Eucaristia, Sacrifício da Nova Aliança (9)
Lembremos
que a eucaristia é o sacramento do amor de Deus. É preciso com efeito compreender que Deus criou o universo tão-somente
para unir todos os homens no amor. A história de Deus e de seu povo é só isso :
um caminhar para a unidade de todos os homens nesse amor. Deus criou o homem
para partilhar com ele tudo de sua própria vida, inclusive sua divindade – e a teologia
oriental insiste muito nessa divinização do homem – partilhar tudo, inclusive
sua divindade. Mas também Ele mesmo partilhar tudo de nossa vida humana no que
ela tem de melhor, a amizade, a alegria e igualmente no que ela tem de menos
bom também : a pobreza, a dureza do trabalho, a tortura, a injustiça, a morte
enfim. Tudo isso Deus, em
Jesus Cristo , veio partilhar conosco. ‘tudo o que é meu é
teu’ : essa palavra do pai do filho pródigo ao filho mais velho, Deus não
cessa de no-la repetir; esse é o grande amor, a amizade de Deus pelos homens. É
essse amor, essa amizade que Deus vai selar na Aliança com seu
povo. A Eucaristia será também o lugar onde, por nossa vez, vamos selar essa
Aliança com Deus, vamos celebrá-la.
Na
Ceia da Quinta-feira Santa, ao pronunciar as palavras sobre o cálice, Cristo
indicou da maneira mais clara possível, que a Eucaristia é um sacrifício de
Aliança. É um dos aspectos mais explícitos do Novo Testamento (10). É
até mesmo um dos pontos sobre o qual os quatro relatos estão de acordo, Marcos
e Mateus dizendo : ‘Este
é o meu sangue da nova Aliança’; Lucas e Paulo dizendo : ‘Este cálice é a nova
Aliança no meu sangue’. Ora, digamos com clareza, essa noção de Aliança não
nos é mais muito familiar, até se tornou estranha e no entanto é de suma
importância no Novo Testamento e em toda a Bíblia. No tempo de Cristo e dos
apóstolos as coisas eram bem diferentes; e o que nós dizíamos para o sentido do
Páscoa é pelo menos também verdadeiro para a noção de Sacrifício da Aliança.
Nenhum dos que assistiam à Ceia e seguramente nenhum dos primeiros cristãos se
enganaria sobre o que Jesus quis fazer, nem sobre o sentido das palavras que
tinha pronunciado : ‘Este é o meu sangue
da Aliança’.
Esta
frase do Cristo remetia os judeus, tão impregnados do Antigo Testamento, à
mesma frase pronunciada por Moisés precisamente durante a Aliança do Sinai,
isto é, o acontecimento que tinha marcado mais profundamente a história do povo
de Israel, acontecimento relacionado com a libertação do Egito. Pois Deus, com
efeito, tinha libertado seu provo da escravidão para o conduzir ao Sinai e aí
celebrar a Aliança e para fazer de Israel um povo livre, o povo de Deus, um
reino de sacerdotes e uma nação santa ( Ex 19,6).
Se
quisermos compreender o que é a Eucaristia e o sentido que Jesus lhe quis dar,
consideremos agora a Aliança do Sinai :
‘Então Moisés escreveu
todas as palavras do Senhor. Levantando-se na manhã seguinte, ergueu ao pé da
montanha um altar e doze colunas sagradas, segundo as doze tribos de Israel. Em
seguida, mandou alguns jovens israelitas oferecer holocaustos e imolar novilhos
como sacrifícios de comunhão ao Senhor. Moisés pegou a metade do sangue,
colocou-o em vasilhas e derramou a outra metade sobre o altar. Tomou depois o
livro da Aliança e o leu em voz alta ao povo, que respondeu : ‘Faremos tudo o
que o Senhor falou e obedeceremos’. Moisés pegou, então, o sangue, aspergiu com
ele o povo e disse : ‘Este é o sangue da Aliança que o Senhor fez convosco,
referente a todas estas cláusulas’ (Ex 24,4b-8).
Verificamos
primeiramente que há um rito essencial, o rito do sangue, reservado a Moisés e
contendo essas palavras : ‘Este é o sangue da Aliança...’, que Jesus retoma
durante a instituição da Eucaristia. Esse rito do sangue tem um simboloismo
natural muito expressivo. Esse sangue é derramado tanto sobre o altar, que
representa Deus, como sobre o Povo, para significar uma realidade extremamente
concreta : doravante um mesmo sangue circula nas duas partes contratantes da
Aliança, uma mesma vida – pois como diz o Levítico, ‘a vida de um ser vivo
está no sangue’ (Lv 17,11; cf. também Dt 14,21); entre Deus e o povo,
circula por assim dizer, uma mesma vida, fazendo das duas partes contratantes
da Aliança como que um único ser vivente. Esse simbolismo do sangue é muito
importante porque o reencontramos exatamente na Eucaristia cristã : comungando
o sangue de Cristo, consumindo o sangue de Cristo, é a própria vida de Deus que
se torna nossa vida. A palavra de São Paulo : ‘Eu vivo, mas não eu,
é Cristo que vive em mim’ (Gl 2,20), alcança aqui toda a sua amplitude e
toda a sua dimensão. Portanto, a Eucaristia é igualmente, como podemos ver, um
sacrifício de Aliança, onde um mesmo sangue, uma mesma via circula entre o
Cristo Jesus, Deus que se fez homem, e o Povo que celebra. Mas
há um outro elemento que o relato bíblico põe em evidência : o sacrifício de
Aliança exige, paralelamente ao rito do sangue, um compromisso formal e
explícito do Povo em relação a Deus; comprometimento a observar a ‘Lei da Aliança’.
Para um judeu, não há Aliança sem Lei, não há sacrifício de Aliança sem o
compromisso de observar essa Lei (cf. Ex 24,7). Retomando o rito da Aliança,
temos o seguinte esquema :
ü Um sacrifício de novilhos cuja finalidade
essencial é a obtenção do sangue;
ü Este é derramado sobre o altar
representando Deus como primeiro contratante da Aliança;
ü A proclamação da Lei da Aliança e o
compromisso do Povo a observá-la;
ü Só então Moisés, aspergindo o Povo
(segundo contratante da Aliança), pronuncia as palavras que Cristo vai retomar
: ‘Este é o sangue
da Aliança que o Senhor fez convosco, referente a todas estas cláusulas’.
O
vínculo entre Aliança e Lei é tão forte que o acontecimento do Sinai, no qual
Deus se comprometeu em aliança com seu Povo, será chamado o ‘dom da Lei’ e os
dois termos, Aliança e Lei, serão às vezes empregados como sinônimos (11).
Para nos convencermos disso vejamos outro texto bíblico, o relato da celebração
da Aliança no final da conquista daTerra prometida, no capítulo 24 do livro de
Josué :
‘O povo disse a Josué
: ‘Serviremos ao Senhor, nosso Deus e obedeceremos à sua voz’ . Naquele
dia, Josué fez uma aliança para o povo e lhe propôs, em Siquém, lei e decreto’
(Js 24, 24-25). A
Aliança só foi concluída depois de o povo se comprometer a seguir o Senhor e a
obedecer à sua voz.
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(9)
Devo muito à
brochura do Padre S. Lyonnet : Eucharistie et Vie Chrétienne, (cf. nota 5).
(10) No Novo Testamento o relato da
instituição da Eucaristia encontra-se em : Mt 26, 26-29; Jc 14, 22-25; Lc 22,
15-20; 1Cor 11, 23-26.
(11) Comparar, por exemplo, com 2Rs 22,8 e
2Rs 23,2.
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