sexta-feira, 21 de outubro de 2022

A Igreja coloca comunistas e esquerdistas no mesmo bolo?

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Mirticeli Medeiros,

jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras

credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé

 

Se o papado não é analisado em conjunto, infelizmente cai-se nesse anacronismo doente, que termina por sacralizar projetos de poder. E o pior : por deturpar o ensinamento da Igreja Católica, como se ela, realmente, seguisse a trincheira do maniqueísmo propagado pelos eleitores passivo-agressivos da atualidade : ‘direita é de Jesus e esquerda é do demônio!’ - ou vice-versa. A verdade é que, doutrinariamente falando, ela não promove nenhum espectro político. Por outro lado, não abre mão do princípio de priorizar os mais vulneráveis.

‘Católico não pode ser de esquerda!’, dizem. Onde está escrito isso? Então quer dizer que todos devem ser de direita? Onde está escrito isso também?

Tudo isso não passa de uma narrativa repleta de distorções e de ignorância em relação aos conceitos políticos de base, bem como do desconhecimento (ou ocultamento voluntário) de como a Igreja Católica realmente se posicionou após a queda dos fascismos, do nazismo e do comunismo na Europa.

A igreja condena o comunismo? Sim, condena. E o faz dentro de um contexto muito específico : Primeira e Segunda Guerras Mundiais e Guerra Fria. Para ser mais precisa : rechaça, com todas as letras, o materialismo ateu de todas as eras. Um materialismo (veja bem!) que também pode se manifestar do lado oposto : quando os cristãos colocam o dinheiro e o status social acima de Deus.

A instituição também condenou os males do liberalismo em várias ocasiões. Principalmente essa divinização do mercado e a lógica do lucro pelo lucro, que não condizem, em nada, com os princípios do catolicismo. João Paulo II chegou a dizer que o sistema capitalista também havia contribuído com a degradação da Europa, para termos uma noção. Francisco recorda isso, ampliando o que os seus antecessores já falaram a respeito, na Fratelli Tutti :

‘O mercado, por si só, não resolve tudo, embora às vezes nos queiram fazer crer neste dogma de fé neoliberal. Trata-se dum pensamento pobre, repetitivo, que propõe sempre as mesmas receitas perante qualquer desafio que surja. O neoliberalismo reproduz-se sempre igual a si mesmo, recorrendo à mágica teoria do «derrame» ou do «gotejamento» – sem a nomear – como única via para resolver os problemas sociais’.

Por isso que a Igreja defende, através do próprio magistério papal, que nenhum dos dois sistemas em voga (pensando naqueles encarnados na Guerra Fria) conseguiram sanar os problemas reais da sociedade. Basta vermos, na América Latina, o quanto é contraditório registrar altos índices de desigualdade e miséria em países nos quais grande parte da população se declara cristã, inclusive alguns governantes.

E é essa constatação de falência desses modelos que leva a instituição a pensar numa ‘terceira via’ capaz de capitalizar o que há de bom e rejeitar o que é mau.

Quando surgem os partidos políticos não mais ligados a regimes totalitários, mas às ideologias macro, de base (liberalismo, marxismo, social-democracia e afins), a Igreja se encontra diante de uma nova configuração sociopolítica e se vê no dever moral de responder a ela. E agora, o que fazer? Afinal, muitas pessoas de fé começaram a aderir à esquerda, antes associada somente ao comunismo clássico/soviético e ao ateísmo. Sem contar toda a pluralidade partidária que se desenha após o fim da Segunda Guerra Mundial, a qual compõe um verdadeiro mosaico de direitas, esquerdas e centros.

João XXIII dá a resposta na encíclica Pacem in Terris (escrita meses após a crise dos mísseis de 1962). Foi a primeira vez que um pontífice permitiu que os católicos se associassem partidariamente, pedindo que, independente da escolha partidária, eles contribuíssem para o bem comum e para a difusão dos princípios do cristianismo. Não por acaso, será essa a primeira encíclica da história dirigida aos ‘homens de boa vontade’, não somente ao clero nem ao fiel católico. Entende-se, portanto, que nem todo partido esquerdista era necessariamente ateu, bem como nem todo direitista seria necessariamente fascista. Em outras palavras, qualquer pessoa, independente da sua legenda partidária, tem potencial para ser bom e para fazer o bem.

