Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo de Francisco Vêneto,
jornalista
‘A regulação e a regulamentação da mídia são
instrumentos neutros, e, como facas de dois gumes, cortarão o que forem
manejadas para cortar.
Por isso mesmo, a depender de quem as maneja, a
comparação com uma arma branca pode ficar muito aquém da realidade : esses
instrumentos já chegaram a ser transformados em devastadoras armas de guerra.
A Segunda Guerra Mundial (1939-1945), de fato, não foi
apenas o maior de todos os conflitos bélicos graças ao poder destruidor de
armamentos até então inéditos na história da humanidade, mas também foi a
primeira grande guerra de (des)informação estratégica e sistemática em larga
escala, com o respaldo de leis de comunicação social impostas por regimes
autoritários desde antes do conflito deflagrado.
É argumentável, mas também contestável, que não se
tratasse de legítima regulação e regulamentação da mídia – e disso falaremos
adiante. Por agora, continuemos em guerra.
O
rádio e a guerra
Nos anos imediatamente anteriores à Segunda Guerra
Mundial, um aparelho inofensivo começou a ser transformado eficazmente em um
dos mais poderosos armamentos a favor de regimes autoritários. A massificação
do rádio foi fundamental para que governos tirânicos criassem o ambiente de
controle de que precisavam para implantar e consolidar o seu poder sobre a
própria população, despejando diuturnamente a sua ideologia na rotina dos
cidadãos e minando implacavelmente quaisquer oposições mediante o seu
silenciamento e criminalização.
A visão de mundo desses regimes era imposta à
população sem quaisquer filtros nem intermediários : os governos tinham
entendido, com maquiavélica perspicácia, que controlar a mídia significava
controlar a mente e até o coração dos cidadãos – se não de todos, ao menos de
uma parcela suficientemente grande para coibir o resto de tentar uma reação.
Entre os casos mais clássicos de sujeição da opinião
pública mediante o controle da mídia está o do nazismo alemão, cujo ministro da
propaganda, Joseph Goebbels, identificou
no rádio um
meio de excelência para moldar as massas com as ideias racistas, eugenistas e
supremacistas do regime de Adolf Hitler.
Goebbels determinou a massiva fabricação do aparelho
de rádio VE301 e coordenou uma extensa campanha para torná-lo acessível, a fim
de atingir, através das suas ondas, o máximo possível de casas e consciências
alemãs. De fato, em 1939, ano em que Hitler invadiu a Polônia e fez eclodir a
Segunda Guerra Mundial, cerca de 90% das residências da Alemanha tinham pelo
menos um aparelho de rádio e em torno de 70% dos alemães ouviam programas de
rádio regularmente. A doutrinação nazista era metralhada ao longo das 24 horas
do dia, num meio de comunicação decididamente dominado pelo regime.
Era o regime que definia o que era verdade, o que era
mentira, o que podia ser transmitido e o que não podia, coibindo energicamente
quaisquer discursos contrários ao dogma nazista. O próprio Goebbels cunhou a
diretriz que se tornaria um clichê na boca dos que atacam a desinformação
alheia em defesa da própria : ‘Uma mentira dita mil vezes se transforma em
verdade’.
A situação não era diferente na Itália de Mussolini
nem no Japão imperial – nações que, para surpresa de ninguém, se aliaram à
Alemanha nazista na mesma guerra contra a verdade.
Da
União Soviética à Rússia e à China
Mas o cenário também era idêntico na União Soviética
de Joseph Stalin, violentíssimo opressor de qualquer liberdade de expressão e
brutal extirpador de qualquer oposição. E o colapso do comunismo soviético não
sepultou esse afã de controle. Embora a Rússia beligerante de Vladimir Putin
pareça menos terrível que os gulags de cujas ruínas é a principal herdeira, ainda
assim é indisfarçável o temor que as políticas de controle da informação
provocam na população russa em pleno 2022. O grau de interferência do governo
russo na mídia no país, bem conhecido havia décadas, tornou-se surreal em 4 de março deste
ano, quando o regime determinou que a sua guerra na Ucrânia não é uma guerra na
Ucrânia e que todos os que se atreverem a chamá-la de outra coisa que não de ‘operação
militar especial’ vão se ver com a plenitude da democracia em forma de 15 anos
de cadeia.
Co-herdeira da União Soviética no culto fanático ao
Partido Único, a China acumula uma das mais sangrentas histórias de controle da
informação já vistas em todos os tempos. Num país de milhões de analfabetos
famintos, o monopólio da informação exigiu extremos como a Grande Revolução
Cultural Proletária de Mao Tsé-Tung, nada menos que uma década (1966-1976) de
extensa lavagem cerebral e purgação radical de opositores, que destruiu a
economia e a cultura tradicional chinesa e trouxe como resultado um número
estimado de mortos que varia de centenas de milhares a estarrecedores 20
milhões.
