sexta-feira, 11 de março de 2022

Os cristãos pobres, os pobres cristãos

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Mirticeli Medeiros,

jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras

credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé

 

‘Quem nunca ouviu falar sobre os ‘cristãos pobres da igreja primitiva’? Pois é. Essa interpretação em relação aos primeiros seguidores de Cristo é um tema recorrente em parte da historiografia que trata do tema. É certo que, no cristianismo primitivo, os adeptos da ‘seita’— como era vista pelo Império Romano — não gozavam de privilégios até o início do século IV. E chegaram a ser perseguidos por alguns imperadores da época, que os chamavam de supersticiosos, ateus e traidores do judaísmo.

Sabemos que a caridade é um valor constitutivo do cristianismo desde os seus primórdios. São vários os adeptos da religião que incentivam a prática, seguindo o ensinamento do seu fundador, Jesus Cristo. No entanto, é necessário analisar, com atenção, como as várias comunidades cristãs se estruturavam até a chamada ‘fase constantiniana’, que começa em 313 d.C. E compreender como esses grupos assistiam os mais pobres nas várias províncias do império. Dessa forma, não cairemos naquele anacronismo e romantismo históricos que conduzem as várias interpretações feitas sobre o cristianismo antigo.

Em cada comunidade cristã, as obras de caridade eram administradas das maneiras mais distintas possíveis. Portanto, não podemos afirmar que existia uma política assistencialista padronizada. Não nos esqueçamos que, nos Atos dos Apóstolos, livro bíblico que descreve como acontecia a distribuição de bens entre os seguidores de Cristo, o foco está na comunidade de Jerusalém.

A forma como os cristãos se organizavam naquele território específico não correspondia ao modelo adotado pelos cristãos do Egito, por exemplo. Além disso, o próprio conceito de pobreza, no decorrer desse período, passou por várias elaborações teológicas — sem contar que, em algumas comunidades, é difícil falar de um grupo constituído majoritariamente por pobres, como comumente se pensa.

Os autores cristãos, nos dois primeiros séculos, falavam bastante sobre o valor da partilha e da esmola, embora não questionassem, em muitos escritos, sobretudo em âmbito ocidental, a estratificação social. Prova disso é a normalidade com a qual, no texto Traditio Apostolica, do século II, é tratado o escravo de um patrão cristão. ‘Se é um escravo de um fiel, e o patrão o permite, pode escutar a Palavra’, diz o trecho.

É a partir do século IV que observamos um certo desconforto diante dessas diferenças. Basílio de Cesaréia, um dos mais importantes teólogos dessa fase, chegou a dizer que ‘a divisão entre ricos e pobres era fruto do pecado’.

Os pobres e o império romano

Os primeiros cristãos não foram perseguidos diretamente por causa do acreditavam, haja vista que o império não se importava com a crença de seus súditos. Existia até uma certa tolerância em relação às várias manifestações religiosas, desde que elas não fossem um empecilho para o ordenamento social.

A partir do momento em que os seguidores de Jesus Cristo se recusam a prestar culto ao imperador — gesto considerado um ato cívico por excelência —, eles passaram a ser vistos como subversivos. Não se prostrar diante de César significava desrespeitar as instituições e renunciar à própria cidadania romana. E isso foi um fator preponderante para a promulgação de éditos que ordenavam as mais sangrentas perseguições aos cristãos.

Além disso, o fato de eles comumente se tratarem como ‘irmãos’ em suas reuniões, colocando todos no mesmo patamar, atraiu ainda mais o desprezo coletivo. Era um escândalo para a sociedade romana. Inadmissível que um escravo, por exemplo, desprovido de qualquer reconhecimento por parte do Império, se equiparasse a um cidadão.

Outro fator a ser levado em consideração é que, já no século II, o Império Romano começa a apresentar sinais de enfraquecimento, como relata o historiador inglês Peter Brown. Por conta disso — explica Brown — a quantidade de pobres e necessitados do território aumentou significativamente nessa fase.

Numa sociedade completamente fastosa e dada à ostentação, o pobre era tratado com certo desprezo pela alta nobreza. Parte da literatura romana pagã chega a considerá-lo, inclusive, ‘miserável e preguiçoso’. E nada mais.

Não existia uma reflexão sobre a miséria, nem uma política de enfrentamento do problema. A promoção de espetáculos, bem como a distribuição de grãos, nada mais eram que iniciativas ‘populistas’ do imperador. Alguns ricos, por sua vez, se tornavam benfeitores público, os euergetes, com o intuito de ganhar prestígio entre os membros da aristocracia romana. E é nesse cenário que o trabalho dos cristãos começa a se destacar.

