terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Reflexões sobre o vácuo

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

  Na nossa vida de oração por vezes também há vácuos. A oração, na sua essência, é tirar tempo só para Deus; estar lá para Ele e à espera Dele. E isso pode significar termos de enfrentar o vazio.
*Artigo do Padre Nuno Tovar Lemos, SJ



Intrigaram-me, na parede, três pontos de saída de gás. Imaginei que servissem para ajudar à respiração de alguém mais aflito. Percebi que uma das saídas era de ar e a outra de oxigênio. Mas a 3ª? Apanhei uma enfermeira de passagem pela sala. O que tem esta saída? Vácuo, disse ela apressadamente. Comentei que me parecia estranho que aplicassem vácuo nas narinas de uma pessoa com deficiências respiratórias… Ela riu-se e esclareceu que o vácuo não se aplicava no paciente mas que se ligava à máquina que ajudava a pessoa a respirar. Que esta máquina necessitava de vácuo para funcionar.

Não cheguei a perceber como é que a máquina funciona mas, desde aí, tenho pensado muito neste fato curioso do vácuo poder ajudar à respiração. E pareceu-me que isto não acontece só nos hospitais mas em muitas situações da vida. (O que é um aparente contra-senso porque o vácuo, em si, é uma ausência, uma falta). Parece-me mesmo que a História, muitas vezes, não avança por incrementos mas sim por vácuos. Chamei-lhe ‘Princípio do Vácuo’. Seria assim :

Os vazios nem sempre são uma desgraça; podem ser o espaço necessário para o surgir de novas realidades.

Alguns exemplos :

Ouvi recentemente de uma mãe que o filho tinha vindo reclamar não ter nada para fazer e que ela, em vez de o entreter, lhe tinha respondido simplesmente que era natural, que às vezes não temos nada para fazer. E lembrei-me de ter ouvido esta frase de uma psicóloga infantil : ‘as crianças precisam de se aborrecer’. Hoje em dia queremos muito ocupar as crianças com atividades úteis e estimulantes para que desenvolvam ao máximo todas as suas capacidades. Se vemos uma criança desocupada vamos logo entretê-la ou dar-lhe coisas para fazer. A psicóloga dizia que é um erro super-ocupar e super-estimular as crianças. Do vazio podem surgir muitas coisas boas como o estimular da criatividade, o fortalecimento de um mundo interior próprio e uma certa não dependência em relação aos estímulos exteriores. Tudo isto podem ser lições preciosas para o futuro da criança. É o vácuo a ajudar a respirar bem…

Na nossa vida de oração por vezes também há vácuos. A oração, na sua essência, é tirar tempo só para Deus; estar lá para Ele e à espera Dele. E isso pode significar termos de enfrentar o vazio. Não me refiro àqueles vazios deliberados a que chamamos ‘silêncio’ mas aos que nos são impostos, bem contra nossa vontade, e que nos aparecem como fracassos espirituais : queríamos ‘sentir’ a presença de Deus e Ele parece ausente, queríamos concentrar-nos e nem sequer conseguimos parar interiormente, queríamos chegar a alguma conclusão e estamos como diante de uma parede em branco.

Ninguém gosta desta experiência. É desconfortável e faz pensar que a oração está a correr mal. Quando isto acontece vem logo a tentação de irmos fazer outra coisa ou de enchermos artificialmente a oração de ideias bonitas ou de emoções forçadas. No entanto, se permanecermos fielmente diante do Mistério durante esses vácuos da oração, daí podem eventualmente resultar coisas boas : uma maior humildade diante do Mistério de Deus, uma maior paciência e fidelidade para com Ele, a descoberta de uma nova maneira de rezar, uma maior abertura a algo novo que Deus queira dar ou uma compreensão mais sincera de quem diz não O encontrar. No fim até talvez possamos ser sugados – precisamente por esse vácuo – para mais dentro do Mistério que não controlamos. Aconteceu isto com Jesus na Sua ressurreição, depois daquele vácuo na cruz, um vazio tão grande que Jesus chegou a dizer ‘Meu Deus, porque me abandonaste?’.

Nas nossas histórias pessoais também há fases de vazio. Há ausências pontuais (de pessoas, de dinheiro, de alegria, etc) e há também, por vezes, um vazio grande que se instala, enche tudo e ao qual chamamos ‘crise’. Não quero fazer o elogio da crise, seria um disparate (para além das crises serem dolorosas, nelas, por vezes, a pessoa faz os piores ‘negócios’ da sua vida). Mas temos de reconhecer que muitos saltos de crescimento pessoal se dão no pós-crise. Às vezes parece que é preciso chegarmos ao fundo para podermos ensaiar novas maneiras de estar na vida, eventualmente mais livres e mais criativas.

O princípio do vácuo aplica-se também às instituições. E até mesmo à Igreja. Mas as instituições têm em geral horror ao vácuo e a Igreja não é exceção. Seria normal (sobretudo numa comunidade que tem Deus por Senhor) haver vácuos. Mas nós enchemo-los. Por exemplo, seria normal na Igreja enfrentar o vácuo do não-saber (Deus é tão infinitamente grande e diferente de tudo!). Mas qual é o padre que diz ‘não sei’? Parece que não podemos ter dúvidas, parece que temos sempre mais respostas do que questões. Seria normal, numa comunidade de adoração, o vácuo do não-fazer, o simples estar diante do Mistério. E daí vir-nos-ia certamente alguma paz e profundidade de vida. Mas nós andamos todos atarefadíssimos, sem mãos a medir, desde os padres às catequistas e, por vezes, nem nas exposições do Santíssimo nos calamos. Seria normal na Igreja os vácuos do não-saber-como-fazer (particularmente nestes tempos de tantas mudanças civilizacionais) mas nos parece que temos planos para tudo e que o Direito Canônico (mal interpretado) dispensa qualquer necessidade de discernimento. Seria normal, numa Comunidade em que ‘a messe é grande e os trabalhadores são poucos’ (Lc 10, 2), haver vácuos do não-haver-quem-faça e esses vácuos puxarem pelos mais novos (na idade ou na fé) para assumirem lideranças e essas lideranças revelarem carismas e gerarem comunidades mais participativas. Mas este processo abre vazios e causa inseguranças. Preferimos então seguir o caminho ‘seguro’ : ter as mesmas pessoas de sempre a ocupar os mesmos espaços de sempre e a fazerem as mesmas coisas de sempre, mesmo que daí resultem leigos e padres super-ocupados e stressados, sem tempo para escutar a Deus e aos irmãos. E sem qualquer tipo de criatividade missionária.

Ou seja : por vezes, na Igreja e nas nossas vidas, é preciso que algumas coisas fiquem a descoberto para que possam surgir outras novas. É a lei da História e a essência do Mistério Pascal. Mas é difícil conviver com o vácuo e fugimos dele ‘como o diabo da cruz’.

Só não entendemos que, ao fechar a torneira do vácuo, estamos também a dificultar também o processo de entrada de ar novo.’


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