sábado, 14 de dezembro de 2013

São João da Cruz, Presbítero e Doutor da Igreja

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

* Artigo de Bento XVI, Papa Emérito
                                                                                                                                                        
            Reformador da ordem carmelita, com Santa Teresa, São João da Cruz foi proclamado doutor da Igreja pelo Papa Pio XI em 1926, e chamado na tradição Doctor mysticus, Doutor místico.

            João da Cruz nasceu em 1542 no povoado de Fontiveros, perto de Ávila, na Velha Castela, filho de Gonzalo de Yepes e de Catalina Alvarez. A família era extremamente pobre porque o pai, de nobre origem de Toledo, tinha sido explulso de casa e deserdado por ter casado com Catalina, uma humilde tecelã de seda. Órfão de pai em tenra idade, com nove anos transferiu-se com a mãe e o irmão Francisco para Medina del Campo, perto de Valladolid, centro comercial e cultural. Ali frequentou o Colegio de los Doctrinos, desempenhando também alguns trabalhos humildes para as irmãs da Igreja – Convento da Madalena. Em seguida, considerando as suas qualidades humanas e os seus resultados nos estudos, foi admitido primeiro como enfermeiro no Hospital da Conceição, depois no Colégio dos Jesuítas, recém-fundado em Medina del Campo : ali João entrou com dezoito anos e estudou ciências humanas, retórica e línguas clássicas durante três anos. No final da formação, ele viu claramente qual era a sua vocação : a vida religiosa e, entre as muitas ordens presentes em Medina, sentiu-se chamado ao Carmelo.
 
            No verão de 1563 começou o noviciado com os Carmelitas da cidade, assumindo o nome religioso de João de São Matias. No ano seguinte foi destinado à prestigiosa Universidade de Salamanca, onde por três anos estudou artes e filosofia. Em 1567 foi ordenado sacerdote e voltou a Medina del Campo para celebrar a sua primeira Missa circundado pelo carinho dos familiares. Precisamente ali teve lugar o primeiro encontro entre João e Teresa de Jesus. O encontro foi decisivo para ambos : Teresa expôs-lhes o seu plano de reforma do Carmelo também no ramo masculino da ordem e propôs a João que se adaptasse ‘para maior glória de Deus’; o jovem sacerdote ficou fascinado pelas idéias de Teresa, a ponto de se tornar um grande defensor do projeto. Os dois trabalharam juntos alguns meses, compartilhando idéias e propostas para inaugurar quanto antes possível a primeira casa de Carmelitas Descalços : a abertura ocorreu a 28 de dezembro de 1568 em Duruelo, lugar solitário da província de Ávila. Com João formavam esta primeira comunidade masculina reformada outros três companheiros. Ao renovar a sua profissão religiosa segunda a Regra primitiva, os quatro assumiram um novo nome : João denominou-se ‘da Cruz’, como depois será conhecido universalmente. No final de 1572, a pedido de Santa Teresa, tornou-se confessor e vigário do Mosteiro da Encarnação em Ávila, onde a santa era prioresa. Foram anos de estreita colaboração e amizade espiritual, que a ambos enriqueceram. A esse período remontam inclusive as mais importantes obras teresianas e os primeiros escritos de João.
 
