sábado, 16 de março de 2013

Eucaristia : Memorial da Páscoa de Cristo (Capítulo 4 de 4)

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
            Um sacrifício de Aliança supõe então um comprometimento mútuo da parte de Deus, certamente, mas também, e de modo indispensável, da parte da comunidade que oferece o sacrifício. Entretanto, à primeira vista, o Novo Testamento não parece mencionar a propósito da Eucaristia, uma lei específica que os Apóstolos tenham se comprometido a observar. De fato, nos quatro relatos da instituição já citados em Mateus, Marcos, Lucas e Paulo, não há nenhuma alusão a isso. Não é espantoso? Será que aqui não há uma falha? É São João quem nos dá a resposta. Com efeito, embora ele não tivesse achado necessário contar novamente o relato da instituição (São João escreveu depois dos quatro outros), julgou o segundo elemento tão importante que fez questão de relatá-lo explicitamente – a Lei nova que Jesus então tinha promulgado, e quis dar a essa promulgação uma solenidade particular. Leiamos o capítulo 13 de seu evangelho :   
            Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que tinha chegado a sua hora, hora de passar deste mundo para o Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim. Foi durante a ceia. O diabo já tinha seduzido Judas Iscariotes, para entregar Jesus. Sabendo que o Pai tinha posto tudo em suas mãos e que de junto de Deus saíra e para Deus voltava, Jesus levantou-se da ceia, ...’ (Jo 13, 1-4).
            Início extremamente solene, para nos contar o quê? O lava-pés. À primeira vista, fica-se um pouco decepcionado, mais adiante porém ver-se-á 0 sentido muito profundo dessa aproximação.
            João nos conta em seguida o anúncio da traição de Judas e sua saída : Então, depois de receber o pedaço de pão, Judas saiu imediatamente. Era noite. (Jo 13,30).
            É portanto, após a saída de Judas, que Mateus e Marcos nos relatam a instituição da Eucaristia. Em São João, Jesus dá então o sentido de todos esses acontecimentos (v. 31-33) e em seguida :
            Eu vos dou um novo mandamento : amai-vos uns aos outros. Como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros. Nisto conhecerão todos que sois os meus discípulos, se vos amardes uns aos outros’ (Jo 13, 34-35).
            É impossível não ver aqui a promulgação da lei sem a qual, para um israelita – e os apóstolos o eram – não há possibilidade de Aliança. Assim como a Lei do Sinai era o sinal que identificava o israelita, o mandamento novo é o sinal que identifica o discípulo de Jesus. Mateus, Marcos, Lucas e Paulo nos ensinam que a Eucaristia é um sacrifício de Aliança; São João nos diz qual é a sua lei, lei que compromete todo cristão cada vez que celebra a Eucaristia. Qual é mesmo esse mandamento novo? Amar como ele nos amou, dar nossa vida por ele – e Pedro bem o compreendeu, pois nos versículos seguintes diz : ‘Eu darei minha vida por ti’. Mas também, e primeiramente, dar nossa vida por nossos irmãos; amar nossos irmãos como ele, Jesus, amou, nos humildes serviços cotidianos. Compreende-se então por que João relatou nesse capítulo 13 o lava-pés : ‘Dei-vos o exemplo, para que façais assim como eu fiz para vós’. Comprometer-nos a seguir a Lei nova, o mandamento novo, é nos comprometer a amar como ele nos amou, isto é, dando nossa vida por nossos irmãos, não de uma só vez, mas como que gota a gota, nos humildes serviços da vida de todos os dias (12).
            Porém, na Liturgia, na oração eucarística, onde se encontra o eco dessa Lei nova ante a qual deveríamos nos comprometer? Muito provavelmente na ordem de Jesus : ‘Fazei isto em memória de mim’. Essa ordem, que ultrapassa de longe o fato de ‘refazer’ o rito eucarístico em memória dele, é ordem de amar como ele amou, de entregar nosso corpo, de derramar nosso sangue, de dar nossa vida pelos nossos irmãos como ele o fez e em memória dele; mas isso, digo ainda uma vez, no serviço obscuro e desinteressado do próximo ao longo de toda a nossa vida.
            É preciso porém ir ainda mais longe na descoberta da Eucaristia como sacrifício de Aliança. Em seus relatos, São Lucas e São Paulo empregam uma expressão diferente da de Mateus e Marcos, dizendo : ‘Este cálice é a Nova Aliança no meu sangue’. Ora, a expressão ‘Nova Aliança’ só se encontra uma única vez no Antigo testamento, em Jeremias 31,31. Assim como voltamos ao capítulo 24 do Êxodo para compreender o sacrifício de Aliança, precisamos agora recorrer ao livro de Jeremias para um melhor entendimento do que é a ‘Nova Aliança’.
