Maria,
a Egípcia
Muitos monges e monjas egípcios
começaram sua vida monástica a partir de experiências de conversão. A decisão
de viver somente para receber a misericórdia de Deus foi para eles o início de
uma vida nova, cujo objetivo principal era tornar real e presente esta
misericórdia divina em suas existências. Esta nova vida se realizaria então no
deserto, sob uma disciplina e ascese rigorosas, e ao mesmo tempo, sob a
confiança total na graça de Deus. Como para os Pais e Mães do Deserto, o monge
e a monja são entre os cristãos aqueles que mais se sentem necessitados da
misericórdia de Deus, usualmente, há nestas narrativas o relato de pecados
extremos e de arrependimentos extremos... Benedicta Ward, em seu livro Maria Magdalena e outros relatos,
explica que ‘o momento da conversão,
assim com os detalhes da vida precedente e sucessiva são enfatizados na obra
narrativa para sublinhar a necessidade de redenção em todo ser humano e o poder
redentor da misericórdia de Cristo para com todos’. Escrita por São
Sofrônio, ‘A Vida de Maria Egipcíaca’
pertence à tradição monástica por ser um dos textos chaves do que se pode chamar
de ‘literatura de conversão’, cujo
tema principal é a consciência da necessidade da misericórdia de Deus.
‘A vida de Maria Egipcíaca’ é composta de
duas partes. A primeira trata da vida e conduta de Abba Zózima, monge sacerdote
da Palestina, e a segunda da vida de Santa Maria Egipcíaca contada por ela
mesma ao Abba Zózima, quando os dois se encontram no deserto. O relato da história
de sua vida é, em si mesmo, o maior ensinamento de Maria Egipcíaca. A sua história
combina elementos de várias fontes, por trás das quais há prostitutas e
penitentes, que existiram de fato. Segundo Benedicta Ward, ‘por trás do gênero literário estão presentes
numerosos detalhes históricos : a existência em Alexandria e em Jerusalém, como
na maior parte das grandes cidades, de mulheres que se prostituíam e, também o
dado de que o impacto do cristianismo no Egito e na Palestina assumiu
frequentemente a forma de fuga para o deserto’.
Na história de Maria Egipcíaca, há um
interessante contraste entre Abba Zózima, um monge sábio e piedoso e a pecadora
Maria, que recebe de Cristo o dom da salvação sem nenhuma boa obra,
simplesmente pela grande consciência que tinha da sua necessidade de salvação.
Aqui volta a pergunta fundamental dos Pais e Mães do deserto : ‘O que devo fazer para ser salvo?’ Maria
foi para o deserto para ser salva, e sabia disso. Graças ao seu arrependimento,
à contrição de seu coração e à sua total confiança na misericórdia de Deus, ela
se transformou naquilo que Abba Zózima desejava ser e não conseguia, pois, no
seu íntimo, ele acreditava que alcançaria a salvação com suas próprias obras.
Por isso, caía no orgulho, pois pensava consigo :
‘Haverá
sobre a terra algum monge que possa ensinar-me algo de novo, alguém que possa
me ajudar a conhecer algo que ainda não conheço ou que tenha feito alguma obra
na vida monástica que eu não tenha feito?’
Como Deus não quer que o monge seja
somente como um servo zeloso, mas que seja um amigo com quem possa falar ao
coração, Abba Zózima foi conduzido pelo Espírito Santo ao deserto, onde, a
partir de seu encontro com Maria Egipcíaca, adquiriu um olhar novo sobre Deus,
e esta abertura dos olhos espirituais lhe permitiu contemplar e compreender os
caminhos de Deus.
Maria Egipcíaca começa o relato de sua
história dizendo :
‘Minha
pátria é o Egito. Enquanto ainda viviam meus pais, aos doze anos de idade,
desprezando o afeto deles, fui para Alexandria, e me envergonho somente em
pensar como permaneci subjugada pelo vício da luxúria.’
Para Hierome Nicolas, ‘esta idade indica a mudança de um status
social. A criança não é mais considerada como tal embora não tenha ainda
totalmente as prerrogativas de uma pessoa adulta. Como em todas as mudanças, as
passagens da vida social e a aquisição de uma liberdade nova, embora limitada,
é ocasião de uma crise que afeta não somente a adolescente, mas também o seu
meio’. Por isso, ele conclui, a raiz do pecado de Maria Egipcíaca é uma
revolta profunda em relação a seus pais, todavia não conscientizada. Ao negar o
afeto paterno, ela nega a paternidade de Deus. O pecado de Maria Egipcíaca,
mais do que uma violação de uma ordem moral ou social, é uma ruptura da
comunhão com Deus que a deixou seguir livre seu caminho, confiada às suas
próprias forças.
Maria Egipcíaca seguiu sua experiência de
ateísmo vivendo uma vida irresponsável, sem ter o domínio de seus sentidos e
paixões. Até que um dia, por pura curiosidade, se uniu aos peregrinos, ‘uma multidão de líbios e egípcios’, que
iam de Alexandria para Jerusalém. Ela perguntou a um dos peregrinos : ‘Para onde vão correndo estes homens tão
rapidamente?’ E este respondeu que todos subiam ‘para Jerusalém, para a Exaltação da Santa Cruz’. Ela se uniu à
tripulação do barco, pagou a passagem com o próprio corpo, e atravessou Mar
Mediterrâneo em direção à Terra Santa. Chegando o dia da Exaltação da Santa
Cruz, Maria foi com os peregrinos à Igreja do Santo Sepulcro onde estava
exposta a relíquia da verdadeira Cruz, mas foi impedida de entrar na igreja,
como que por uma força invisível, ‘como
se um exército de soldados tivesse sido pago para impedir meu acesso’, ela
explica. Foi então que Maria percebeu sua excomunhão :
‘Finalmente,
diz ela, ficou claro para mim o motivo pelo qual me era proibido ver o madeiro
vivificante. Com efeito, o conhecimento da salvação havia tocado minha mente e
os olhos do meu coração, ao me dar conta de que eram as miseráveis desordens de
minhas ações que me impediam de entrar. Comecei então a sentir-me fortemente
perturbada e golpeando o peito, suspirava desde o profundo do meu coração,
gemendo e lamentando.’