Ora, nenhum partido consegue (nem conseguirá) corresponder integralmente aos princípios católicos. A própria Igreja, que não é ingênua, admite isso. Então, o que fazer? Apelar para a consciência. Votar não pensando somente em si, mas no coletivo e nas demandas mais urgentes, evitando, assim, a idolatria partidária e o populismo. Sem contar que própria D.S.I orienta seus fiéis a votar de maneira crítica.

Por isso, promover terrorismo eleitoral para legitimar certas figuras políticas não condiz com o pensamento de Roma.

As condenações ao comunismo por parte do papado

As condenações ao comunismo, por parte da Igreja Católica, acontecem em três fases.

1 - Há os documentos pontifícios anteriores ao Manifesto, quando os papas condenam aquele comunismo utópico do século XVIII cujas raízes foram fincadas lá na Idade Média. Pio IX, em 1846, é o primeiro a se manifestar.

2 - Depois, há as reações da Igreja ao Manifesto de 1848, de Marx e Engels, ou seja, ao marxismo clássico. A instituição tem até uma certa dificuldade para cunhar o termo correto na hora de expor suas reservas, por se tratar de uma exposição nova.

3 - Inicialmente, o catolicismo condena a teoria da propriedade coletiva, e conforme a reflexão vai tomando proporção, adentra em outros pontos.

4 - O comunismo, visto como nova forma de organização da sociedade (e é esse ponto), como sabemos, vive seu apogeu com a Revolução Russa de 1917. É a partir daí que se faz uma separação teórico-metodológica entre socialismo (a filosofia política sobre a qual o marxismo se funda), marxismo (a análise socioeconômica) e o comunismo (uma nova forma de organização da sociedade. A grosso modo, a implementação da teoria num governo). Pio XI já especifica isso direitinho em 1937, quando condena o comunismo ateu na Divinis Redemptoris.

Por exemplo : na Rerum Novarum, Leão XIII condena a ‘teoria social da propriedade coletiva’ e não menciona, pelo menos no original em italiano, a palavra comunismo nenhuma vez. Inclusive o pontífice tem dificuldades até para tratar da questão do liberalismo nesse documento, porque não ter sido bem assessorado sobre tais questões, segundo especialistas.

A excomunhão a comunistas

Depois de toda essa exposição, é possível dizer que a Igreja condena quem vota em esquerdistas ou direitistas? A resposta é : não. O pluralismo partidário de hoje, na maioria dos casos, é completamente alheio aos totalitarismos do passado.

Ah, mas o decreto de Pio XII, que fala a respeito da excomunhão automática para comunistas (1949), onde se encaixa nessa história?

Bom, quem estudou um pouco de história sabe muito bem que o papado, naquela época, se encontrava diante do comunismo soviético, ateu, do partido único, da socialização dos meios de produção, que matou milhões de pessoas. Uma cartilha que, salvo em alguns lugares, não foi legitimada por todos os governos de centro-esquerda do presente. Temos o caso, por exemplo, do Partido Democrático (PD) da Itália, um partido de esquerda que, durante seu ato de fundação (2007), deixou claro que não possuía qualquer relação com o comunismo do passado.

Inclusive, alguns governos de esquerda, inclusive na América Latina, adotaram práticas neoliberais na condução de suas economias. Isso qualquer economista honesto pode confirmar.

Ainda assim, as pessoas terão que encontrar outras justificativas para ‘excomungar esquerdistas’, uma vez que esse decreto de Pio XII sequer é válido mais. O Código de Direito Canônico, de 1983, que está em vigor até hoje, suprimiu todas as penas canônicas, expedidas pelo magistério, anteriores à publicação dessa ‘carta magna’, como está escrito, no cânon 6, 3. :

Cân. 6 — § 1. Com a entrada em vigor deste Código, são ab-rogados :

1.° o Código de Direito Canónico promulgado no ano de 1917;

2.° as outras leis, quer universais quer particulares, contrárias às prescrições deste Código, a não ser que acerca das particulares se determine outra coisa;

3.° quaisquer leis penais, quer universais quer particulares, dimanadas da Sé Apostólica, a não ser que sejam recebidas neste Código.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticias/?id=1591736

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