Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo
de Mirticeli Medeiros,
jornalista e mestre em História da Igreja, uma das
poucas brasileiras
credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa
da Santa Sé
‘Quem
nunca ouviu falar sobre os ‘cristãos pobres da igreja primitiva’? Pois
é. Essa interpretação em relação aos primeiros seguidores de Cristo é um tema
recorrente em parte da historiografia que trata do tema. É certo que, no
cristianismo primitivo, os adeptos da ‘seita’— como era vista pelo
Império Romano — não gozavam de privilégios até o início do século IV. E
chegaram a ser perseguidos por alguns imperadores da época, que os chamavam de
supersticiosos, ateus e traidores do judaísmo.
Sabemos
que a caridade é um valor constitutivo do cristianismo desde os seus
primórdios. São vários os adeptos da religião que incentivam a prática,
seguindo o ensinamento do seu fundador, Jesus Cristo. No entanto, é necessário
analisar, com atenção, como as várias comunidades cristãs se estruturavam até a
chamada ‘fase constantiniana’, que começa em 313 d.C. E compreender como
esses grupos assistiam os mais pobres nas várias províncias do império. Dessa
forma, não cairemos naquele anacronismo e romantismo históricos que conduzem as
várias interpretações feitas sobre o cristianismo antigo.
Em
cada comunidade cristã, as obras de caridade eram administradas das maneiras
mais distintas possíveis. Portanto, não podemos afirmar que existia uma
política assistencialista padronizada. Não nos esqueçamos que, nos Atos dos
Apóstolos, livro bíblico que descreve como acontecia a distribuição de bens
entre os seguidores de Cristo, o foco está na comunidade de Jerusalém.
A
forma como os cristãos se organizavam naquele território específico não
correspondia ao modelo adotado pelos cristãos do Egito, por exemplo. Além
disso, o próprio conceito de pobreza, no decorrer desse período, passou por
várias elaborações teológicas — sem contar que, em algumas comunidades, é
difícil falar de um grupo constituído majoritariamente por pobres, como
comumente se pensa.
Os
autores cristãos, nos dois primeiros séculos, falavam bastante sobre o valor da
partilha e da esmola, embora não questionassem, em muitos escritos, sobretudo
em âmbito ocidental, a estratificação social. Prova disso é a normalidade com a
qual, no texto Traditio Apostolica, do século II, é tratado o
escravo de um patrão cristão. ‘Se é um escravo de um fiel, e o patrão o
permite, pode escutar a Palavra’, diz o trecho.
É
a partir do século IV que observamos um certo desconforto diante dessas
diferenças. Basílio de Cesaréia, um dos mais importantes teólogos dessa
fase, chegou a dizer que ‘a divisão entre ricos e pobres era fruto do pecado’.
Os
pobres e o império romano
Os
primeiros cristãos não foram perseguidos diretamente por causa do acreditavam,
haja vista que o império não se importava com a crença de seus súditos. Existia
até uma certa tolerância em relação às várias manifestações religiosas, desde
que elas não fossem um empecilho para o ordenamento social.
A
partir do momento em que os seguidores de Jesus Cristo se recusam a prestar
culto ao imperador — gesto considerado um ato cívico por excelência —, eles
passaram a ser vistos como subversivos. Não se prostrar diante de César
significava desrespeitar as instituições e renunciar à própria cidadania
romana. E isso foi um fator preponderante para a promulgação de éditos que
ordenavam as mais sangrentas perseguições aos cristãos.
Além
disso, o fato de eles comumente se tratarem como ‘irmãos’ em suas reuniões,
colocando todos no mesmo patamar, atraiu ainda mais o desprezo coletivo. Era um
escândalo para a sociedade romana. Inadmissível que um escravo, por exemplo,
desprovido de qualquer reconhecimento por parte do Império, se equiparasse a um
cidadão.
Outro
fator a ser levado em consideração é que, já no século II, o Império
Romano começa a apresentar sinais de enfraquecimento, como relata o historiador
inglês Peter Brown. Por conta disso — explica Brown — a quantidade de pobres e
necessitados do território aumentou significativamente nessa fase.
Numa
sociedade completamente fastosa e dada à ostentação, o pobre
era tratado com certo desprezo pela alta nobreza. Parte da literatura romana
pagã chega a considerá-lo, inclusive, ‘miserável e preguiçoso’. E nada
mais.
Não
existia uma reflexão sobre a miséria, nem uma política de enfrentamento do
problema. A promoção de espetáculos, bem como a distribuição de grãos, nada
mais eram que iniciativas ‘populistas’ do imperador. Alguns ricos, por sua
vez, se tornavam benfeitores público, os euergetes, com o
intuito de ganhar prestígio entre os membros da aristocracia romana. E é nesse
cenário que o trabalho dos cristãos começa a se destacar.
