1. “A Pérola Preciosa”
Fazei, ó meu Deus, que eu recorde e confesse, em ação de graças, as
Vossas misericórdias para comigo! Permiti que os meus ossos se penetrem do
Vosso amor e digam: "Senhor, quem é semelhante a Vos?"(1). Rompestes os
meus grilhões e "ofertar-vos-ei um sacrifício de louvor"(2). Narrarei
como os rompestes, e todos os que Vos adoram exclamarão: Bendito seja o Senhor
no céu e na terra; o seu nome é grande e admirável" (3).
As Vossas palavras tinahm-se gravado no íntimo do meu coração. Vós me
cercáveis de todos os lados. Tinha a certeza de que a Vossa vida era eterna
apesar de só a ter visto" em enigma e como num espelho"(4). Toda a dúvida sobre a substância
incorruptível me fora resolvida, ao ver que dela provém toda a substância.
Desejava.. não digo estar mais certo de Vós, mas mais firme em Vós. Tudo vacilava,
porém na minha vida temporal e o meu coração precisava de ser limpo do antigo
fermento. O verdadeiro caminho, que é o
Salvador, encantava-me, mas ainda me repugnava enveredar por seus estreitos
desfiladeiros.
Vós então me inspirastes a idéia- que, no meu conceito, julguei boa - de
ir falar com Simpliciano (5), que eu o tinha por um bom servo Vosso e em
quem brilhava a Vossa graça. Ouvira
dizer. Além disso, que desde a juventude vivia devotamente para Vós. Com efeito, já envelhecera, e, em tão longa
idade, seguira sempre, com zelo ardente, o Vosso caminho. Devia ser um homem muito experimentado e
instruído. Assim era, na verdade. Queria por isso, falar com ele, das minhas
inquietações, para que me descobrisse o modo de uma alma agitada como a minha
adiantar no Vosso caminho.
Via cheia a Igreja. Uns
caminhavam de uma maneira, outros de outra. Desagradava-me a vida que levava no
mundo. Era para mim de grande peso, agora
que as paixões e a esperança de honra e dinheiro já não me animavam, como de ordinário, a
sofrer tão pesada servidão. Sim, tudo
isso já não me deleitava, em vista da Vossa doçura e da beleza da Vossa casa,
que amei. Mas ainda estava tenazmente
ligado à mulher. É certo que o Apóstolo
não me proibia casar, não obstante
exortar-me a um estado melhor, porque queria ardentemente que todos os homens fossem como ele. Eu, porém, demasiado fraco, escolhia o
lugar mais aprazível. Era só por isso
que vivia de hesitações em tudo o mais
lânguido e enfermo por causa das preocupações enervantes, porque parecendo
coagido a entregar-me à vida conjugal, via-me também obrigado a incumbir-me de
novas obrigações que não queria suportar.
Ouvira da boca da Verdade que “
existiam eunucos que a si próprios mutilaram por amor ao reino dos céus. Mas Ela acrescenta: “ quem pode compreender,
compreenda”(6). “São vãos, por certo
todos os homens em quem não se acha a
ciência de Deus, e que, pelos bens visíveis, não chegaram a conhecer Aquele que é”(7). Mas
já não me encontrava naquela vaidade. Ultrapassara-a e, pelo testemunho de
todas as criaturas, ó Criador nosso, Vos encontrara a Vós e ao Vosso Verbo que
juntamente convosco é Deus, um só Deus, quem tudo criastes.
Há
outra espécie de ímpios que, “tendo conhecido a Deus, não O glorificaram nem
lhe renderam graças”(8). Tinha também caído neste pecado. “ A
Vossa destra porém, amparou-me”(9) e depois de me arrancardes de lá me colocastes onde me restabelecesse, dizendo
ao homem: “ a piedade é sabedoria”(10),
não queirais parecer sábios, porque os que se dizem sábios tornam-se
insensatos”(11). Já encontrara pérolas preciosas que devia comprar, depois de
vender tudo o que possuía. Mas duvidava ainda.
Fonte :
PENSAMENTO HUMANO - Confissões - Santo Agostinho - Ed. Universitária São Francisco 23a. Ed. Cap. VIII
PENSAMENTO HUMANO - Confissões - Santo Agostinho - Ed. Universitária São Francisco 23a. Ed. Cap. VIII