Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
jornalista e mestre em História da Igreja, uma das
poucas brasileiras
credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa
da Santa Sé
‘A uma semana do segundo turno das eleições
presidenciais, que acontece no próximo domingo, dia 30, parte da hierarquia
católica resolveu se manifestar. Dessa vez, para se declararem publicamente
contra o atual presidente da República, Jair Bolsonaro. Os prelados dizem que a
motivação para a publicação do documento ‘está na defesa dos pequeninos, da
justiça e da paz’. Os bispos refutam as práticas adotadas por Bolsonaro,
mostrando que a postura do atual mandatário da República não condiz com os 10
mandamentos bíblicos.
Por medo de represálias por parte dos apoiadores do
candidato à reeleição, os bispos resolveram não assinar o texto. Portanto, é um
documento original, mas redigido de maneira anônima.
Nossa equipe de reportagem teve acesso à carta por
meio de um dos bispos redatores, que não quis se identificar, haja vista a onda
de violência que tem se registrado em alguns lugares do Brasil durante missas e
eventos religiosos. Eles têm medo de que, em suas dioceses, os fundamentalistas
atentem contra sua integridade física.
‘Não cabe neutralidade quando se trata de decidir
entre dois projetos de Brasil : um democrático e outro autoritário’, enfatizam.
Sem usar meias palavras, os bispos também rechaçam o
terrorismo eleitoral praticado por centros culturais, padres e influencers
católicos contra os eleitores que não apoiam o atual governo.
‘O chefe do governo e seus apoiadores, principalmente
políticos e religiosos, abusaram do nome de Deus para legitimar seus atos e
ainda o usam para fins eleitorais. O uso do nome de Deus em vão é desrespeito
do segundo mandamento’, completam.
O slogan da campanha de Bolsonaro, usado pelo
presidente em 2018, também foi criticado pelo grupo de prelados.
‘Enquanto dizia ‘Deus acima de tudo’, o presidente
ofendia mulheres, debochava de pessoas que morriam asfixiadas, além de não
demonstrar compaixão alguma com as quase 700 mil vidas perdidas para a Covid-19
e com as 33 milhões de pessoas famintas em seu país.
A política do armamento, também defendida pelo atual
governo, também foi mencionada na carta.
‘Os discursos e medidas que visam armar todas as
pessoas e eliminar os opositores estão em contradição com o 5 mandamento, que
diz ‘não matarás’, quanto com a Doutrina Social da Igreja, que propõe o
desarmamento e diz que ‘o enorme aumento das armas representa uma ameaça grave
para a estabilidade e a paz’ (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 508).
Os autores do documento, que se apresentam como ‘bispos
do diálogo pelo Reino’, encerram lançando um apelo ao povo brasileiro, e
explicando que não se trata, dada a urgência da situação, de abraçar um projeto
político, mas de uma escolha ética.
‘A Igreja não tem partido, nem nunca terá, porém ela
tem um lado, e sempre terá : o lado da justiça e da paz, da verdade e da
solidariedade, do amor e da igualdade, da liberdade religiosa e do Estado
Laico, da inclusão social e do bem viver para todos. [...] Nossa motivação é
ética e não decorre do seguimento de um líder político, nem de preferências
pessoais, mas vem da fidelidade ao Evangelho de Jesus’, concluem.
Veja a carta completa :
A GRAVIDADE DO SEGUNDO TURNO DAS ELEIÇÕES
2022
Irmãos e irmãs,
Somos bispos da Igreja Católica de várias
regiões do Brasil, em profunda comunhão com o Papa Francisco e seu magistério e
em plena comunhão com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a CNBB que,
no exercício de sua missão evangelizadora, sempre se coloca na defesa dos
pequeninos, da justiça e da paz. Lideramos a escrita de uma primeira Carta ao Povo
de Deus, em julho de 2020. Diante da gravidade do momento atual, nos dirigimos
novamente a vocês.
O segundo turno das eleições presidenciais
de 2022 nos coloca diante de um dramático desafio. Devemos escolher, de maneira
consciente e serena, pois não cabe neutralidade quando se trata de decidir
sobre dois projetos de Brasil, um democrático e outro autoritário; um
comprometido com a defesa da vida, a partir dos empobrecidos, outro
comprometido com a ‘economia que mata’ (Papa Francisco, A Alegria do Evangelho, 53);
um que cuida da educação, saúde, trabalho, alimentação, cultura, outro que
menospreza as políticas públicas, porque despreza os pobres. Os dois candidatos
já governaram o Brasil e deram resultados diferentes para o povo e para a
natureza, os quais podemos analisar.
Iluminados pelas exigências sociais e
políticas de nossa fé cristã e da Doutrina Social da Igreja Católica,
precisamos falar de forma clara e direta sobre o que realmente está em jogo
neste momento. Jesus nos mandou ser ‘luz do mundo’ e a luz não deve ficar
escondida (Mt 5,15).
Somos testemunhas de que o atual Governo,
que busca a reeleição, virou as costas para a população mais carente,
principalmente no tempo da pandemia. Apenas às vésperas da eleição, lançou um
programa temporário de auxílio aos necessitados. A 59ª Assembleia Geral da CNBB
constatou ‘os alarmantes descuidos com a Terra, a violência latente, explícita
e crescente, potencializada pela flexibilização da posse e porte de armas […].