Os ‘descartáveis’

Com a publicação da Constituição Antonina (212 d.C), do Imperador Caracala, a cidadania romana passou a ser concedida a todos os súditos do império, com exceção dos peregrinos chamados deditícios, que provinham de regiões conquistadas por Roma que não aceitavam pacificamente a invasão. Sem a ‘carteira de identidade’ romana, essas pessoas não podiam ter acesso a todos os benefícios.

E são os seguidores de Cristo que, nesse período, atendem a essas populações. A maioria dos pobres assistidos pelos cristãos eram imigrantes. Os estrangeiros compunham ‘a categoria mais miserável entre os pobres’, classificados assim pela mentalidade dominante, que tendia a valorizar somente seus próprios conterrâneos.

O ensinamento cristão não se enquadrava na concepção pagã de comunidade civil. E realiza uma revolução na medida em que passa a transcender o próprio sentido da benfeitoria. A doação, vista simplesmente como um ato de justiça e benevolência, inclusive por outras religiões monoteístas, se torna caridade, um ato de amor dispensado a quem se faz próximo, não somente ao compatriota. Alguns teólogos primitivos diziam que onde existisse um rico cristão era inconcebível que alguém passasse fome.

Todos eram pobres?

As fontes em relação ao cristianismo primitivo são bastante escassas. Porém, as informações às quais temos acesso nos permitem individuar como algumas das principais comunidades cristãs atendiam aos mais necessitados.

No Octavius, de Minúcio Félix, escrito no século II, os cristãos de Roma são classificados como ‘pessoas desprovidas de bens’. O livro, de teor alegórico, mostra o diálogo entre um cristão e um pagão sobre a religiosidade autêntica. O personagem pagão Cecilio Natalis se refere assim aos seguidores de Cristo : ‘Muitos de vocês são necessitados, passam frio e suportam a fadiga e a fome’.

Alguém pode pensar, com base nesse texto : ‘Aí está a confirmação de que todos os cristãos eram pobres’. Não é bem assim. A primeira coisa que precisamos ter em mente é que o texto se ambienta na cidade de Roma e narra o estilo de vida dos cristãos daquele local específico.

No caso de Alexandria, uma das cidades mais ricas do Império, a situação já é outra. O teólogo grego Clemente, que viveu parte de sua vida nessa cidade egípcia (por isto é chamado de Clemente de Alexandria), questiona, no discurso Quis dives salvetur, se a riqueza não seria um impedimento para a salvação. É o primeiro texto a se debruçar sobre o tema. Ele o escreveu pensando na adesão em massa, ao cristianismo, de muitos alexandrinos ricos. Diz que há espaço para eles no céu, desde que comprometam a administrar a riqueza segundo os moldes do cristianismo.

Algumas comunidades cristãs mantinham uma ‘caixa comum’ ou ‘fundo de caridade’, onde principalmente os ricos batizados deveriam destinar parte de seus ganhos para quem mais precisava. Jerusalém e Cartago, por exemplo, adotaram esse sistema. Em outras cidades, a administração desses recursos, destinados aos mais pobres, funcionava de outra forma.

Na Apologia de Aristides, outro texto cristão dessa época, está escrito, em outras palavras, que é impossível dissociar a religião nascente da prática da caridade. Na Didaché, do sec. I, considerado o primeiro catecismo cristão, dar as costas ao indigente era uma ofensa à fé que se professava.

Os três primeiros séculos do cristianismo foram marcados por esse debate em torno da riqueza. O questionamento era se o acúmulo de bens não seria uma incoerência frente ao discurso de despojamento propagado por Jesus Cristo. Na maioria dos casos, foi visto dessa forma. Quanto menos o indivíduo tivesse, mais estaria perto de Deus.

Porém, apesar das divergências relativas à definição de uma postura que correspondesse melhor aos valores evangélicos, tanto os escritores do Oriente quanto os do Ocidente não negligenciaram, em nenhum momento, a essência da mensagem cristã. A ideia de se criar uma rede de solidariedade, encabeçada pelos batizados, era, para eles, o grande diferencial — o que melhor os distinguiam dos demais. Também afirmavam que é próprio do cristão assumir uma atitude de desapego em relação aos bens. Do contrário, acabariam por macular a doutrina em que o amor devia ter a primeira e a última palavra.’

Fonte : *Artigo na íntegra

https://estadodaarte.estadao.com.br/cristaos-pobres-mirticeli/

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