            Um dia chegará – oráculo do Senhor – quando hei de fazer uma nova aliança. Não será como a aliança que fiz com seus pais quando pela mão os peguei para tirá-los do Egito. Essa aliança eles quebraram, mas continuei Senhor deles – oráculo do Senhor. Esta é a aliança que farei com a casa de Israel, a partir daquele dia – oráculo do Senhor; colocarei a minha lei no seu coração, vou gravá-la em seu coração; serei o Deus deles, e eles, o meu povo. Ninguém mais precisará ensinar seu irmão, dizendo-lhe : ‘Procura conhecer o Senhor!’ Do menor ao maior, todos me conhecerão – oráculo do Senhor. Já terei perdoado suas culpas, de seu pecado nunca mais me lembrarei’ (Jr 31, 31-34).
            O profeta Jeremias escreve na época dolorosa em que o Povo faz a experiência do exílio. Depois de tantas e tantas infidelidades de sua parte, sua Aliança com Deus, da qual o dom da Terra era o penhor permanente, parece rompida. Também nesse contexto o oráculo de Jeremias toma toda a sua força. Notemos primeiramente que, para Jeremias como para Moisés, não há Aliança sem Lei. A Aliança do Sinai consistira no dom da Lei de Deus gravada sobre tábuas de pedra. Na Nova Aliança há igualmente o dom da Lei de Deus, mas gravada sobre o coração do homem, doravante lei interior. Lei que se tornou exigência íntima em vez de se impor do exterior. Ora, dirá Jeremias, não se pode deixar de observar uma tal lei : ‘Todos me conhecerão, ninguém mais precisará ensinar seu irmão...’. Esse conhecimento de Deus é, na Bíblia, fidelidade em observar seus preceitos, os mandamento, a Lei. Conhecimento de Deus e fidelidade são uma só e mesma realidade.
            Jeremias nos diz coisas muito belas, Elas serão ainda enriquecidas pelo que dirá, vinte anos mais tarde, um outro profeta, Ezequiel. Este escreve no exílio, lá na Babilônia, e retoma o oráculo de Jeremias ampliando-o :
            Eu vos darei um coração novo e porei em vós um espírito novo. Removerei de vosso corpo o coração de pedra e vos darei um coração de carne. Porei em vós o meu espírito e farei com que andeis segundo minhas leis e cuides de observar os meus preceitos. Habitareis na terra que dei a vossos pais. Sereis o meu povo e eu serei o vosso Deus’ (Ez 36, 26-28).
            Onde Jeremias havia dito : ‘Colocarei a minha Lei no seu coração’, Ezequiel nos dá essa precisão perturbadora : ‘Porei em vós o meu espírito’. Esse coração novo, esse espírito novo, essa lei da Nova Aliança, é o próprio Espírito de Deus inscrito, gravado, no coração do homem. Compreende-se assim que o fiel que recebeu esse dom do Espírito não pode mais deixar de agir de acordo com a vontade de Deus, de Deus que é Amor. Aquele que recebeu o Espírito Santo no íntimo do seu ser não pode deixar de amar.
            Na instituição da Eucaristia, Cristo nos comunica a lei da Nova Aliança, o mandamento novo; não apenas uma promulgação exterior da vontade de seu Pai : ‘Amai-vos uns aos outros’, mas uma comunicação de seu próprio Amor, o mesmo Amor com o qual o Pai ama o Filho e os homens no Espírito e com o qual ele, Jesus, ama o Pai e os homens no mesmo Espírito. Ele nos comunica seu Espírito que é o próprio Espírito de Deus no qual, por nossa vez, podemos e devemos amar não só a Cristo como também ao Pai e a todos os homens nossos irmãos. Vê-se melhor que o mistério de comunhão do qual falamos anteriormente encontra seu princípio no Espírito Santo gravado no coração de cada um : o Espírito de Deus, o Amor de Deus, princípio de nossa comunhão no Amor.
            Depois desta descoberta, podemos concluir com toda celebração da eucaristia : ‘Por Cristo, com Cristo e em Cristo, a Vós, Deus Pai, Todo-poderoso, NA UNIDADE DO ESPÍRITO SANTO, toda a honra e toda a glória, agora e para sempre’.   
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(12) É interessante notar que se encontra em São Lucas um eco direto desse serviço humilde e desinteressado na passagem do capítulo 22, 26-27 que vem logo após o relato da instituição da Eucaristia. Somente compreendemos a razão pela qual Lucas colocou aí esse episódio como um eco do lava-pés.
 

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