Vendo a imagem de Nossa Senhora, orou
para a Mãe de Deus para que a ajudasse e rompeu em lágrimas. Na manhã seguinte
pôde entrar na igreja e venerar a Santa Cruz. Depois deixou Jerusalém,
atravessou o Jordão e seguiu para o deserto, onde viveu por dezessete anos, em
contraposição aos dezessete anos que viveu na luxúria.
No átrio da Igreja do Santo Sepulcro em Jerusalém,
Jesus Cristo veio ao encontro de Maria e, mostrando-lhe a luz verdadeira,
libertou-a. No momento de sua conversão, as lágrimas derramadas foram sinal de
que a invasão do Espírito Santo provocou a abertura de seu coração. Ela aceitou
seu coração como o lugar onde o Espírito Santo pôde fazer sua obra. A partir de
sua conversão, Maria convergiu todo o seu ser de pecadora para o amor de Deus
que a salvou. O sacrifício de Maria Egipcíaca foi aceito por Deus, e uma vez
reconciliada, se reintegrou na comunidade. Paradoxalmente, ela saiu vitoriosa
por causa de sua fraqueza, pois sustentada pela rocha que é o Cristo, e com a
intercessão de Nossa Senhora, ela restaurou a sua virgindade espiritual e voltou
a ser ela mesma, tal como Deus a desejou dede a criação do mundo.
É rica a simbologia que expressa a nova
vida de Maria no deserto. Ela fez a experiência da fé e pela fé foi introduzida
no mistério de uma existência eucarística, por isso quando foi para o deserto, Maria
levou consigo três pães, que como os pães do profeta Elias, nunca acabaram. Com
a travessia do rio Jordão, símbolo do Batismo, ela se expôs à ação salvadora de
Jesus Cristo. No deserto ela foi Teodidata,
isto é, ensinada por Deus, e introduzida no conhecimento das Escrituras sem
saber ler. A ascese do deserto e a graça divina deram a seu corpo tal leveza
espiritual, que ela pôde atravessar o Jordão caminhando sobre as águas.
Antes de Maria Egipcíaca falecer, Abba
Zózima levou para ela a eucaristia e ela comungou, terminando sua vida em total
comunhão com o Senhor. Era época da Páscoa quando Zózima encontrou o corpo da
santa com as mãos voltadas em oração para o Oriente. Como o verdadeiro eremita
está em comunhão com a Igreja, a inscrição na areia encontrada ao lado do corpo
da santa revela a união entre a vida eucarística e pascal de Maria no deserto e
a Igreja :
‘Enterra,
Abba Zózima, o pequeno corpo da miserável Maria. Restitui à terra o que é seu e
junta o pó ao pó. Somente ora por mim, em nome do Senhor, que faleceu neste
primeiro dia do mês de Pharmuti, segundo os egípcios, e que segundo os romanos
é o nono dia, quer dizer, o quinto dos idos de abril, o dia da Paixão
salvífica, depois da Comunhão da divina e sagrada Ceia.’
Zózima lavou os pés da santa com suas
próprias lágrimas, como a pecadora do Evangelho lavara os pés de Jesus, pois
seu coração fora tocado pela compunção. Como já era avançado em idade, - ele
morreria logo depois de Maria - Zózima não tinha forças para cavar a sepultura.
Mas eis que no meio do deserto apareceu um leão manso, que fez este trabalho
para Zózima. Um leão pacificado, assim como as paixões de Maria e o coração de
Zózima. Em presença do leão, Zózima cobriu o corpo da santa com terra e fez as
orações. Em seguida cada um tomou seu rumo : o leão adentrou no deserto, e
Zózima voltou ao seu mosteiro ‘bendizendo
e louvando a Deus, e cantando um hino em louvor a nosso Senhor Jesus Cristo’,
pois viu ainda uma vez mais a evidência da ação do Espírito Santo na vida
daquela serva que tanto agradou a Deus, Maria Egipcíaca.
Uma vez que um olhar sobre as Mães do
Deserto pode apresentar a realidade do arrependimento e da salvação, com
profundidade e clareza, a história de Maria Egicíaca, por sua vez, consegue
transmitir a verdade teológica da salvação com um rosto humano para os leitores
e ouvintes de todos os tempos. Além disso, estas mulheres tinham consciência do
poder da ação de Deus na vida do cristão por meio da sua Palavra, por isso Maria
Egipcíaca diz que ‘a Palavra de Deus, viva
e eficaz (Hb 4,12), instrui a inteligência humana desde o seu interior’.
Uma leitura orante da vida de Maria Edipcíaca com certeza pode trazer muitos
bons frutos para nossas jovens de hoje, especialmente por conduzí-las a uma
experiência da misericórdia de Deus, que converte e purifica os corações. Por
este motivo, a Igreja do Oriente celebra Maria Egipcíaca no V Domingo da
Quaresma como modelo de contrição. Em seu Cânon ela reza : ‘A força de tua cruz, ó Cristo, operou
maravilhas, por até esta mulher, que outrora foi prostituta, escolheu seguir o
caminho ascético. Abandonada à própria debilidade, se opôs fortemente ao
demônio, e obtendo o prêmio da vitória, intercede por nossas almas’. Amém.
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