* Artigo de Ir. Roberta Peluso, OSB
Entre os Pais e Mães do deserto costuma-se dizer que uma pessoa pode vir a escolher o caminho ascético ‘por fortaleza’ ou ‘por fraqueza’. No primeiro caso, escolhe quando encontra neste estilo de vida uma maneira de continuar sua caminhada de perfeição cristã. No segundo, quando encontra um caminho que lhe permite uma ruptura com a vida antiga e oferece a oportunidade de uma vida nova, usualmente após uma experiência de conversão. Como exemplo do primeiro caso temos Santa Sinclética e do segundo, Santa Maria, a Egípcia (ou Egipcíaca). Estas mulheres que deixaram o mundo por amor a Cristo e que no deserto combateram contra os vícios do corpo e do pensamento, são conhecidas como Ammas do Deserto, ou seja, Mães do Deserto.
Os relatos das vidas destas santas ilustram a caminhada da vida espiritual cristã. Tanto o relato da ‘Vida e ensinamentos de Sinclética’, de autor anônimo do século V, quanto da ‘Vida de Maria Egipcíaca’, escrita por São Sofrônio, bispo de Jerusalém (séc. VI), têm como pano de fundo a ‘Vida e Conduta de Santo Antão’, escrita por Santo Atanásio de Alexandria no séc. IV. Conta Santo Atanásio que Santo Antão era egípcio de nascimento. Seus pais eram bem posicionados, e como eram cristãos, Santo Antão teve uma sólida formação cristã desde o berço. Depois da morte de seus pais, Santo Antão ficou sozinho com sua irmã mais jovem. Certo dia, quando tinha cerca de dezoito anos, como era seu costume, estava se dirigindo para a igreja, e caminhava pensando sobre a fé e o despojamento dos primeiros cristãos descritos nos Atos dos Apóstolos. Estava tão absorto em seus pensamentos, que chegou atrasado na missa, na hora da leitura do Evangelho. Estavam lendo justamente a passagem em que Jesus diz ao jovem rico : ‘Se queres ser perfeito, vende o que tens e dá aos pobres, depois vem e segue-me e terás um tesouro nos céus’ (Mt 19,21). A escuta desta Palavra tocou tão profundamente o coração de Santo Antão,...que ao sair da igreja, distribuiu sua herança com as pessoas da aldeia e com os pobres. Deixou sua irmã aos cuidados de umas virgens conhecidas e fiéis. Em seguida, se dedicou à vida ascética, mas perto de sua própria casa, pois segundo Santo Atanásio, ‘não havia ainda no Egito mosteiros tão numerosos, e o monge não sabia absolutamente nada do grande deserto. Quem queria aplicar-se a si mesmo, exercitava-se não longe de sua aldeia’. Sob uma ferrenha disciplina, orientado por outro asceta mais experiente, Santo Antão progrediu na vida espiritual, orando e trabalhando, se instruindo nas virtudes e na ascese e se adestrando no combate contra o demônio. Mais tarde, triunfando nos combates, se dirigiu para os sepulcros e entrando num túmulo, símbolo da gestação para uma vida nova, permaneceu lá sozinho. Depois desta etapa, Santo Antão foi para o deserto, onde morou numa fortificação abandonada definitivamente. Escreve Santo Atanásio que, visitado por monges seculares, ‘em frequentes colóquios, Antão encorajava os monges e determinou vários visitantes a se tornarem monges. Era como que o pai de todos esses mosteiros’.
Sinclética
O autor – ou autora, não se sabe – da ‘Vida e Ensinamentos de Sinclética’, conta que este nome significa ‘assembléia’, em grego, por isso ela é aquela que congrega em torno de si muitas discípulas. Sinclética nasceu na Macedônia, uma região da Grécia. Seus pais ao terem conhecimento de que as pessoas que viviam em Alexandria, uma cidade do Egito, amavam a Deus e a Cristo, decidiram sair da Macedônia e partir para Alexandria. Atravessaram o Mar Mediterrâneo e foram muito bem acolhidos no novo país. Mas o que lhes agradou não foram os monumentos ou o grande número de habitantes de Alexandria, e sim a fé simples e o amor sincero dos cristãos daquela cidade, por isso o Egito se tornou para eles uma segunda pátria. Como Sinclética era muito bonita, e sua família era bem posicionada, havia muitos jovens que a queriam em casamento, e seus pais esperavam dela o mesmo destino. Mas os planos da jovem eram outros e pouco se interessava pelos seus pretendentes, uma vez que o único esposo que ela desejava era Jesus Cristo. Começa, então, a cena vocacional clássica que bem conhecemos; seus pais, parentes e amigos tentam mudar sua decisão, para que escolha o matrimônio, mas Sinclética permanece ‘sólida como um diamante e não muda seus sentimentos’, descreve o autor. E acrescenta que ela fecha as portas de seus sentidos e conversa somente com Cristo, seu esposo, repetindo as palavras do Cântico dos Cânticos : ‘O meu amado é meu, e eu sou dele’ (Ct 2,16). Quando seus pais morreram, ela e sua irmã cega deixaram a família, e como Santo Antão, venderam seus bens e distribuíram a herança de sua família aos pobres. Em seguida, as duas cortaram os cabelos diante de um sacerdote, e com o coração simples e puro, receberam o nome de virgem. Para os antigos uma virgem era uma mulher inteiramente consagrada a Deus, e que por isso não se casava. Assim como o Pai dos Monges, no começo de sua vida ascética, vão morar nos arredores de Alexandria onde passam o resto de suas vidas.