Os
‘descartáveis’
Com
a publicação da Constituição Antonina (212 d.C), do Imperador Caracala, a
cidadania romana passou a ser concedida a todos os súditos do império, com
exceção dos peregrinos chamados deditícios, que provinham de
regiões conquistadas por Roma que não aceitavam pacificamente a invasão. Sem a ‘carteira
de identidade’ romana, essas pessoas não podiam ter acesso a todos os
benefícios.
E
são os seguidores de Cristo que, nesse período, atendem a essas populações. A
maioria dos pobres assistidos pelos cristãos eram imigrantes. Os estrangeiros
compunham ‘a categoria mais miserável entre os pobres’, classificados
assim pela mentalidade dominante, que tendia a valorizar somente seus próprios
conterrâneos.
O
ensinamento cristão não se enquadrava na concepção pagã de comunidade civil. E
realiza uma revolução na medida em que passa a transcender o próprio sentido da
benfeitoria. A doação, vista simplesmente como um ato de justiça e
benevolência, inclusive por outras religiões monoteístas, se torna caridade, um
ato de amor dispensado a quem se faz próximo, não somente ao compatriota.
Alguns teólogos primitivos diziam que onde existisse um rico cristão era
inconcebível que alguém passasse fome.
Todos
eram pobres?
As
fontes em relação ao cristianismo primitivo são bastante escassas. Porém, as
informações às quais temos acesso nos permitem individuar como algumas das
principais comunidades cristãs atendiam aos mais necessitados.
No Octavius,
de Minúcio Félix, escrito no século II, os cristãos de Roma são classificados
como ‘pessoas desprovidas de bens’. O livro, de teor alegórico, mostra o
diálogo entre um cristão e um pagão sobre a religiosidade autêntica. O
personagem pagão Cecilio Natalis se refere assim aos
seguidores de Cristo : ‘Muitos de vocês são necessitados, passam frio e
suportam a fadiga e a fome’.
Alguém
pode pensar, com base nesse texto : ‘Aí está a confirmação de que todos os
cristãos eram pobres’. Não é bem assim. A primeira coisa que precisamos ter
em mente é que o texto se ambienta na cidade de Roma e narra o estilo de vida
dos cristãos daquele local específico.
No
caso de Alexandria, uma das cidades mais ricas do Império, a situação já é
outra. O teólogo grego Clemente, que viveu parte de sua vida nessa cidade
egípcia (por isto é chamado de Clemente de Alexandria), questiona, no
discurso Quis dives salvetur, se a riqueza não seria um
impedimento para a salvação. É o primeiro texto a se debruçar sobre o tema. Ele
o escreveu pensando na adesão em massa, ao cristianismo, de muitos alexandrinos
ricos. Diz que há espaço para eles no céu, desde que comprometam a administrar
a riqueza segundo os moldes do cristianismo.
Algumas
comunidades cristãs mantinham uma ‘caixa comum’ ou ‘fundo de caridade’,
onde principalmente os ricos batizados deveriam destinar parte de seus ganhos
para quem mais precisava. Jerusalém e Cartago, por exemplo, adotaram esse
sistema. Em outras cidades, a administração desses recursos, destinados aos
mais pobres, funcionava de outra forma.
Na
Apologia de Aristides, outro texto cristão dessa época, está escrito, em outras
palavras, que é impossível dissociar a religião nascente da prática da
caridade. Na Didaché, do sec. I, considerado o primeiro catecismo
cristão, dar as costas ao indigente era uma ofensa à fé que se professava.
Os
três primeiros séculos do cristianismo foram marcados por esse debate em torno
da riqueza. O questionamento era se o acúmulo de bens não seria uma incoerência
frente ao discurso de despojamento propagado por Jesus Cristo. Na maioria dos
casos, foi visto dessa forma. Quanto menos o indivíduo tivesse, mais estaria
perto de Deus.
Porém,
apesar das divergências relativas à definição de uma postura que correspondesse
melhor aos valores evangélicos, tanto os escritores do Oriente quanto os do
Ocidente não negligenciaram, em nenhum momento, a essência da mensagem cristã.
A ideia de se criar uma rede de solidariedade, encabeçada pelos batizados, era,
para eles, o grande diferencial — o que melhor os distinguiam dos demais.
Também afirmavam que é próprio do cristão assumir uma atitude de desapego em
relação aos bens. Do contrário, acabariam por macular a doutrina em que o amor
devia ter a primeira e a última palavra.’
Fonte : *Artigo na íntegra
https://estadodaarte.estadao.com.br/cristaos-pobres-mirticeli/
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