quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Uma mística do serviço : A vida contemplativa segundo São Bernardo (Capítulo 1 de 3)

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
São Bernardo

 * Artigo de Pe. Lode van Hecke, OCSO
‘Entrando em Cister com seus trinta companheiros, São Bernardo fez resolutamente opção por uma vida comunitária. Ele não entrou em uma vida contemplativa na qual devesse – ele também – assumir uma vida comunitária. Já havia optado por uma vida comunitária, quando se retirou de sua propriedade familiar em Sombermon, não sozinho, mas com seus irmãos e mais alguns outros. Era, pois à primeira vista, um retiro coletivo.
Não podemos subestimar esse fato. Ele vai marcar toda a vida espiritual de Bernardo. Não se poderia, sem truncá-lo, retirar de sua doutrina a dimensão comunitária e mesmo apostólica. Ao que viveu na partida, ser-lhe-á fiel toda a vida, e quererá que os monges cistercienses o vivam também (1).
 

A ‘vontade comum
A ‘vontade comum’ é uma palavra-chave na espiritualidade de Bernardo. Ele tem horror ao individualismo e sempre se opõe a toda forma de ‘singularidade’ que é também excentricidade.
Poderíamos aqui definir a excentricidade como essa atitude que não coloca o bem comum no centro. Singularizando-se, a pessoa sai do centro, do círculo. Afasta-se da vontade comum para procurar o seu próprio bem. Quem se comporta dessa maneira, vive ‘segundo a carne’, vive contra o Espírito.
São Bernardo considera o afastamento da comunidade como uma forma de orgulho, porque o orgulhoso crê ter a existência por si mesmo e não precisar de ninguém. Por isso é que se isola dos outros. ‘Esta solidão é a dos orgulhosos, porque eles se consideram como únicos e só desejam passar por únicos’ (Div 1,2).
Bernardo utiliza a referência à comunidade como um verdadeiro critério para discernir a humildade. A seus olhos, o monge que não se atém à regra comum, também não se resgata absolutamente, fazendo coisas admiráveis e extraordinárias. E aquele que é fortemente aplicado a práticas particulares, mas lento nos exercícios comunitários, encontra-se no quinto degrau do orgulho (cf. Hum 42).
Por isso, gostava da imagem da procissão : ninguém é capaz de formar sozinho uma procissão...Ao contrário, ‘perturbaria a procissão quem quisesse avançar sozinho, e não seria apenas a si que prejudicaria, mas atrapalharia os outros’ (Pur 2,2).
Isso porque o ser humano é um ser social, no sentido em que é da natureza das coisas que o homem aprenda muito depressa dar-se conta dos outros. Ele compreende que o outro também tem direito ao respeito de suas necessidades e mesmo direito ao prazer! Em testemunho disto, cita essa passagem no Tratado do amor de Deus :
Sim, é de toda justiça que aquele que participa da natureza não seja excluído da graça, sobretudo daquela graça que se acha inerente à natureza. Se está a cargo do homem, eu não digo só prover às necessidades de seus irmãos, mas também velar sobre seus prazeres, que ele para isso reprima os seus, se não quiser ser transgressor da lei. Que ele se permita tudo que ele quer, com a condição de se lembrar da obrigação de conceder outro tanto a seu próximo. É assim que o amor carnal se torna também social, quando ele se alarga, em vista do bem comum’ (Dil 23).
 