A década de horror dedicada ao controle total das
mentes numa China ainda miserável incluiu massacres e perseguições tão
chocantes que, no final de 1978, o novo líder supremo, Deng Xiaoping, lançou o
programa Boluan Fanzheng para ‘corrigir os erros da Revolução Cultural’. Em
1981, o próprio Partido Comunista Chinês teve de reconhecer oficialmente que a
Revolução Cultural tinha sido o ‘retrocesso mais severo’ desde a fundação da
China comunista em 1949.
O rígido controle chinês da informação, porém, apenas mudou
de formatos e prossegue até a data, com onipresente e opressiva propaganda
pró-Partido e devastadora perseguição de opositores. O panorama, aliás, piorou
sob o comando do atual presidente Xi Jinping, que tem usado a tecnologia para
transformar o país, literalmente, no ‘Big Brother’ previsto por George Orwell
no clássico ‘1984’ (confira neste artigo).
Os tentáculos do controle da mídia pelo Partido Comunista Chinês já sufocam
inclusive Hong Kong, apesar do seu teórico status de autonomia e relativa
liberdade.
Ditaduras
de todos os espectros ideológicos
Nos pós-guerra, o discurso do combate à desinformação
continuou sendo alardeado pelas ditaduras mundo afora – na sua grande maioria,
ditaduras comunistas, mas também no franquismo da Espanha e em regimes
militares direitistas como os do Chile, da Argentina e do Brasil, onde o selo
da censura federal abundou nas mídias impressas, radiofônicas e televisivas,
além da música, do teatro, do cinema e do material didático.
Têm sido as ideologias de esquerda, porém, quase
pandemicamente, as mais teimosas em continuar inoculando na atualidade o vírus
do controle da informação por entre rótulos de combate à desinformação e sob a
máscara da ‘democratização’ da informação.
Cuba,
Venezuela e Nicarágua
Em Cuba, referência suprema de ditadura
latino-americana, o rígido controle da informação foi imposto desde o início de
La Revolución, com ferrenha censura de todos os meios de comunicação para
garantir que eles incutissem nas mentes e nos corações as palavras de ordem do
comunismo, ‘hasta la victoria siempre’. Um dos resultados menos catastróficos e
mais folclóricos deste sufocamento da informação e deste despejamento obsessivo
de doutrinação foram os discursos intermináveis de Fidel Castro, que se
tornaram tragicomédia internacional. Mas mesmo isto é indicativo : quantas
críticas a qualquer desses discursos, ainda que fosse apenas às suas
histriônicas horas de duração, foram publicadas em algum jornal cubano?
Na pouco distante Venezuela, eis outra população
engabelada pelo discurso de combater a desinformação e as alegadas mentiras de
opositores, externos ou internos, reais ou fictícios. Só em 2017, já com o
regime bolivariano em mãos de Nicolás Maduro, a ditadura de Caracas fechou 69
veículos de mídia : 46 rádios, 3 emissoras de TV e 20 jornais impressos. Pelo
menos 300 jornalistas venezuelanos foram presos ou impedidos de exercer a
atividade jornalística no país. Tudo, registradamente, em nome da luta contra
as ‘fake news’, ainda nos primórdios desse famigerado estrangeirismo que virou
um chavão obsessivo e onipresente nas guerras de narrativas dos últimos anos.
Um dos mais recentes sepultamentos da democracia sob o
túmulo da suposta ‘regulação’ ou ‘regulamentação da mídia’ aconteceu na
Nicarágua, cujo ditador, Daniel Ortega, repete ad nauseam as
palavras mágicas ‘fake news’ para rotular qualquer notícia que o seu necrotério
afirme ser falsa. A elástica manipulação da regulação nicaraguense da mídia é
usada para calar a boca de autores e também dos veículos que lhes dão voz, seja
com multa, seja com prisão, seja com a cassação dos direitos de transmissão ou
publicação. A alegada aplicação das regulações da mídia no regime de Ortega não
poupou sequer uma rede de viés esquerdista como a CNN – não assombra, então,
que tenha varrido rádios
católicas como as seis que mandou
fechar de uma única vassourada só na diocese de Matagalpa, em paralelo à onda
de perseguição contra padres e freiras que foram sitiados, presos ou expulsos
arbitrariamente do país por se atreverem a questionar a sua ‘democracia’.
Na Venezuela e na Nicarágua, o controle ditatorial da
informação pelo regime foi implementado, ostensivamente, sob a máscara da ‘democratização
da mídia’, valendo-se, já no processo de cancelamento de objetores, da
manipulação de termos técnicos elegantes, como os profusamente repetidos ‘regulação’
e ‘regulamentação’.
Por isso mesmo, antes de seguir em frente, é
necessário esclarecer o que significa regulação e o que significa
regulamentação, que não são a mesma coisa.’
Fonte : *Artigo na íntegra
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