Se Sinclética não morou no deserto, mas levou uma vida escondida nos arredores da grande cidade de Alexandria, por que ela é considerada uma Mãe do Deserto? Porque conheceu todos os combates do deserto, e não agindo conforme suas capacidades intelectuais, mas conforme a inspiração do Espírito Santo, vivenciou tudo o que ensinou, servindo assim de modelo para aquelas que quisessem seguir o mesmo caminho. Em sua caminhada espiritual, Sinclética progrediu na prática das virtudes, e com a ajuda de Deus, venceu os combates contra os maus pensamentos e os vícios. Seu biógrafo relata que ‘com o passar do tempo, suas virtudes de desenvolveram e o bom odor de seus esforços e de suas vitórias se tornou conhecido... Assim, como os que estão atentos à Palavra de Deus se corrigem e dão fruto, algumas jovens que desejavam avançar na sua vida para Deus começaram a vir até Sinclética para receber seus ensinamentos’.
As jovens discípulas vinham frequentemente para ser orientadas e conhecer o estilo de vida que Sinclética levava. Perguntavam segundo o costume : ‘O que devo fazer para ser salva?’ Eis aí a pergunta chave para entender o monaquismo do deserto : as jovens não perguntavam o que devo fazer para ser feliz? Ou com serei bem-sucedida na vida? Mas o que devo fazer para ser salva? É a mesma pergunta que os discípulos faziam aos Pais do Deserto, em especial a Santo Antão. Isso remete a uma ‘praxis’, - o que fazer – e a um objetivo : a salvação. Por isso os ensinamentos de Sinclética começam com esta máxima : ‘Ser salvo é amar a Deus e a seu próximo’. Sinclética é uma guerreira e seu inimigo principal, como personificavam os antigos, era o demônio com pensamentos maus e grandes tentações. Ela enfrentava corajosamente o adversário e vencia, pois anulava os maus pensamentos com bons pensamentos e as más ações com boas ações. Por isso ela usa muitas imagens fortes para aconselhar suas jovens discípulas :
‘Lutem contra as armadilhas do inimigo com toda a inteligência’, e acrescentava que ‘os medicamentos comuns que devemos usar contra os pensamentos maus são a ascese e a oração pura’, e ‘antes de mais nada, sejam mestras de seus estômagos, pois isto permite dominar todos os desejos maus’.
Sinclética exercia com suas discípulas aquilo que chamamos hoje de uma ‘autoridade dialogada’. Seus ensinamentos brotaram do diálogo com as jovens, a partir de suas necessidades concretas e não de um ideal que elas deveriam alcançar. Como viviam em Alexandria, que é perto do mar, Sinclética ensina sobre a humildade :
‘Assim como é impossível construir um barco sem pregos, é impossível ser salva se não se é humilde.’
Perguntam as jovens se a pobreza é um grande bem, e Sinclética mostra, com outro exemplo marítimo, que a verdadeira riqueza é o progresso espiritual :
‘Os caçadores de tesouros suportam as tempestades que fazem cambalear os barcos e combatem contra os outros caçadores que os atacam em alto-mar. Mas quando chegam à terra, caem nas mãos dos bandidos. Nós ao contrário, não precisamos enfrentar tão grandes perigos por causa de nossa verdadeira riqueza!’.
E sobre a vigilância dos pensamentos adverte :
‘Devemos ficar atentas aos pensamentos maus que nos atacam a partir de dentro e a partir de fora. Quando há uma tempestade, os marinheiros começam a gritar, e os barcos que estão próximos se aproximam para salvá-los. Mas se eles dormem porque o mar está calmo, a água pode entrar por um furo no fundo do barco, e não se dando conta, sucumbem e morrem’. Assim, ‘podemos nos perder tanto pelas faltas exteriores, quanto pelos pensamentos interiores’.
E ainda dá um conselho vocacional : ‘Tudo não convém a todos. Cada qual deve se conhecer bem para escolher bem. Para umas a vida em uma comunidade é boa, para outras é melhor viver só. Há plantas que se dão bem numa terra úmida. Há outras que se dão bem numa terra seca. Acontece o mesmo com os seres humanos’.
Sinclética viveu até os 80 anos enfrentando até o fim os ataques do inimigo. E ainda encontrava forças para encorajar suas companheiras dizendo-lhes : ‘Sejam fortes e tenham coragem nos momentos difíceis’. No momento de alcançar a vitória e receber a coroa, Sinclética viu coisas extraordinárias : viu o paraíso e uma luz tão brilhante que não conseguiu descrever com suas palavras. Quando chegou o dia e a hora em que aconteceria seu trânsito, acontecimento que ela já havia previsto, Sinclética partiu para o encontro de seu Senhor, e recebeu o Reino dos Céus como recompensa de suas lutas. Pelas virtudes e ensinamentos de Sinclética, o convite que Santo Atanásio faz para ler a ‘Vida e Conduta de Santo Antão’, pode também ser feito por nós às jovens que se aproximam de nossos mosteiros para que conheçam a vida desta santa : ‘Lede essas coisas aos outros irmãos para lhes ensinardes como deve ser a vida dos monges e persuadi-los de que Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo glorifica aqueles que o glorificam, e não só conduz ao reino aqueles que o servem até o fim, mas também, por causa de sua virtude e utilidade dos outros, manifesta e torna célebres em toda parte aqueles que se ocultam e procuram retirar-se’.
Fonte :
* Ir. Roberta Peluso, OSB, monja do Mosteiro da Santíssima Trindade – Santa Cruz do Sul – RS
Revista Beneditina nrº 36, Novembro/Dezembro de 2009, editado pelas monjas beneditinas do Mosteiro da Santa Cruz – Juiz de Fora/Minas Gerais.
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