            A adesão à reforma carmelita não foi fácil e causou a João também graves sofrimentos. O episódio mais traumático foi, em 1577, o seu rapto e aprisionamento no Convento dos Carmelitas de Antiga Observância de Toledo, devido a uma acusação injusta. O santo permaneceu preso durante meses, submetido a privações e constrições físicas e morais. Ali compôs, além de outras poesias, o célebre Cântico espiritual. Finalmente, na noite entre 16 e 17 de agosto de 1578, conseguiu fugir de modo aventuroso, refugiando-se no Mosteiro das Carmelitas Descalças da cidade. Santa Teresa e os companheiros reformados celebraram com imensa alegria a sua libertação e, após um breve período de recuperação das forças, João foi destinado para a Andaluzia, onde transcorreu dez anos em vários conventos, especialmente em Granada. Assumiu cargos cada vez mais importantes na ordem, até se tornar vigário provincial, e completou a redação dos seus tratados espirituais. Depois, voltou para a sua terra natal, como membro do governo geral da família religiosa teresiana, que já gozava de plena autonomia jurídica. Habitou no Carmelo de Segóvia, desempenhando a função de superior daquela comunidade. Em 1591 foi eximido de qualquer responsabilidade e destinado à nova província religiosa do México. Enquanto se preparava para a longa viagem com outros dez companheiros, retirou-se num convento solitário perto de Jaén, onde adoeceu gravemente. João enfrentou com serenidade e paciência exemplares enormes sofrimentos. Faleceu na noite entre 13 para 14 de dezembro de 1591, enquanto os irmão de hábito recitavam o Ofício matutino. Despediu-se deles, dizendo : ‘Hoje vou cantar o Ofício no Ceu’. Os seus restos mortais foram transladados para Segóvia. Foi beatificado por Clemente X em 1675 e canonizado por Bento XIII em 1726.
 
            João é considerado um dos mais importantes poetas líricos da literatura espanhola. As obras principais são quatro : Subida ao Monte Carmelo, Noite escura, Cântico espiritual e Chama de amor viva.
 
            No Cântico espiritual, São João apresenta o caminho de purificação da alma, ou seja, a posse progressiva e jubilosa de Deus, até que a alma chegue a sentir que ama a Deus com o mesmo amor com que é por Ele amada. A Chama de amor viva continua nesta perspectiva, descrevendo mais pormenorizadamente o estado de união transformadora com Deus. A comparação utilizada por João é sempre a do fogo : assim como o fogo, quanto mais arde e consome a madeira, tanto mais se torna incandescente até se tornar chama, também o Espírito Santo, que durante a noite escura purifica e ‘limpa’ a alma, com o tempo ilumina-a e aquece-a como se fosse uma chama. A vida da alma é uma festa contínua do Espírito Santo, que deixa entrever a glória da união com Deus na eternidade.
 
            A Subida ao Monte Carmelo apresenta o itinenário espiritual sob o ponto de vista da purificação progressiva da alma, necessária para escalar a montanha da perfeição cristã, simbolizada pelo cimo do monte Carmelo. Tal purificação é proposta como um caminho que o homem empreende colaborando com a obra divina, para libertar a alma de todo o apego ou afeto contrário à vontade de Deus. A purificação, que para alcançar a união com Deus deve ser total, começa a parir da vida dos sentidos e continua com a que se alcanca por meio das três virtudes teologais : fé, esperança e caridade, que purificam a intenção, a memória e a vontade. A Noite escura descreve o aspecto ‘passivo’, ou seja, a intervenção de Deus neste processo de ‘purificação’ da alma. Com efeito, o esforço humano sozinho é incapaz de chegar às profundas raízes das más inclinações e hábitos da pessoa : só os pode impedir, mas não os consegue erradicar completamente. Para o fazer, é necessária a ação especial de Deus, que purifica radicalmente o espírito e o dispõe para a união de amor com Ele. São João define ‘passiva’ tal purificação, precisamente porque, embora seja aceita pela alma, é realizada pela obra misteriosa do Espírito Santo que, como chama de fogo, consome toda a impureza. Neste estado, a alma é submetida a todo o tipo de provações, como se se encontrasse numa noite escura.
 
