Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
‘Se o Mediterrâneo é um cemitério, o deserto é um
calvário. Para efeitos deste novo relatório intitulado ‘Nesta jornada, ninguém
se importa se você vive ou morre’, 32 mil migrantes e refugiados
foram entrevistados pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados
(ACNUR), onde descrevem ossos e cadáveres espalhados na areia e confidenciando
seu medo de morrer durante a travessia. Vincent Cochetel, enviado especial do
ACNUR para o Mediterrâneo Ocidental e Central, apresentou o relatório na
sexta-feira, 5 de julho, em Genebra.
Porque é que a travessia do Saara parece ser mais
perigosa do que a travessia do Mediterrâneo?
O primeiro perigo que os migrantes e refugiados nos
falam diz respeito aos ataques de gangues criminosas e bandidos que os roubam, privando-os
de todos seus pertences. Para as mulheres, existe um risco maior de violência
sexual nestas rotas. Depois existe a violência por parte dos contrabandistas ou
traficantes que obrigam as pessoas a fazer um certo número de coisas no
caminho. Não é a bela viagem que foi prometida, mas extorsões, trabalho forçado
e, por vezes, a exploração sexual. Os perigos também vêm das autoridades nos
postos fronteiriços, de pessoas que abusam da sua posição para extorquir
dinheiro destes infelizes migrantes e refugiados no deserto, e não apenas nas
rotas que levam ao Norte de África ou depois à Europa por barco, mas também
aquelas que vão para o interior e para o sul do continente africano.
Eles viram pessoas morrendo no deserto, pessoas que
caíram de caminhões e não foram resgatadas pelos contrabandistas ou doentes
abandonados no meio do nada. A maior parte deles viu principalmente cadáveres
nessas estradas no sul da Argélia, no norte do Níger, no sul da Líbia, mas
também em outras partes do Saara.
Porém, quando fazemos a pergunta : ‘Você conhece
alguém que morreu no mar?’ Recebemos muito menos respostas. Com base nestes
relatos, acredita-se que haja muito mais mortes na terra firme do que no mar.
Como obter informações e atuar no Saara? Não é um
buraco negro para as ONG e as instituições internacionais?
Certamente. Existem vários buracos negros como
esses aos quais poucas pessoas ou ninguém têm acesso. Para as organizações
internacionais é muito difícil ir até lá devido às condições geográficas
extremas, mas também porque os Estados não querem que as organizações
humanitárias testemunhem esta violência silenciosa e secreta. Trata-se de um
fenômeno que recebe pouca cobertura midiática porque é menos visível do que um
barco em perigo no Mar Mediterrâneo.
As organizações humanitárias precisam encontrar
outros canais de informação : trabalhar um pouco mais com os líderes
tradicionais, com as autoridades locais, que são testemunhas e, por vezes,
também elas vítimas destes grupos. Trabalhar em um sistema de investigação,
identificação e referenciação destas pessoas que controlam pequenas cidades e
oásis nessas rotas.
Qual é o perfil dos migrantes que tentam a travessia
do deserto? Seus países de origem estão mudando?
Em termos gerais, o perfil não muda muito.
Dependemos muito dos dados fornecidos pelos Estados.
Quando migrantes e refugiados atravessam o
Mediterrâneo para chegar à Europa, aproximadamente uma em cada duas pessoas
obtém asilo ou autorização humanitária na Europa. Considera-se, portanto, que
uma em cada duas pessoas necessita de proteção internacional. A outra pessoa
geralmente deixa o seu país por razões econômicas, para estudar na Europa ou
qualquer outra coisa.
No continente africano é praticamente a mesma
coisa. A maioria dos migrantes e refugiados permanece no continente africano
permanecem no país vizinho ao seu país de origem com a intenção, quando as
coisas melhorarem, de regressar para casa.
As únicas mudanças recentes que tiveram um impacto
nesta mobilidade em direção ao Norte da África são as crises sudanesas – 10
milhões de pessoas deslocadas – e a guerra no Mali e no Burkina Faso, que força
muitos cidadãos destes países ao exílio. Aqui, novamente, nem todos vão em
direção do Norte da África, muitos burquinenses vão principalmente para os
países do Golfo da Guiné, na África Ocidental.
Uma vez superados os perigos do Saara, as pessoas
ainda estão dispostas a atravessar
o Mediterrâneo para chegar à Europa?
No seu próprio país, 21% das pessoas entrevistadas
afirmaram ter em mente um destino e que, independentemente das informações
sobre os perigos, dariam o melhor de si para alcançá-lo. 79% se arrependeram de
ter feito esta escolha : se soubessem quais seriam os riscos reais, não teriam
realizado a viagem. É muito interessante. Para muitos, a Líbia é o destino
final.
Que políticas de acolhimento estão em vigor nos países
da costa norte-africana no final da viagem ao Saara? Com quais possíveis
violações e abusos observados?
O principal problema é que todos os países do Norte
da África ratificaram instrumentos internacionais relativos à proteção dos
refugiados, sejam eles instrumentos internacionais ou instrumentos regionais,
mas nenhum país do Norte da África tem uma lei sobre asilo.
Todos os outros países do continente africano possuem
sistemas de asilo que funcionam mais ou menos bem, o que não é o caso do Norte
da África. Estes países alegam sempre que são países de trânsito. Isso não é
verdade. Na época da pandemia, há três anos, vimos todos os tipos de
comunidades, tanto migrantes como refugiados, nos países do Norte da África, a
maioria dos quais trabalhavam no setor informal da economia. Contudo, sem um
quadro legislativo, isto significa que as pessoas não têm o direito de
permanecer. A situação deles é muito precária.
E com os incidentes derivados das divisões em
algumas comunidades, existe o risco de que as coisas acabem mal, como as ondas
de expulsões da Argélia para o Níger, da Tunísia para a Líbia, para a Argélia,
da Líbia para outros países vizinhos. Estas expulsões em massa não são a
solução, porque as pessoas vão para outros países e depois partem novamente.
Quais soluções de proteção podem ser elaboradas para
melhorar a assistência nestas rotas do Saara e por que atores?
Os Estados devem chegar a um acordo. Nenhum Estado
sozinho pode responder aos desafios de uma melhor gestão destes movimentos no
continente. Precisamos de trabalhar em uma abordagem baseada no percurso, nos
caminhos que as pessoas percorrem. As dinâmicas nas comunidades não são
necessariamente as mesmas, por isso devemos também fazer um esforço para saber
quem as influencia, como financiam as suas viagens, que atividades do programa
têm um valor estabilizador onde a proteção precisa ser melhorada, trabalhar no
regresso; há pessoas que precisam de ajuda para voltar para casa. Deve ser
implementada toda uma série de atividades, não apenas por parte de organizações
humanitárias.
Os Estados devem assumir a responsabilidade por
estas soluções baseadas em estudos no terreno e não devemos abandonar esta
obrigação de solidariedade. Antes de tudo, precisamos salvar vidas humanas,
independentemente do estatuto das pessoas envolvidas, sejam elas refugiados ou
migrantes. É uma denominação importante, mas não em termos de ajuda
emergencial. O traficante não sabe se uma pessoa é migrante ou refugiada. A
Europa deve também ajudar os países ao longo destas rotas a criar mecanismos de
proteção e assistência que proporcionem alternativas dignas às viagens
perigosas e irregulares. Um pouco no espírito daquilo que os Estados europeus
adotaram com alguns Estados africanos na cúpula de La Valleta em 2015.’
Fonte : *Artigo na íntegra
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