*Artigo
do Padre Nuno Tovar Lemos, SJ
Intrigaram-me,
na parede, três pontos de saída de gás. Imaginei que servissem para ajudar à
respiração de alguém mais aflito. Percebi que uma das saídas era de ar e a
outra de oxigênio. Mas a 3ª? Apanhei uma enfermeira de passagem pela sala. O
que tem esta saída? Vácuo, disse ela apressadamente. Comentei que me parecia
estranho que aplicassem vácuo nas narinas de uma pessoa com deficiências
respiratórias… Ela riu-se e esclareceu que o vácuo não se aplicava no paciente
mas que se ligava à máquina que ajudava a pessoa a respirar. Que esta máquina
necessitava de vácuo para funcionar.
Não
cheguei a perceber como é que a máquina funciona mas, desde aí, tenho pensado
muito neste fato curioso do vácuo poder ajudar à respiração. E pareceu-me que
isto não acontece só nos hospitais mas em muitas situações da vida. (O que é um
aparente contra-senso porque o vácuo, em si, é uma ausência, uma falta).
Parece-me mesmo que a História, muitas vezes, não avança por incrementos mas
sim por vácuos. Chamei-lhe ‘Princípio do
Vácuo’. Seria assim :
Os
vazios nem sempre são uma desgraça; podem ser o espaço necessário para o surgir
de novas realidades.
Alguns
exemplos :
Ouvi
recentemente de uma mãe que o filho tinha vindo reclamar não ter nada para
fazer e que ela, em vez de o entreter, lhe tinha respondido simplesmente que
era natural, que às vezes não temos nada para fazer. E lembrei-me de ter ouvido
esta frase de uma psicóloga infantil : ‘as
crianças precisam de se aborrecer’. Hoje em dia queremos muito ocupar as
crianças com atividades úteis e estimulantes para que desenvolvam ao máximo
todas as suas capacidades. Se vemos uma criança desocupada vamos logo
entretê-la ou dar-lhe coisas para fazer. A psicóloga dizia que é um erro
super-ocupar e super-estimular as crianças. Do vazio podem surgir muitas coisas
boas como o estimular da criatividade, o fortalecimento de um mundo interior
próprio e uma certa não dependência em relação aos estímulos exteriores. Tudo
isto podem ser lições preciosas para o futuro da criança. É o vácuo a ajudar a
respirar bem…
Na
nossa vida de oração por vezes também há vácuos. A oração, na sua essência, é
tirar tempo só para Deus; estar lá para Ele e à espera Dele. E isso pode
significar termos de enfrentar o vazio. Não me refiro àqueles vazios
deliberados a que chamamos ‘silêncio’
mas aos que nos são impostos, bem contra nossa vontade, e que nos aparecem como
fracassos espirituais : queríamos ‘sentir’
a presença de Deus e Ele parece ausente, queríamos concentrar-nos e nem sequer
conseguimos parar interiormente, queríamos chegar a alguma conclusão e estamos
como diante de uma parede em branco.
Ninguém
gosta desta experiência. É desconfortável e faz pensar que a oração está a
correr mal. Quando isto acontece vem logo a tentação de irmos fazer outra coisa
ou de enchermos artificialmente a oração de ideias bonitas ou de emoções
forçadas. No entanto, se permanecermos
fielmente diante do Mistério durante esses vácuos da oração, daí podem
eventualmente resultar coisas boas : uma maior humildade diante do Mistério de
Deus, uma maior paciência e fidelidade para com Ele, a descoberta de uma nova
maneira de rezar, uma maior abertura a algo novo que Deus queira dar ou uma
compreensão mais sincera de quem diz não O encontrar. No fim até talvez
possamos ser sugados – precisamente por esse vácuo – para mais dentro do
Mistério que não controlamos. Aconteceu isto com Jesus na Sua ressurreição,
depois daquele vácuo na cruz, um vazio tão grande que Jesus chegou a dizer ‘Meu Deus, porque me abandonaste?’.
Nas
nossas histórias pessoais também há fases de vazio. Há ausências pontuais (de
pessoas, de dinheiro, de alegria, etc) e há também, por vezes, um vazio grande
que se instala, enche tudo e ao qual chamamos ‘crise’. Não quero fazer o elogio da crise, seria um disparate (para
além das crises serem dolorosas, nelas, por vezes, a pessoa faz os piores ‘negócios’ da sua vida). Mas temos de
reconhecer que muitos saltos de crescimento pessoal se dão no pós-crise. Às
vezes parece que é preciso chegarmos ao fundo para podermos ensaiar novas maneiras
de estar na vida, eventualmente mais livres e mais criativas.
O
princípio do vácuo aplica-se também às instituições. E até mesmo à Igreja. Mas
as instituições têm em geral horror ao vácuo e a Igreja não é exceção. Seria
normal (sobretudo numa comunidade que tem Deus por Senhor) haver vácuos. Mas
nós enchemo-los. Por exemplo, seria normal na Igreja enfrentar o vácuo do
não-saber (Deus é tão infinitamente grande e diferente de tudo!). Mas qual é o
padre que diz ‘não sei’? Parece que
não podemos ter dúvidas, parece que temos sempre mais respostas do que
questões. Seria normal, numa comunidade de adoração, o vácuo do não-fazer, o
simples estar diante do Mistério. E daí vir-nos-ia certamente alguma paz e
profundidade de vida. Mas nós andamos todos atarefadíssimos, sem mãos a medir,
desde os padres às catequistas e, por vezes, nem nas exposições do Santíssimo
nos calamos. Seria normal na Igreja os vácuos do não-saber-como-fazer
(particularmente nestes tempos de tantas mudanças civilizacionais) mas nos
parece que temos planos para tudo e que o Direito Canônico (mal interpretado)
dispensa qualquer necessidade de discernimento. Seria normal, numa Comunidade
em que ‘a messe é grande e os
trabalhadores são poucos’ (Lc 10, 2), haver vácuos do não-haver-quem-faça e
esses vácuos puxarem pelos mais novos (na idade ou na fé) para assumirem
lideranças e essas lideranças revelarem carismas e gerarem comunidades mais
participativas. Mas este processo abre vazios e causa inseguranças. Preferimos
então seguir o caminho ‘seguro’ : ter
as mesmas pessoas de sempre a ocupar os mesmos espaços de sempre e a fazerem as
mesmas coisas de sempre, mesmo que daí resultem leigos e padres super-ocupados
e stressados, sem tempo para escutar a Deus e aos irmãos. E sem qualquer tipo
de criatividade missionária.
Ou
seja : por vezes, na Igreja e nas nossas vidas, é preciso que algumas coisas
fiquem a descoberto para que possam surgir outras novas. É a lei da História e
a essência do Mistério Pascal. Mas é difícil conviver com o vácuo e fugimos dele
‘como o diabo da cruz’.
Só
não entendemos que, ao fechar a torneira do vácuo, estamos também a dificultar
também o processo de entrada de ar novo.’
Fonte
:
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