            Estas indicações sobre as obras principais do santo ajudam-nos a aproximar-nos dos pontos salientes da sua vasta e profunda doutrina mística, cuja finalidade é descrever um caminho seguro para alcançar a santidade, a condição de perfeição à qual Deus chama todos nós. Segundo João da Cruz, tudo o que existe, criado por Deus, é bom. Através das criaturas, nós conseguimos chegar à descoberta daquele que nelas deixou um vestígio de Si. De qualquer modo, a fé é a única fonte confiada ao homem que conhecer Deus como Ele é em si mesmo, como Deus Uno e Trino. Tudo o que Deus queria comunicar ao homem, disse-o em Jesus Cristo, a Sua Palavra que Se fez carne. Jesus Cristo é o único e definitivo caminho para o Pai (cf. Jo 14,6). Qualquer coisa criada nada é em comparação com Deus, e nada vale fora d’Ele : por conseguinte, para alcançar o amor perfeito de Deus, todos os outros amores se devem conformar em Cristo com o amor divino. Daqui deriva a insistência de São João da Cruz sobre a necessidade da purificação e do esvaziamento interior para se transformar em Deus, que é a única meta da perfeição. Esta ‘purificação’ não consiste na simples falta física das coisas ou do seu uso; o que torna a alma pura e livre, ao contrário, é eliminar toda a dependência desordenada das coisas. Tudo deve ser inserido em Deus como centro e fim da vida. Sem dúvida, o longo e cansativo processo de purificação exige o esforço pessoal, mas o verdadeiro protagonista é Deus : tudo o que o homem pode fazer é ‘dispor-se’, estar aberto à obra divina e não lhe por obstáculos. Vivendo as virtudes teologais, o homem eleva-se e valoriza o próprio compromisso. O ritmo de crescimento da fé, da esperança e da caridade caminha a par e passo com a obra de purificação e com a união progressiva com Deus, até se transformar n’Ele. Quando alcança esta meta, a alma imerge-se na própria vida trinitária, e São João afirma que ela consegue amar a Deus com o mesmo amor que Ele a ama, porque a ama no Espírito Santo. Eis por que motivo o doutor místico afirma que não existe verdadeira união de amor com Deus, se não culmina na união trinitária. Neste estado supremo, a alma santa conhece tudo em Deus e já não deve passar através das criaturas para chegar a Ele. A alma já se sente inundada pelo amor divino e alegra-se completamente nele.
 
            Caros irmãos e irmãs, no fim permanece esta pergunta : com a sua mística excelsa, com este árduo caminho rumo ao cimo da perfeição, este santo tem algo a dizer também a nós, ao cristão normal que vive nas circunstâncias desta vida de hoje, ou é um exemplo, um modelo apenas para poucas almas escolhidas que podem realmente empreender este caminho da purificação, da ascese mística? Para encontrar a resposta, em primeiro lugar temos de ter presente que a vida de São João da Cruz não foi um ‘voar sobre as nuvens místicas’, mas uma vida muito árdua, deveras prática e concreta, quer como reformador da ordem, onde encontrou muitas oposições, quer como superior provincial, quer ainda no cárcere dos seus irmãos de hábito, onde esteve exposto a insultos incríveis e a maus-tratos físicos. Foi uma vida dura, mas precisamente nos meses passados na prisão ele escreveu uma das suas obras mais bonitas. E assim podemos compreender que o caminho com Cristo, o andar com Cristo, ‘o Caminho’, não é um peso acrescentado ao fardo já suficientemente grave da nossa vida, não é algo que tornaria ainda mais pesada esta carga, mas é algo totalmente diferente, é uma luz, uma força que nos ajuda a carregar este peso. Se um homem tem em si um grande amor, este amor quase lhe dá asas, e suporta mais facilmente todas as moléstias da vida, porque traz em si esta grande luz; esta é a fé : ser amado por Deus e deixar-se amar por Deus em Cristo Jesus. Este deixar-se amar é a luz que nos ajuda a carregar o fardo de todos os dias. E a santidade não é uma obra nossa, muito difícil, mas é precisamente esta ‘abertura’ : abrir as janelas da nossa alma, para que a luz de Deus possa entrar, não esquecer Deus, porque é precisamente na abertura à Sua luz que se encontra a força, a alegria dos remidos. Oremos ao Senhor para que nos ajude a encontrar esta santidade, deixando-nos amar por Deus, que é a vocação de todos nós e a verdadeira redenção.
 
(16 de fevereiro de 2011)
 
Fonte :
* Bento XVI, Santos e Doutores da Igreja (catequeses condensadas), Lisboa, Paulus Editora, 2012.  
 
 

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