domingo, 28 de abril de 2019

O papado e o poder

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Papa Francisco não somente resignifica o papado, mas evoca a autoridade espiritual do mesmo que foi perdida ao longo dos séculos.
*Artigo de Mirticeli Dias de Medeiros,
jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras
credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé



As alianças entre o romano pontífice e os soberanos, representaram, ao longo dos séculos, a tentativa desse líder religioso de garantir prestígio e proteção para o seu território - legitimamente conquistado na visão dos contemporâneos medievais. Ademais, é importante saber diferenciar o papa medieval do papa renascentista, este último consolidado como príncipe do estado pontifício com as prerrogativas de um soberano europeu: o líder de um dos cinco principados italianos.

O famoso episódio do ‘soco de Anagni’, ocorrido em 1303 - quando Bonifácio VIII levara um golpe do chefe das tropas enviadas por Filipe IV (o Belo) à cidade de Anagni, na Itália, foi a resposta dada ao pontífice que tentou reafirmar a sua hegemonia diante do rei francês através da bula Unam Sanctam. Essa, sem dúvida, foi uma das maiores humilhações públicas vividas por um romano pontífice. De acordo com historiadores, esse ‘choque diplomático’ foi um dos episódios que impulsionou a transferência do sucessor de Bonifácio VIII a Avinhão, no Sul da França, justamente para ‘consertar’ essa ruptura entre o papado e o reino mais poderoso da época. Para não citar o famoso Cisma do Ocidente, fruto de uma crise clerical que colocara a autoridade do concílio ecumênico acima da autoridade do sucessor de Pedro entre os séculos XIV e XV.

Além disso, atribuem à idade média - considerada a época da consolidação do universalismo cristão - o surgimento de um líder religioso implacável, o maior proprietário de terras do período e um soberano respeitado por todos. O que, nem de longe, aconteceu, já que foi só no renascimento que o líder máximo da Igreja Católica foi capaz disputar com os demais estados em formação, apesar de ser proprietário de um complexo territorial nanico, se comparado aos demais.

Na idade áurea do papado medieval, o domínio temporal não é protagonista, bem como é quase completamente ausente nas grandes discussões sobre as fontes do direito e do poder, seja na elaboração das grandes coleções canonistas, seja na vida cotidiana das instituições. O olhar se volta mais ao horizonte universal, às relações com o império e com as unidades estatais emergentes’, disse o historiador italiano Paolo Prodi, autor do livro Il sovrano pontefice.

No livro, o estudioso também explica que o estado pontifício -, que começa a formar-se e a assumir uma autonomia territorial e política dentro do quadro político europeu somente em meados do século XV -, foi, sem dúvida, o protótipo do estado moderno.

A Igreja romana introduziu no Ocidente a primeira hierarquia de tribunais com leis escritas e procedimentos uniformes; racionalizou o sistema de imposição das taxas; criou o primeiro ‘ministério das relações exteriores’, o primeiro corpo diplomático e o primeiro exército mercenário estável. [...] Os estados também herdam do papado a auctoritas docendi, tornando-se protagonistas totais além do raio de ação tradicional’, afirmou o historiador.

O papado de Pio IX foi o último suspiro para manter a figura do papa-rei : a proclamação do dogma da infalibilidade papal acontece após a queda do estado pontifício, em 1870. Com os altos e baixos, o papado ainda é uma das instituições com maior credibilidade no mundo, contanto com 266 sumos pontífices ao longo de sua história.

 É importante suscitar esse tipo de debate em um período no qual Papa Francisco não somente resignifica o papado, mas evoca a autoridade espiritual do mesmo que foi perdida ao longo dos séculos. Com uma estratégia diplomática ímpar, Francisco - que em sua primeira aparição pública preferiu utilizar o título ‘bispo de Roma’ - baixa a guarda não visando enfraquecer o papado, mas para fazer sobressair a sua liderança enquanto agente conciliador : a principal missão do pontífice desde que o Concílio Vaticano II lançou-se em diálogo com o mundo.’


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