma noção. Francisco recorda isso, ampliando o que os seus
antecessores já falaram a respeito, na Fratelli Tutti :
‘O
mercado, por si só, não resolve tudo, embora às vezes nos queiram fazer crer
neste dogma de fé neoliberal. Trata-se dum pensamento pobre, repetitivo, que
propõe sempre as mesmas receitas perante qualquer desafio que surja. O
neoliberalismo reproduz-se sempre igual a si mesmo, recorrendo à mágica teoria
do «derrame» ou do «gotejamento» – sem a nomear – como única via para resolver
os problemas sociais’.
Por
isso que a Igreja defende, através do próprio magistério papal, que nenhum dos
dois sistemas em voga (pensando naqueles encarnados na Guerra Fria) conseguiram
sanar os problemas reais da sociedade. Basta vermos, na América Latina, o
quanto é contraditório registrar altos índices de desigualdade e miséria em
países nos quais grande parte da população se declara cristã, inclusive alguns
governantes.
E é
essa constatação de falência desses modelos que leva a instituição a pensar
numa ‘terceira via’ capaz de capitalizar o que há de bom e rejeitar o que é
mau.
Quando
surgem os partidos políticos não mais ligados a regimes totalitários, mas às
ideologias macro, de base (liberalismo, marxismo, social-democracia e afins), a
Igreja se encontra diante de uma nova configuração sociopolítica e se vê no
dever moral de responder a ela. E agora, o que fazer? Afinal, muitas pessoas de
fé começaram a aderir à esquerda, antes associada somente ao comunismo
clássico/soviético e ao ateísmo. Sem contar toda a pluralidade partidária que
se desenha após o fim da Segunda Guerra Mundial, a qual compõe um verdadeiro
mosaico de direitas, esquerdas e centros.
João
XXIII dá a resposta na encíclica Pacem in Terris (escrita meses após a crise
dos mísseis de 1962). Foi a primeira vez que um pontífice permitiu que os
católicos se associassem partidariamente, pedindo que, independente da escolha
partidária, eles contribuíssem para o bem comum e para a difusão dos princípios
do cristianismo. Não por acaso, será essa a primeira encíclica da história
dirigida aos ‘homens de boa vontade’, não somente ao clero nem ao fiel
católico. Entende-se, portanto, que nem todo partido esquerdista era
necessariamente ateu, bem como nem todo direitista seria necessariamente
fascista. Em outras palavras, qualquer pessoa, independente da sua legenda
partidária, tem potencial para ser bom e para fazer o bem.
Ora,
nenhum partido consegue (nem conseguirá) corresponder integralmente aos
princípios católicos. A própria Igreja, que não é ingênua, admite isso. Então,
o que fazer? Apelar para a consciência. Votar não pensando somente em si, mas
no coletivo e nas demandas mais urgentes, evitando, assim, a idolatria
partidária e o populismo. Sem contar que própria D.S.I orienta seus fiéis a
votar de maneira crítica.
Por
isso, promover terrorismo eleitoral para legitimar certas figuras políticas não
condiz com o pensamento de Roma.
As condenações ao
comunismo por parte do papado
As
condenações ao comunismo, por parte da Igreja Católica, acontecem em três
fases.
1 -
Há os documentos pontifícios anteriores ao Manifesto, quando os papas condenam
aquele comunismo utópico do século XVIII cujas raízes foram fincadas lá na
Idade Média. Pio IX, em 1846, é o primeiro a se manifestar.
2 -
Depois, há as reações da Igreja ao Manifesto de 1848, de Marx e Engels, ou
seja, ao marxismo clássico. A instituição tem até uma certa dificuldade para
cunhar o termo correto na hora de expor suas reservas, por se tratar de uma
exposição nova.
3 -
Inicialmente, o catolicismo condena a teoria da propriedade coletiva, e
conforme a reflexão vai tomando proporção, adentra em outros pontos.
4 -
O comunismo, visto como nova forma de organização da sociedade (e é esse
ponto), como sabemos, vive seu apogeu com a Revolução Russa de 1917. É a partir
daí que se faz uma separação teórico-metodológica entre socialismo (a filosofia
política sobre a qual o marxismo se funda), marxismo (a análise socioeconômica)
e o comunismo (uma nova forma de organização da sociedade. A grosso modo, a
implementação da teoria num governo). Pio XI já especifica isso direitinho em
1937, quando condena o comunismo ateu na Divinis Redemptoris.
Por
exemplo : na Rerum Novarum, Leão XIII condena a ‘teoria social da propriedade
coletiva’ e não menciona, pelo menos no original em italiano, a palavra
comunismo nenhuma vez. Inclusive o pontífice tem dificuldades até para tratar
da questão do liberalismo nesse documento, porque não ter sido bem assessorado
sobre tais questões, segundo especialistas.
A excomunhão a comunistas
Depois
de toda essa exposição, é possível dizer que a Igreja condena quem vota em
esquerdistas ou direitistas? A resposta é : não. O pluralismo partidário de
hoje, na maioria dos casos, é completamente alheio aos totalitarismos do
passado.
Ah,
mas o decreto de Pio XII, que fala a respeito da excomunhão automática para
comunistas (1949), onde se encaixa nessa história?
Bom,
quem estudou um pouco de história sabe muito bem que o papado, naquela época,
se encontrava diante do comunismo soviético, ateu, do partido único, da
socialização dos meios de produção, que matou milhões de pessoas. Uma cartilha
que, salvo em alguns lugares, não foi legitimada por todos os governos de
centro-esquerda do presente. Temos o caso, por exemplo, do Partido Democrático
(PD) da Itália, um partido de esquerda que, durante seu ato de fundação (2007),
deixou claro que não possuía qualquer relação com o comunismo do passado.
Inclusive,
alguns governos de esquerda, inclusive na América Latina, adotaram práticas
neoliberais na condução de suas economias. Isso qualquer economista honesto
pode confirmar.
Ainda
assim, as pessoas terão que encontrar outras justificativas para ‘excomungar
esquerdistas’, uma vez que esse decreto de Pio XII sequer é válido mais. O
Código de Direito Canônico, de 1983, que está em vigor até hoje, suprimiu todas
as penas canônicas, expedidas pelo magistério, anteriores à publicação dessa ‘carta
magna’, como está escrito, no cânon 6, 3. :
Cân.
6 — § 1. Com a entrada em vigor deste Código, são ab-rogados :
1.°
o Código de Direito Canónico promulgado no ano de 1917;
2.°
as outras leis, quer universais quer particulares, contrárias às prescrições
deste Código, a não ser que acerca das particulares se determine outra coisa;
3.°
quaisquer leis penais, quer universais quer particulares, dimanadas da Sé
Apostólica, a não ser que sejam recebidas neste Código.’
Fonte : *Artigo na íntegra
Nenhum comentário:
Postar um comentário