  
Viver na Igreja, no Espírito
Este ‘amor social’ se purificará e se aprofundará pela fé em Cristo. Ele o fará de tal modo que nosso desejo de nos conformar ao Cristo, e nosso amor a Deus se exprimirão necessariamente em nosso senso de vida comunitária. Para Bernardo, nossa primeira comunidade é a Igreja. Nossa união pessoal com Jesus supõe que sejamos membros da Igreja. O que chamamos hoje ‘a dimensão mística’ de nossa vida espiritual é condicionada por nossa adesão à Igreja. É primeiramente a Igreja que tem o título de Esposa (SCt 68 e 69,1). Bernardo diz em uma de suas admiráveis conclusões dos Sermões sobre o Cântico :
 ‘Graças te sejam dadas, Senhor Jesus: tu te dignaste agregar-nos a tua Igreja bem-amada graças não só porque te somos fiéis, mas ainda porque somos unidos a ti como uma esposa casta e por uma união eterna. Também a nós concedes contemplarmos, a rosto descoberto, essa glória que possuis em toda igualdade com o Pai e o Espírito Santo, nos séculos dos séculos’ (SCt 12,11).
Para nós, viver na Igreja significa concretamente viver em comunidade. Mas é o Espírito Santo quem suscita a ‘vontade comum’, que nos leva da vontade própria à vontade comum (2). É logico concluir que a ausência da vida comunitária denota também uma ausência do Espírito Santo. ‘O anátema é separação. Sim, isto acontece com aquele que se separa da unidade : não há dúvida, o Espírito de vida retirou-se dele’ (Mich 1,6). Com efeito :
Jesus quer dizer Salvador ou Salvação, anátema quer dizer separação. Aquele que te insinua a te separares da salvação não é pois o Espírito de Deus, ele não vem de Deus, porque o Espírito Santo pretende reunir e não dispersar. Ele não cessa de convocar para sua terra os dispersos de Israel’ (Div 22,4).
Estas citações deveriam alimentar nosso zelo pelo ecumenismo, mas elas devem também primeiramente estimular nossa vida comunitária. Nossa generosidade não basta para formar uma comunidade. É-nos necessária a unção do Espírito Santo. Após a queda do pecado, estamos muito espontaneamente voltados para nós mesmos, dificultando uma coesão estável entre nós. Mas o que a natureza não sabe fazer, o Espírito Santo lhe dá como graça. Escutemos São Bernardo que fala primeiramente do egoísmo que nos é próprio, ainda mesmo que nos torne menos humanos. Este egoísmo nos cega a respeito de nós mesmos e ao mesmo tempo julga os outros de maneira indevida.
O homem, espoliado de toda humanidade, quando ele quer, quando tem necessidade de ser socorrido pelos homens, não quer ele mesmo socorrê-los quando este precisam. Mais ainda, julga, despreza, ridiculariza, ele homem, os falíveis, ele pecador, sem se considerar a si mesmo, de medo de ser tentado, ele também. Desta infelicidade, eu o disse, a natureza não pode se restaurar a si mesma. Ela não recuperava, uma vez deteriorado, o óleo da mansidão inata. Mas o que não pode a natureza, está em poder da graça. O homem que a unção do Espírito em sua misericórdia se dignar regar de novo com sua bondade, voltará logo a ser um homem. Além disso, ele receberá da graça um dom melhor que aquele da natureza. A graça o santificará na fé e na doçura’ (SCt 44,6).
Esse texto nos leva a compreender quanto a santidade pessoal pode tornar a comunidade coesa em torno dessa pessoa santa. É somente então, após ter recebido o Espírito de Jesus, que nos é possível viver como a Regra de São Bento o entende no capítulo 72 (Do bom zelo que os monges devem ter). Disto encontramos um eco na citação seguinte, em que Bernardo se dirige àquele que recebeu a unção do Espírito Santo :
Tu também, meu irmão, se recebeste algum dom do Alto, não tardes em partilhá-lo com teus companheiros, (...) então, todos te darão testemunho de que tu também expandes os melhores perfumes. Quem dentre vós suporta com paciência as enfermidades tanto físicas como morais de seus irmãos e mais ainda, se com autorização e competência os alivia nos seus trabalhos, reconforta-os nos seus desânimos, os instrui com seus conselhos, (...) quem dentre vós, digo, age assim, espalha entre seus irmãos um verdadeiramente bom odor, e mesmo o odor dos melhores perfumes’ (SCt 12,5) .
Será que temos medo de dar muito a nossos irmãos e de nos faltar matéria para partilhar? Ao contrário, quanto mais se dá, mais se recebe para dar. No seu quarto Sermão sobre a Ascensão, Bernardo o diz textualmente : ‘O privilégio dos dons espirituais é o de se comunicar sem diminuir’ (Asc 4,2). E no seu comentário sobre o Salmo 90 :
O que eu partilho não me faz falta. Bem ao contrário : tudo o que o Senhor dá eu partilho convosco muito mais seguramente, encontrando em tudo muito mais sabor. Esse alimento não diminui ao ser distribuído, ele aumenta mesmo, na medida em que é servido’ (QH 10,6). 


Fonte :
*Pe. Lode van Hecke, OCSO, monge trapista da Abadia Notre-Dame d’Orval, Bélgica – Artigo publicado em Collectanea Cisterciensia, T. 66 – 2004-3.  Traduzido do francês pelo Mosteiro Maria Mãe do Cristo, Caxambu – MG.
Revista Beneditina nrº 24, Novembro/Dezembro de 2007, editado pelas monjas beneditinas do Mosteiro da Santa Cruz – Juiz de Fora/Minas Gerais

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(1)  Talvez este já seja um ponto no qual se diferencia de Estêvão Harding, abade co-fundador de Cîteaux.
(2) Embora Bernardo continuamente utilize a expressão vontade comum (‘voluntas communis’), é necessário notar que, ao contrário, ela nunca aparece em São Bento, por mais importante que seja a vida comunitária na Regra, a luta contra a vontade própria e a singularidade ( cf. RB 7,55).

 

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