Entre outros aspectos destes tempos, estão o desemprego e a falta de acesso à
educação de qualidade para todos. A fome é certamente o mais cruel e criminoso
deles, pois a alimentação é um direito inalienável’ (Mensagem da CNBB ao
Povo Brasileiro sobre o Momento Atual). A vida não é prioridade para este
governo.
O chefe de Governo e seus apoiadores,
principalmente políticos e religiosos, abusaram do nome de Deus para legitimar
seus atos e ainda o usam para fins eleitorais. O uso do nome de Deus em vão é
um desrespeito ao 2º mandamento. O abuso da religião para fins eleitoreiros foi
condenado em nota oficial da presidência da CNBB (11/10/2022), para a qual ‘a
manipulação religiosa sempre desvirtua os valores do Evangelho e tira o foco
dos reais problemas que necessitam ser debatidos e enfrentados em nosso Brasil’.
Enquanto dizia ‘Deus acima de tudo’, o
Presidente ofendia as mulheres, debochava de pessoas que morriam asfixiadas,
além de não demonstrar compaixão alguma com as quase 700 mil vidas perdidas
para a covid-19 e com os 33 milhões de pessoas famintas em seu país. Lembramos
que o Brasil havia saído do mapa da fome em 2014, por acerto dos programas
sociais de governos anteriores. Na prática, esse apelo a Deus é mentiroso, pois
não cumpre o que Jesus apresentou como o maior dos mandamentos : amar a Deus
sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo (Mt 22, 37). Quem diz que
ama a Deus, mas odeia o seu irmão é ‘mentiroso’ (1Jo 4,20).
Os discursos e as medidas que visam armar
todas as pessoas e eliminar os opositores estão em contradição tanto com o 5º
mandamento, que diz ‘não matarás’, quanto com a Doutrina Social da Igreja, que
propõe o desarmamento e diz que ‘o enorme aumento das armas
representa uma ameaça grave para a estabilidade e a paz’ (Compêndio da
Doutrina Social da Igreja, 508).
Vivemos quatro anos sob o reinado da
mentira, do sigilo e das informações falsas. As fake news (notícias
falsas veiculadas como se fossem verdades) se tornaram a forma ‘oficial’ de
comunicação do Governo com o povo. Isso fere o 8º mandamento, de não levantar
falso testemunho, mas mostra também quem é o verdadeiro ‘senhor’ dos que,
perversamente, se dedicam a espalhar falsidades e ocultar informações de
interesse público. Jesus diz que o Diabo é o pai da mentira (Jo 8, 44),
enquanto Ele é o ‘caminho, a verdade e a vida’ (Jo 14,6).
A Mensagem ao Povo Brasileiro, da
59ª Assembleia Geral da CNBB, alertou-nos, também, de que ‘nossa jovem
democracia precisa ser protegida, por meio de amplo pacto nacional’. No
entanto, o atual governo e os parlamentares que o apoiam ameaçam modificar a
composição do Supremo Tribunal Federal para criar uma maioria de apoio aos seus
atos. O controle dos poderes Legislativo e Judiciário sempre foi o passo
determinante para a implantação das ditaturas no mundo.
Os cristãos têm capacidade para analisar
qual dos dois projetos em disputa está mais próximo dos princípios humanistas e
da ecologia integral. Basta analisar com dados e números e perguntar : qual dos
candidatos concorrentes valorizou mais a saúde, a educação e a superação da
pobreza e da miséria e qual retirou verbas do SUS, da educação e acabou com
programas sociais? Quem cuidou da natureza, principalmente, da Amazônia e quem
incentivou a queima das florestas, o tráfico ilegal de madeiras e o garimpo em
terras indígenas?
Não se trata de uma disputa religiosa, nem
de mera opção partidária e, tampouco, de escolher o candidato perfeito, mas de
uma decisão sobre o futuro de nosso país, da democracia e do povo. A Igreja não
tem partido, nem nunca terá, porém ela tem lado, e sempre terá : o lado da
justiça e da paz, da verdade e da solidariedade, do amor e da igualdade, da
liberdade religiosa e do Estado laico, da inclusão social e do bem viver para
todos. Por isso, seus ministros não podem deixar de se posicionar, quando se
trata de defender a vida do ser humano e da natureza. Nossa motivação é ética e
não decorre do seguimento de um líder político, nem de preferências pessoais,
mas vem da fidelidade ao Evangelho de Jesus, à Doutrina Social da Igreja e ao
magistério profético do Papa Francisco.
Deus abençoe o povo brasileiro e o Espírito
Santo de sabedoria e verdade ilumine nossas mentes e corações, na hora de
votarmos nesse segundo turno das eleições de 2022. Vejamos Jesus no rosto de
cada pessoa, especialmente dos pobres que sofrem e não em autoridades humanas
que os manipulam em nome de um projeto ideológico de poder político e
econômico.
Em 24 de outubro de 2022, Memória de Santo Antônio
Maria Claret, bispo.
Bispos do Diálogo pelo Reino’
Fonte : *Artigo na íntegra
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